March 31, 2019

Paulo Coelho: I was tortured by Brazil’s dictatorship. Is that what Bolsonaro wants to celebrate?





May 28, 1974: A group of armed men breaks into my apartment. They start going through drawers and cabinets — but I don’t know what they’re looking for, I’m just a rock songwriter. One of them, more gentle, asks that I accompany them “just to clarify some things.” The neighbor sees all this and warns my family, who immediately panic. Everyone knew what Brazil was living at the time, even if it wasn’t covered in the newspapers.
I was taken to the DOPS (Departamento de Ordem Politica e Social), booked and photographed. I ask what I had done, he says they will ask the questions. A lieutenant asks silly questions and lets me go. From that point on I’m officially no longer in prison — so the government is no longer responsible for me. When I leave, the man who took me to the DOPS suggests we have coffee together. He stops a taxi and gently opens the door. I get in and ask to go to my parents' house — they need to know what happened.
On the way, the taxi is blocked by two cars — a man with a gun in his hand exists from one of the cars and pulls me out. I fall to the ground, and feel the barrel of the gun in the back of my neck. I look at a hotel in front of me and think, “I can’t die so soon.” I fall into a kind of catatonic state: I don’t feel afraid, I don’t feel anything. I know the stories of other friends who have disappeared; I will disappear, and the last thing I will see is a hotel. The man picks me up, puts me on the floor of his car and tells me to put on a hood.
The car drives around for maybe half an hour. They must be choosing a place to execute me — but I still don’t feel anything, I’ve accepted my destiny. The car stops. I’m dragged out and beaten as I’m pushed down what appears to be a corridor. I scream, but I know no one is listening, because they are also screaming. Terrorist, they say. You deserve to die. You're fighting against your country. You're going to die slowly, but you're going to suffer a lot first. Paradoxically, my instinct for survival begins to kick in little by little.
I’m taken to the torture room with a raised floor. I stumble on it because I can’t see anything: I ask them not to push me, but I get punched in the back and fall down. They tell me to take off my clothes. The interrogation begins with questions I don’t know how to answer. They ask me to betray people I have never heard of. They say I don’t want to cooperate, throw water on the floor and put something on my feet — then I see from underneath the hood that it is a machine with electrodes that are then attached to my genitals.
Now I understand that, in addition to the blows I can’t see coming (and therefore can’t even contract my body to cushion the impact of), I'm about to get electric shocks. I tell them they don't have to do this — I’ll confess whatever they want me to confess, I’ll sign whatever they want me to sign. But they are not satisfied. Then, in desperation, I begin to scratch my skin, tearing off pieces of myself. The torturers must have been frightened when they saw me covered in my own blood; they leave me alone. They say I can take off the hood when I hear the door slam. I take it off and see that I'm in a soundproof room, with bullet holes on the walls. That explains the raised floor.
The next day, another torture session, with the same questions. I repeat that I’ll sign whatever they want, I’ll confess whatever they want, just tell me what I must confess. They ignore my requests. After I don’t how long and how many sessions (time in hell is not counted in hours), there’s a knock on the door and they put the hood back on. A man grabs me by the arm and tells me, embarrassed: It’s not my fault. I’m taken to a small room, painted completely black, with a very strong air-conditioner. They turn off the light. Only darkness, cold and a siren that plays incessantly. I begin to go mad. I have visions of horses. I knock on the door of the “fridge” (I found out later that was what they called it), but no one opens it. I faint. I wake up and faint again and again, and at one point I think: better to get beaten than to stay in here.
I wake up, and I’m still in the room. The light is always on, and I’m unable to tell how many days or nights went by. I stand there for what seems like eternity. Years later, my sister tells me my parents couldn’t sleep; my mother cried all the time, my father locked himself in silence and did not speak.
I am no longer interrogated. Solitary confinement. One fine day, someone throws my clothes on the floor and tells me to get dressed. I get dressed and put on my hood. I'm taken to a car and thrown in the trunk. We drive for what feels like forever, until they stop — am I going to die now? They order me to take off the hood and get out of the trunk. I'm in a public square filled with kids, somewhere in Rio but I don't know where.
I head to my parents’ house. My mother has grown old, my father says I shouldn’t go outside anymore. I reach out to my friends, I look for my singer — nobody answers the phone. I’m alone: If I was arrested, I must have done something, they must be thinking. It’s risky to be seen with a former prisoner. I may have left prison, but prison stays with me. Redemption comes when two people who were not even close to me offer me a job. My parents would never fully recover.
Decades later, the archives of the dictatorship are made public, and my biographer gets all the material. I ask why I was arrested: an informant accused you, he says. Do you want to know who reported you? I don’t. It won’t change the past.
And it’s these Years of Lead that President Jair Bolsonaro — after referring in Congress to one of the most heinous torturers as his idol — wants to celebrate on Sunday.

