March 19, 2016

Golpes em série


Arnaldo Bloch

Instituições disputam campeonato nacional de tiro no pé

Há seis meses parei de fumar. Mas, nesta quinta-feira, dia seguinte à divulgação do diálogo de Lula e Dilma, está difícil. Fui agora ao pátio do GLOBO fumar um cigarro, desses para situações de emergência, na gaveta, com dois botões acionadores de menta e blue ice. No caminho recebo zapzaps pedindo que escreva contra o golpe. Que golpe?, respondo. São tantos os que andam sendo desferidos, por todos os atores envolvidos na cena!

Alguns golpes são contra os próprios interesses de quem golpeia. O famoso tiro no pé. Como diz um amigo, o Zé José, assistimos a um campeonato nacional de tiros no pé. O tiro no pé da condução coercitiva, que leva ao tiro no pé do destempero de Lula, acusando as elites, ele que abriu a guarda para as piores oligarquias. O tiro no pé do pedido de prisão pelos promotores de São Paulo; o tiro no pé da juíza que envia a decisão a Curitiba.

O tiro no pé de Dilma ao “renunciar à renúncia”. O tiro no pé do convite (e do aceite) de Lula para ser ministro. O tiro no pé de Dilma ao telefonar para Lula (não podia ser um bilhetinho?). O tiro no pé de Moro ao divulgar o diálogo, gravado, aliás, após ele ter suspendido a escuta.

Quem vai dar o último tiro no pé?

Há outro cigarrinho no maço. Não fui à manifestação de domingo. Não bati panela. Não bato panela. Não terei ido tampouco à manifestação do PT do dia 18 (hoje é quinta-feira, a crônica sai no sábado, sabe-se lá se haverá sangue nas manchetes). Estou enjoado. Faz tempo que me decepcionei com Lula. Nunca nutri por Dilma qualquer esperança. Aécio jamais convenceu, e parece que o dia dele chegou. Não gosto da vaidade dos juízes, que se precipitam para virarem heróis e extrapolam, exorbitam, golpeiam, depreciando os próprios méritos.

Quem confia em Temer? Em Renan? O que é o PMDB, fiel da balança do juízo final? O que terão os empreiteiros ainda a dizer sobre a era FH? Se Dilma cair, se Lula cair, e que caiam se tiverem que cair, quero ver essa parada seguir seu curso, até o fim. Prendam-se todos se forem capazes. Mas não precisamos de heróis.

Precisamos de democracia. De processo eletivo. De transição dentro da Lei. De renovação, e não de destruição da política, de vulgarização da figura da Justiça. Chega dos loucos agressivos de ambos os lados que saem xingando, estapeando, brandindo boçalidades contra quem não tem a mesma opinião. A histeria vigente, os berros esgoelados nas janelas, o ódio de classes, a arrogância, as sentenças antes do julgado, a ignorância, o analfabetismo funcional de promotores que conhecem as teorias sociais através de orelhas de livros e gostam de posar para fotos com óculos escuros azulados olhando para o horizonte do breu. Não aguento a empáfia do ex-AGU Gilmar Mendes.

E Eduardo Cunha? Está lá, conduzindo olimpicamente o processo de impeachment, e lá vai permanecer até que dele não mais se necessite. Então, será jogado num buraco, mas nunca se sabe: ainda está por vir, quem sabe, o dia em que o chamaremos de presidente da república. Neste dia, aí sim, talvez valha a pena sair às ruas para vomitar e fazer selfies em série.

O terceiro cigarro. O último do maço de emergência. Bom que a crônica já passou da metade, antes que eu cometa alguma bobagem maior. Vou descer para fumar e já volto. Voltei. Não, não voltei a fumar. Voltei a escrever. Uma conhecida de São Paulo, no Face, relata que um sujeito na Brigadeiro Faria Lima com um BMW, deixando a garagem de algum prédio corporativo anexo a um ponto de ônibus, acelerou para que ela saísse da frente. A mulher reclamou, dizendo que deve-se respeitar o pedestre. O homem abriu a janela e protestou: “Pobretoooooonaaaa!!!!!!”

E rugiu o motor. Pobretona. Porque estava no ponto de ônibus. É risível, mas faz sonhar com uma legislação em que o sujeito flagrado dizendo tal frase fosse encarcerado em rito sumário por crime hediondo.

Ouço aqui que um moleque de 17 anos gritando “Não vai ter golpe” foi espancado em São Paulo. Uma pró-Dilma esquentada relata: “Passei pela Paulista à noite para pegar o metrô. Encontrei com a manifestação no meio do caminho. Atravessei o aglomerado de verde e amarelo em frente à Fiesp, vestida também de verde e amarelo. Fui confundida com manifestante. Um cara veio me entregar uma bandeirinha, gritando ‘fora Lula’. Respondi que não compactuo com golpe, sorri e continuei andando. O cara me seguiu. Puxou meu braço, me mandou pegar a bandeira e lutar por um Brasil melhor. Peguei. Rasguei. Repeti que não apoio golpe. Levei um murro na boca do estômago, uma cusparada e um ‘corre, comunista!’”.

Não que a militância do PT seja flores. Ao contrário. A gente conhece a fúria. E, repito, a coluna foi fechada antes das manifestações de sexta. Mas que homens honrados à cata de um novo Brasil são esses que saem dando porrada?

Acabou o cigarro. Parei novamente de fumar. Mas a fumaça permanece, a fumaça de um Brasil desorientado, míope, incapacitado de julgar a que ponto a marcha da insensatez poderia ter sido evitada, o quão desnecessário teria sido chegarmos a este ponto.

O GLOBO, 19 DE MARÇO DE 2016

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