Não usa salto alto porque tem pés complicados, nem vestidos de gala porque ficaria ridícula. Aliás, não usa vestidos, ponto
Dorrit Harazim
A figurinista inglesa Jenny Beavan não é nenhuma sílfide. Chegou aos
65 anos assumindo cada marca do passar do tempo, que não lhe foi
particularmente generoso no quesito físico. Em compensação, essa filha
de músicos clássicos foi brindada com uma soma de talentos de fazer
inveja.
Desde que se formou pela Central School of Art and Design de Londres e foi sequestrada pela indústria cinematográfica para criar figurinos de qualquer época, Jenny acumula um portfólio de mais de 50 cobiçados prêmios. Das dez indicações ao Oscar que recebeu ao longo da carreira, já subiu ao palco duas vezes para apanhar a estatueta.
A primeira foi em 1987, pelos figurinos vitorianos criados para “Uma janela para o amor”, filme baseado no romance homônimo de E.M. Forster. A segunda foi na cerimônia de domingo passado, pela indumentária pós-apocalíptica punk que inventou para os personagens de “Mad Max — Estrada de fúria”, o grande vencedor desse 88º Oscar.
Foi ao levantar do assento em meio ao mar de famosos acomodados no Dolby Theater de Los Angeles, e caminhar até o palco para receber o troféu, que Jenny Beavan revelou o tamanho de sua personalidade. Mas revelou também, graças à internet, que permite rever qualquer cena à exaustão, o tamanho da mediocridade dessa distinta plateia — sobretudo da ala masculina.
Vale a pena recapitular para quem não acompanhou a transmissão do evento ou não percebeu a cena fugaz. Ao contrário do Festival de Cannes, que exige salto alto para mulheres, o convite do Oscar especifica apenas black-tie como traje sugerido. Em 2010, quando foi indicada pelos figurinos de “O discurso do rei”, vencedor de sete prêmios Bafta britânicos e quatro Oscars, Jenny se apresentou de jaqueta preta chinesa e calça larga.
Desta vez, ela decidira fazer algo mais divertido, conforme contou mais tarde. Comprou uma jaqueta preta de couro fake por 42 libras esterlinas (cerca de R$ 224) na loja de departamento Marks & Spencer, a mais popular da Inglaterra. Figurinista que é, deu-lhe um trato mandando bordar nas costas uma caveira envolta em chamas — com cristais Swarovski. Para acompanhar, calça comprida preta larga, botas de motoqueiro, uma echarpe listrada e vários adereços fantasia.
E foi assim, com a vasta cabeleira grisalha solta, maquiagem mínima, uma única unha pintada de prateado e passadas confortáveis sustentando o corpanzil pesado que Jenny atravessou o corredor para subir ao palco.
Pelo menos no clipe que se tornou viral, ela parece sorrir. Um sorriso malicioso em meio a um esquisito silêncio no engalanado salão.
Ao contrário das palmas que sempre acompanham o anúncio do vencedor de cada nova categoria, no caso da figurinista os aplausos só tomaram corpo quando ela chegou ao palco para receber o troféu. Durante a travessia ocorreu algo singular.
Enquanto avançava, ela ia sendo examinada em silencio da cabeça aos pés pelos cavalheiros de black-tie, que permaneciam de semblante sério e visivelmente desaprovador. O premiado diretor mexicano Alejandro G. Iñárritu, criticado por sequer descruzar os braços à passagem da vencedora, foi apenas um entre os de nariz empinado. No fundo, ele apenas teve o azar de estar sentado na linha de foco da câmera que registrava a cena e por isso achou que devia se explicar.
Algumas damas da plateia, mais caridosas talvez por não verem em Jenny uma concorrente, incentivaram-na com acenos. Mas também se abstiveram de aplaudi-la na passagem.
A premiada acolheu de bom humor a inevitável pergunta sobre seu guarda-roupa na entrevista coletiva que todo oscarizado concede após a cerimônia e ainda brindou os repórteres dando uma pirueta para que apreciassem a caveira Swarovski de sua jaqueta.
Explicou que não usa salto alto porque tem pés complicados, nem vestidos de gala porque ficaria ridícula. Aliás, não usa vestidos, ponto. “E lamento informar, acrescentou, “gosto de me sentir confortável. Então escolhi essas peças como homenagem a ‘Mad Max’. Aliás, acho que estou bem vestida, até este broche coloquei — é fantasia, mas enfeita”.
Poucas semanas antes, ao receber o prestigioso premio Bafta em Londres com a mesma jaqueta (ainda sem cristais), camiseta e outra echarpe, Jenny já havia levado uma cutucada deselegante do mestre de cerimônias Stephen Fry. “Só mesmo uma das maiores figurinistas do cinema é capaz de vir à entrega dos prêmios vestida como uma mendiga”, disse Fry a título de apresentação. Ninguém achou graça.
“Não tenho interesse em roupas em geral. Minha paixão é criar personagens através de roupas, só isso”, explica essa mágica que adora acordar de madrugada para pesquisar textura de tecidos, traços de figuras históricas (só Winston Churchills fictícios ela já vestiu meia dúzia) e miudezas do cotidiano de determinado período.
E já que estamos em semana de Dia da Mulher, fica a recomendação final do mulherão que encara qualquer tapete vermelho com pé no chão: “Você não precisa parecer uma supermodelo para ter sucesso. Se pudermos lembrar disso, seria uma coisa ótima. É muito bom se sentir bem, porque então você pode fazer qualquer coisa”. Estava feliz porque a filha tinha achado a maior graça no seu figurino black-tie.