Justiça reconhece 1ª vítima da ditadura, um militar morto 4 dias depois do golpe


O tenente-coronel da Aeronáutica Alfeu de Alcântara Monteiro, morto pela ditadura militar em 1964 - Arquivo MJDH

Rubens Valente
Brasília

Morto a tiros quatro dias depois do golpe militar iniciado em 31 de março de 1964, que completa 55 anos no domingo (31), o tenente-coronel da Aeronáutica Alfeu de Alcântara Monteiro é considerado a primeira pessoa a ser assassinada pela ditadura militar.
Foi necessário mais de meio século para que a Justiça Federal reconhecesse, a partir de ação movida pelo Ministério Público Federal e ativistas de direitos humanos, que Monteiro não foi morto em legítima defesa, ao contrário do que dizia a versão oficial.
Na semana passada, o Ministério Público informou que a União fez mudanças em documentos oficiais para constar que Monteiro foi assassinado dentro do quartel.
Tropas do Exército em frente ao estádio do Maracanã, no dia 31.mar.1964, quando teve início o golpe militar
Tropas do Exército em frente ao estádio do Maracanã, no dia 31.mar.1964, quando teve início o golpe militar - Arquivo/Agência O Globo
Em sua decisão, o juiz federal Fabio Hassen Ismael escreveu que Monteiro morreu em "um ato de exceção" em "contexto de violação a direitos humanos, por motivações político-ideológicas decorrentes do regime militar instaurado".
Nascido em 1922 em Itaqui (RS), em um 31 de março, Monteiro entrou na Escola da Aeronáutica em 1942.
Atuou em Fortaleza, São Paulo, Rio, Natal e Canoas (RS). Tornou-se tenente-aviador em 1946 e fez o curso do Estado-Maior da Aeronáutica em 1958.
No final de março de 1964, por coincidência, Monteiro providenciava sua mudança de Canoas para o Rio, onde frequentaria um curso superior de comando na Escola do Estado-Maior da Aeronáutica, quando veio a derrocada do presidente João Goulart.
Monteiro não era bem visto pelo lado golpista porque, em 1961, segundo testemunhas, havia se recusado a participar do bombardeio do Palácio Piratini, em Porto Alegre (RS), onde o então governador Leonel Brizola organizava uma resistência para garantir a posse de Goulart, então vice-presidente, após a renúncia de Jânio Quadros.
Quando a crise acabou, com a posse de Goulart, o lado defendido por Monteiro saiu vitorioso, mas isso durou menos de três anos.

Na noite de 4 de abril de 1964, Monteiro foi chamado ao gabinete do novo comandante do Quartel-General da 5ª Zona Aérea em Canoas, o brigadeiro Nélson Freire Lavanere-Wanderley, que havia chegado naquele dia como interventor do grupo golpista e dado voz de prisão a vários militares.
O brigadeiro estava acompanhado do coronel Roberto Hipólito da Costa, sobrinho do novo presidente da ditadura, Humberto de Alencar Castello Branco. Minutos depois de se apresentar, Monteiro foi assassinado na sala do comandante.
No inquérito controlado pela Aeronáutica, tanto Wanderley quanto Costa afirmaram que Monteiro recusou a prisão, por entendê-la um ato arbitrário, sacou um revólver calibre 32 e, no meio de uma áspera discussão, disparou contra Wanderley, atingindo-o de raspão no rosto e no ombro esquerdo.
Em seguida, Costa, que viu a cena, sacou uma pistola e deu vários tiros em Monteiro.
Em seu livro "Castello - A Marcha para a Ditadura" (ed. Contexto, 2004), o jornalista Lira Neto escreveu que Castello agiu para abafar o episódio, conseguindo que seu sobrinho fosse transferido para uma longa missão nos EUA e empossando, dias depois, Wanderley como ministro da Aeronáutica.

Ao longo de anos, prevaleceu a versão oficial de uma resistência à prisão. Essa visão só começou a mudar a partir dos anos 2000, quando o Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul (MJDH) coletou documentos e testemunhos e solicitou que o Ministério Público Federal reavaliasse o caso.
No decorrer da apuração, militares que estavam na base no dia do crime disseram que Monteiro foi abatido antes de disparar contra Wanderley.
Exames de corpo de delito e uma perícia da Polícia Federal levantaram a hipótese de que os dois tiros contra Wanderley partiram de baixo para cima, o que indica que Monteiro atirou depois de ser atingido por Costa.
Em sua decisão, o juiz federal concluiu que a apuração demonstrou ser "provável que a vítima não estivesse empunhando sua arma no instante em que foi atingido" e, assim, "pode-se concluir que o coronel Alfeu não tomou a iniciativa de efetuar disparos contra o seu comandante".
Ele também mandou o cartório reescrever o atestado de óbito de Monteiro nos seguintes termos: "Morte violenta. Hemorragia interna consecutiva a ferimentos de vísceras abdominais causados por disparos de arma de fogo".
Antes, o atestado dizia apenas que ele morrera de hemorragia interna, sem citar os tiros. Monteiro recebeu quatro projéteis que atravessaram seu rim, fígado, pâncreas e intestino.
"Monteiro não era de esquerda, era um legalista. Tinha simpatia pelo [então governador] Leonel Brizola, nada além disso. Esse é um exemplo de que havia, na época do golpe, uma ala nas Forças Armadas que queria só o cumprimento da Constituição, ou seja, João Goulart não poderia ter sido derrubado daquela forma", disse Jair Krischke, do Movimento Justiça e Direitos Humanos.
"O Monteiro ficou marcado dentro da Aeronáutica por causa do seu comportamento na crise de 1961. Era contra o bombardeio. Ele dizia: 'O que vocês querem fazer é um golpe'", afirmou Krischke.
Um dos procuradores da República que atuou no caso em Canoas, Ivan Cláudio Marx, hoje lotado na Procuradoria do Distrito Federal, disse que a decisão da Justiça "é um reconhecimento estatal importante, ainda que depois de tanto tempo".
Segundo ele, "a apuração revelou a falsidade da versão oficial. Ou seja, ele foi mesmo executado. Os agentes da ditadura forjaram suicídios, nesse caso forjaram uma suposta legítima defesa".

Em 1996, a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, vinculada ao Ministério da Justiça, deferiu o pedido de reconhecimento da culpa do Estado na morte de Alfeu Monteiro.
O membro da comissão que na época representava as Forças Armadas, general Oswaldo Pereira Gomes, pediu a revogação da medida sob o argumento de que o inquérito policial-militar apontou que Monteiro "foi morto no ato de atentar contra a vida de seu superior hierárquico" e com "o ato criminoso acertou com tiro de arma de fogo a cabeça e o omoplata do major".
O voto do general Gomes acabou derrotado pela maioria da comissão.