O GLOBO, 6 DE MARÇO DE 2016
Desde que se formou pela Central School of Art and Design de Londres e foi sequestrada pela indústria cinematográfica para criar figurinos de qualquer época, Jenny acumula um portfólio de mais de 50 cobiçados prêmios. Das dez indicações ao Oscar que recebeu ao longo da carreira, já subiu ao palco duas vezes para apanhar a estatueta.
A primeira foi em 1987, pelos figurinos vitorianos criados para “Uma janela para o amor”, filme baseado no romance homônimo de E.M. Forster. A segunda foi na cerimônia de domingo passado, pela indumentária pós-apocalíptica punk que inventou para os personagens de “Mad Max — Estrada de fúria”, o grande vencedor desse 88º Oscar.
Foi ao levantar do assento em meio ao mar de famosos acomodados no Dolby Theater de Los Angeles, e caminhar até o palco para receber o troféu, que Jenny Beavan revelou o tamanho de sua personalidade. Mas revelou também, graças à internet, que permite rever qualquer cena à exaustão, o tamanho da mediocridade dessa distinta plateia — sobretudo da ala masculina.
Vale a pena recapitular para quem não acompanhou a transmissão do evento ou não percebeu a cena fugaz. Ao contrário do Festival de Cannes, que exige salto alto para mulheres, o convite do Oscar especifica apenas black-tie como traje sugerido. Em 2010, quando foi indicada pelos figurinos de “O discurso do rei”, vencedor de sete prêmios Bafta britânicos e quatro Oscars, Jenny se apresentou de jaqueta preta chinesa e calça larga.
Desta vez, ela decidira fazer algo mais divertido, conforme contou mais tarde. Comprou uma jaqueta preta de couro fake por 42 libras esterlinas (cerca de R$ 224) na loja de departamento Marks & Spencer, a mais popular da Inglaterra. Figurinista que é, deu-lhe um trato mandando bordar nas costas uma caveira envolta em chamas — com cristais Swarovski. Para acompanhar, calça comprida preta larga, botas de motoqueiro, uma echarpe listrada e vários adereços fantasia.
E foi assim, com a vasta cabeleira grisalha solta, maquiagem mínima, uma única unha pintada de prateado e passadas confortáveis sustentando o corpanzil pesado que Jenny atravessou o corredor para subir ao palco.
Pelo menos no clipe que se tornou viral, ela parece sorrir. Um sorriso malicioso em meio a um esquisito silêncio no engalanado salão.
Ao contrário das palmas que sempre acompanham o anúncio do vencedor de cada nova categoria, no caso da figurinista os aplausos só tomaram corpo quando ela chegou ao palco para receber o troféu. Durante a travessia ocorreu algo singular.
Enquanto avançava, ela ia sendo examinada em silencio da cabeça aos pés pelos cavalheiros de black-tie, que permaneciam de semblante sério e visivelmente desaprovador. O premiado diretor mexicano Alejandro G. Iñárritu, criticado por sequer descruzar os braços à passagem da vencedora, foi apenas um entre os de nariz empinado. No fundo, ele apenas teve o azar de estar sentado na linha de foco da câmera que registrava a cena e por isso achou que devia se explicar.
Algumas damas da plateia, mais caridosas talvez por não verem em Jenny uma concorrente, incentivaram-na com acenos. Mas também se abstiveram de aplaudi-la na passagem.
A premiada acolheu de bom humor a inevitável pergunta sobre seu guarda-roupa na entrevista coletiva que todo oscarizado concede após a cerimônia e ainda brindou os repórteres dando uma pirueta para que apreciassem a caveira Swarovski de sua jaqueta.
Explicou que não usa salto alto porque tem pés complicados, nem vestidos de gala porque ficaria ridícula. Aliás, não usa vestidos, ponto. “E lamento informar, acrescentou, “gosto de me sentir confortável. Então escolhi essas peças como homenagem a ‘Mad Max’. Aliás, acho que estou bem vestida, até este broche coloquei — é fantasia, mas enfeita”.
Poucas semanas antes, ao receber o prestigioso premio Bafta em Londres com a mesma jaqueta (ainda sem cristais), camiseta e outra echarpe, Jenny já havia levado uma cutucada deselegante do mestre de cerimônias Stephen Fry. “Só mesmo uma das maiores figurinistas do cinema é capaz de vir à entrega dos prêmios vestida como uma mendiga”, disse Fry a título de apresentação. Ninguém achou graça.
“Não tenho interesse em roupas em geral. Minha paixão é criar personagens através de roupas, só isso”, explica essa mágica que adora acordar de madrugada para pesquisar textura de tecidos, traços de figuras históricas (só Winston Churchills fictícios ela já vestiu meia dúzia) e miudezas do cotidiano de determinado período.
E já que estamos em semana de Dia da Mulher, fica a recomendação final do mulherão que encara qualquer tapete vermelho com pé no chão: “Você não precisa parecer uma supermodelo para ter sucesso. Se pudermos lembrar disso, seria uma coisa ótima. É muito bom se sentir bem, porque então você pode fazer qualquer coisa”. Estava feliz porque a filha tinha achado a maior graça no seu figurino black-tie.
O GLOBO, 6 DE MARÇO DE 2016
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