March 28, 2019

O pato, o general e o capital



Fabio Victor


Os grupos de direita que acamparam por meses em frente ao prédio da Fiesp, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, para pedir a derrubada de Dilma Rousseff já não estão mais por lá. O pato amarelo plantado no local, que simbolizou o apoio de primeira hora do empresariado paulista à deposição da petista, tampouco pode ser mais encontrado – aposentou-se compulsoriamente, por invalidez, quando ficou claro que o que movia o impeachment não era a briga para diminuir impostos ou ajustar a economia. Foi substituído por um sapo verde, em cuja pança está escrito: “Chega de engolir sapo.”.

O que não mudou, no edifício-cartão-postal da avenida Paulista, foi a capacidade do presidente da maior entidade empresarial do país, Paulo Skaf, de perceber os humores do dinheiro. Aos primeiros sinais de insatisfação do PIB com o governo Jair Bolsonaro – sintoma da incúria na articulação política palaciana, que levou o Planalto a sucessivas derrotas para tentar deslanchar sua proposta de reforma da Previdência, e da desorientação do próprio presidente –, Skaf preparou uma recepção de gala para o vice Hamilton Mourão.

Na tarde/noite de terça-feira (26/3), mais de 600 empresários foram à sede da Fiesp para ouvir Mourão. A diretoria da Fiesp se reúne a cada quinze dias; a da Ciesp (Centro das Indústrias do Estado de São Paulo), uma vez por mês. Skaf resolveu juntar as duas, e fez uma reunião extraordinária em torno de Mourão. O maior auditório do edifício, com capacidade para 456 pessoas, não deu conta da audiência, e parte dos convidados teve de acompanhar a fala de Mourão de um telão instalado numa sala contígua.

Em um discurso de 35 minutos – na maior parte lido, mas entrecortado por cacos –, Mourão consolidou-se como contraponto liberal aos extremismos do bolsonarismo. É verdade que numa passagem o vice referiu-se ao presidente como alguém que “não é nem nunca será uma ameaça à democracia”. “Quero enfatizar que ele é um estadista, que não está pensando nas próximas eleições, mas nas próximas gerações.” Foi, aliás, o único trecho que Mourão publicou depois em sua conta no Twitter – como se não quisesse por enquanto mais problemas com Carlos Bolsonaro. Mas todo o restante do discurso destoou da pregação ideológico-paranoica de pai e filhos.

Primeiro Mourão tratou de afagar a plateia, falando da necessidade de uma reforma tributária. “As senhoras e senhores, como empresários e produtores, sabem muito bem o peso da carga tributária. Temos de reorganizar o sistema tributário e as taxas que incorrem sobre todos vocês.” Recebeu o primeiro grande aplauso. Pregou uma abertura ao capital estrangeiro “lenta, gradual e segura”. “Se não reorganizarmos o sistema tributário, uma abertura da noite para o dia do nosso país vai acabar com a nossa indústria” (mais aplausos).

Depois defendeu o diálogo com os parlamentares para aprovar a reforma da Previdência. “O Congresso representa a população brasileira. Ali está a imagem dos que votaram nos seus representantes. Nós temos que dialogar com eles, não fugir ao diálogo. Todos aqui sabem que minha experiência política é baixíssima, mas o bom senso tem que prevalecer nessas horas.” E pareceu mandar um recado a Bolsonaro. “Na instituição a que servi por 46 anos, a gente sempre dizia: o comandante não tem que ser aplaudido no pátio, o comandante tem que tomar decisões”.

Exaltou a globalização, o neoliberalismo, o capitalismo: “Os historiadores do futuro vão olhar para o final dos anos 1970 e início dos anos 1980 como um momento revolucionário na história social e econômica da história da humanidade. Naquela época pessoas como o [líder chinês] Deng Xiaoping, a [premiê britânica] Margaret Thatcher e o [presidente dos Estados Unidos] Ronald Reagan iniciaram um movimento que trouxe vida àquilo que hoje chamamos de globalização. E também surgiu aquilo que foi designado como neoliberalismo. O Estado organizar a sociedade e as leis e deixar de interferir nos mercados. Neoliberalismo nada mais é do que o direito intransigente à propriedade privada. Pois onde não há propriedade não há o único sistema econômico que deu certo no mundo, que é o capitalismo”. Atacou a Venezuela, “um caso clássico de destruição daquilo que o chamado socialismo pode produzir”.

Condenou o excesso de regulação e burocracia (“ainda somos o país do carimbo; na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, ainda circula papel, senhoras e senhores, isso é um absurdo”). Criticou o aumento do salário mínimo: “Governos anteriores aumentaram o salário mínimo acima da inflação e produziram contradição, em que classes desfavorecidas recebem menos que as mais favorecidas” (não explicou o raciocínio tortuoso).

Criticou a barafunda do MEC: “Precisa de um freio de arrumação.” Mencionou a necessidade de diminuir a desigualdade social: “[Temos de] melhorar as condições de vida dos que vivem nos cinturões de miséria que cercam as nossas grandes cidades, sem acesso a luz, água, esgoto e tendo suas necessidades básicas providas pelos representantes das narcoquadrilhas”. Falou de segurança pública, narcotráfico e sistema prisional.

Finalizou citando o presidente americano Franklin Roosevelt. “Quando terminarmos o nosso governo e entregarmos a faixa presidencial em 1º de janeiro de 2023, gostaríamos muito que nossa população, e em especial essa plateia, estivesse vivendo aquilo que o presidente Roosevelt, em seu discurso do State of the Union [Estado da União] em 1940, chamou de as quatro grandes liberdades humanas. Que vivamos sob a liberdade de expressão, a liberdade de religião, a liberdade de não sermos forçados a fazer aquilo que não queremos e principalmente a liberdade de não termos medo.”

Mourão terminou aplaudido de pé, e os empresários ouvidos pela piauí ao final do encontro se mostraram bem mais alinhados às ideias e métodos do vice do que às do presidente. “Quando o Mourão passa essa imagem de bom senso e de diálogo, acalma muito o mercado e o setor produtivo. É um contraste enorme com a família Bolsonaro”, disse o diretor do Grupo Amazonas (calçados), Saulo Pucci. “Espero que o presidente seja contaminado com esse espírito. Esse é um momento em que temos de diminuir as diferenças, não aumentar; temos de ampliar o diálogo, não restringir.”

Ingo Schmidt, executivo do setor de alimentos (preferiu não dizer de qual empresa) e investidor em start-ups, também se mostrou decepcionado com o presidente e entusiasmado com o vice. “Votei no Bolsonaro, fiz campanha para ele, mas a campanha acabou. Tem de tirar o celular dele. Ele só vai ganhar a população se mostrar serviço, não tuitando. Gostei bastante do Mourão, é extremamente capacitado, como a maioria dos generais. Passou segurança e estabilidade, está respaldado por essa casa [a Fiesp]. Está bem mais para estadista do que o Bolsonaro.”

Diretor do Simefre, sindicato da indústria de equipamentos rodometroferroviários, Francisco Petrini atribuiu o momento negativo de Bolsonaro à recuperação da cirurgia para se recuperar do atentado a faca sofrido na campanha. “Ele saiu há pouco de uma situação delicada, mas vai aprender. O Mourão, que é excelente, mas também o Heleno, o Santos Cruz e o Floriano Peixoto [outros ministros militares], vão ensinar.”

Roberto Paranhos do Rio Branco, ex-executivo da Brastemp e hoje empresário do setor imobiliário e integrante do Conselho de Inovação e Competitividade da Fiesp, também deu ao presidente um desconto pelos problemas recentes de saúde, mas alertou: “Eles [o governo] estão tentando se entender entre eles, mas está demorando mais do que deveria. Mourão fez o discurso que todo mundo gosta de ouvir. A dificuldade, como estamos vendo, é pôr em prática”.

Dublê de dirigente patronal e político, Paulo Skaf tentou por três vezes se eleger governador de São Paulo (2010, 2014 e 2018), foi derrotado em todas. Em 2017, foi reeleito para seu quarto mandato consecutivo como presidente da Fiesp. Se ficar até o final do mandato, em 2021, completará dezessete anos no cargo. No encontro de terça, Skaf se referiu aos empresários como “guerreiros que produzem empregos, investimentos e riquezas” e disse a Mourão que a presença dele ali significava a “abertura de um canal intenso e próspero entre a Fiesp e o governo Bolsonaro”.

Skaf apoiou Bolsonaro na eleição de 2018. Encontraram-se em novembro, com o capitão reformado já eleito, mas não depois da posse. Com o general Mourão já foram três reuniões desde o início do governo: a primeira aconteceu num almoço na casa de Skaf em São Paulo, em 17 de janeiro. Em 19 de fevereiro, Mourão recebeu Skaf e uma delegação da Fiesp em seu gabinete em Brasília. A desta terça reforçou o bom relacionamento – facilitado pela sintonia fina entre a entidade empresarial e os militares. A Fiesp mantém um Departamento de Defesa e Segurança, cujos titulares são oficiais da reserva das Forças Armadas, e promove anualmente um jantar em homenagem aos militares.

Na noite de terça, depois da reunião extraordinária na Fiesp, Skaf ofereceu um jantar a Mourão em sua casa, no Morumbi, com um número de convidados bem mais restrito, cerca de 30 empresários pesos-pesados, entre os quais Carlos Trabuco (Bradesco), Josué Gomes (Coteminas), Frederico Curado (Grupo Ultra), David Feffer (Suzano), Marcos Lutz  (Cosan) e Flávio Rocha (Riachuelo).
Enquanto o vice confraternizava com representantes de algumas das maiores fortunas do país, o governo Bolsonaro acumulou mais uma derrota no Congresso. Numa votação-relâmpago em dois turnos na Câmara, os deputados desengavetaram e aprovaram uma PEC (Proposta de Emenda Constitucional), parada desde 2015, que engessa mais o Orçamento, diminuindo a autonomia do governo de decidir onde vai investir. Foi de lavada: 448 votos no primeiro turno e 453 no segundo turno. Até o partido de Bolsonaro votou contra o governo.

March 27, 2019

O Chile errado de Bolsonaro


DORRIT HARAZIM

O presidente Jair Bolsonaro pisou em solo chileno esta semana ofendendo de uma só tacada a memória do país anfitrião, a história do Cone Sul e o julgamento universal de humanidade. Só não ofendeu também a própria biografia porque desatinos repetidos não contam.

“Essa questão da dita ditadura aqui do Cone Sul tem que ser lavada à luz da verdade... Tem gente que gosta dele [do ditador Augusto Pinochet], outros que não gostam”, declarou ao desembarcar em Santiago para participar da gênese de um novo bloco regional de perfil direitista, o Foro para o Progresso e Desenvolvimento da América Latina.

Era uma defesa aberta do comentário pornográfico feito pouco antes por seu ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni: “No período Pinochet”, sustentara Lorenzoni em entrevista à Rádio Gaúcha, “o Chile teve de dar um banho de sangue. Triste. Mas as bases macroeconômicas fixadas naquele governo...” Traduzindo: há banhos de sangue que vêm para o bem de reformas econômicas.

Por uma amarga coincidência de calendário, no dia da chegada dos brasileiros uma notícia aguardada há décadas agitou a vida nacional chilena: o julgamento de um crime particularmente horrendo da era Pinochet (1973-1990), o “Caso Quemados”, chegara ao fim com a condenação de 11 militares a penas entre três e dez anos de prisão. Mesmo para o padrão de brutalidade do regime da época, tratava-se de um crime mal digerido até mesmo por simpatizantes de Pinochet. O episódio ocorrera numa tarde de julho de 1986, quando dois jovens que participavam de um protesto foram surrados por uma patrulha militar, encharcados com gasolina, queimados vivos e despejados na periferia.

Moradores que mais tarde descobriram os dois corpos contorcidos ainda conseguiram salvar
Quintana, que tinha 18 anos e está desfigurada até hoje. Mas Rojas, de 19 anos, não resistiu.
Triste, diria Onyx Lorenzoni. É preciso lavar os fatos à luz da verdade, contestaria Jair Bolsonaro.
Essa lavagem da história já foi feita. O democrata-cristão e veterano conservador Patricio Aylwin tinha 71 anos em 1990 quando assumiu como primeiro presidente da redemocratização chilena após 17 anos de regime militar. Ele foi uma espécie de Tancredo Neves, guardadas as características dos dois processos políticos. “Uma transição bem-sucedida não é possível sem a reconstituição da verdade”, sustentava até morrer, aos 92 anos.

Em 1991, ao receber o relatório de 1.350 páginas encomendado à Comissão Nacional de Verdade e Reconciliação (Comissão Rettig), criada por ele para apurar denúncias de assassinatos, desaparecimentos e tortura, Aylwin foi à televisão em cadeia nacional. “O Estado e a sociedade como um todo são responsáveis pela ação ou pela omissão. Por isso, ouso assumir a responsabilidade pela nação inteira e, em seu nome, pedir perdão aos parentes das vítimas..”, disse ele, com voz embargada.
Aquele primeiro relatório elaborado por juristas e técnicos forenses ao longo de nove meses concluíra que 2.296 pessoas haviam sido assassinadas ou “desaparecidas” em mãos de agentes do regime militar. Em 2003, uma nova Comissão da Verdade sobre Prisão Política e Tortura (Comissão Valech), criada pelo ex-presidente Ricardo Lagos, listou 28.450 casos qualificados como vítimas oficiais de detenção ilegal, tortura, execução ou desaparecimento. E, oito anos atrás, o presidente Piñera, então em seu primeiro mandato, recebeu da mesma comissão um rol contendo 32 mil novas denúncias. Ou seja, não tem faltado luz à verdade.

O Chile tem, sem dúvida, muito a festejar — começando pelo Produto Interno Bruto que em 2018 acusou sua maior expansão dos últimos cinco anos. Mas convém não esquecer que Augusto Pinochet foi alvo de uma investigação também de suas finanças privadas. Ela durou nove anos. Segundo levantamento encomendado pela Corte Suprema do Chile, o ditador acumulara US$ 21 milhões ao morrer aos 91 anos. Apenas US$ 3 milhões desta fortuna podiam ser atribuídos a soldos. Ainda assim escapou de uma condenação por enriquecimento ilícito. Morreu em prisão domiciliar, condenado por violação de direitos humanos.

Não espanta, portanto, que os presidentes da Câmara e do Senado do Chile tenham se recusado a participar do almoço oferecido em homenagem a Bolsonaro por Sebastián Piñera. Eles conhecem a verdade. E respeitam a memória do país.

ilustração de MARCELO 


March 24, 2019

A resistência do Chave de Ouro na folia dos Anos de Chumbo

Desfile do Chave de Ouro no Carnaval de 1972. O bloco nasceu com o espírito de desafiar a polícia, que o reprimia em nome da ordem. Foto: Rodolpho Machado / Agência O Globo


Gustavo Pacheco

Em 24 de fevereiro de 1966, o Correio da Manhã publicou um artigo intitulado “Chave de Ouro sai à rua com muita pancadaria”, sobre o tradicional bloco carnavalesco que desfilava nos subúrbios cariocas na Quarta-Feira de Cinzas, sem licença da polícia:

"Desde as 10h30 de ontem os moradores começaram a se reunir para o desfile quando apareceram duas rádios patrulha e um choque da polícia militar. Os policiais, com grande quantidade de gás lacrimogêneo, distribuíram-se por toda a rua e colocaram diversos detetives em shorts entre os populares, para possibilitar a infiltração no bloco. As tentativas para iniciar o desfile começaram às 12h20 com o aparecimento de um carro alegórico, do bloco Bons Amigos, empurrado por um mendigo da Rua Dias da Cruz que por isto foi espancado pelos PMs e colocado em carro da rádio patrulha. Quatro horas depois, ouvia-se um bombo na Rua Adolfo Bergamini 272, onde havia um coreto do Chave de Ouro. Acorrendo, os policiais começaram a espancar os presentes e as pessoas que nada tinham com o desfile, entre eles um rapaz de pernas defeituosas — e foi espancado por doze policiais da PM. Para dispersar o povo que se acercava do local utilizaram-se de bombas de gás, sendo vaiados pelos moradores.
Os conflitos entre a polícia e os populares continuaram até que um soldado da PM atirou uma bomba dentro da farmácia Chave de Ouro e feriu nos olhos a menina Zilmar de Oliveira, de um ano e seis meses, que ali estava nos braços de sua mãe, que comprava aspirina. A pancadaria só terminou com a chegada do Capitão Ronaldo Maciel, que exigiu mais cautela de seus subordinados e permitiu o desfile desde que o bloco fosse acompanhado pelo choque da PM.
Debaixo de grande chuva, o Chave de Ouro iniciou seu desfile às 18h10, com mais de 100 figurantes que cantavam entusiasticamente o samba Este ano não vai ter colher de chá."
Todo mundo sabia que o Cine Engenho de Dentro, na Zona Norte do Rio de Janeiro, era o ponto de concentração do Chave de Ouro. A polícia tratava de chegar antes, como no desfile do Carnaval de 1969. Foto: Arquivo / Agência O Globo
Todo mundo sabia que o Cine Engenho de Dentro, na Zona Norte do Rio de Janeiro, era o ponto de concentração do Chave de Ouro. A polícia tratava de chegar antes, como no desfile do Carnaval de 1969. Foto: Arquivo / Agência O Globo
No Carnaval do ano seguinte, o Correio da Manhã noticiava que o bloco tinha conseguido sair “cantando a marcha da Colombina Iê Iê Iê, com uma letra modificada em sátira à polícia, cuja aproximação pôs os integrantes do grupo em fuga”. A nova letra da marchinha dizia: Ô polícia, onde vai você?/Eu quero ver/O pau comer. Segundo o Jornal do Brasil, para tentar conter os foliões, foram mobilizados uma companhia de cavalaria, cinco pelotões de choque da PM e quatro viaturas da temida Invernada de Olaria, delegacia da Polícia Civil famosa pela violência. Tudo em vão. A matéria trazia uma foto de policiais de capacete, com a seguinte legenda: “A Polícia Militar mobilizou dezenas de homens para impedir a saída do bloco, mas ainda este ano foi ludibriada”. Mas o que o Chave de Ouro tinha de tão subversivo?

Se um dia alguém levar a sério a tarefa de escrever a história do Carnaval de rua do Rio de Janeiro, o resultado deve ficar mais próximo de Macunaíma do que de Raízes do Brasil. Apesar da importância central dos blocos carnavalescos para a memória e a identidade cariocas, a maior parte de sua história só pode ser encontrada nas lembranças nebulosas de quem estava lá. As fontes disponíveis — incluindo, é claro, a memória dos foliões — são cheias de lacunas, contradições e histórias “criativas”; natural, já que os principais atores e testemunhas dos acontecimentos não primavam pela sobriedade. De qualquer forma, se um dia essa história for escrita, o Chave de Ouro terá lugar de destaque. Sua trajetória é praticamente um tratado sobre como nasce, floresce e murcha um bloco de sujos. Faz também calar a boca todos aqueles que teimam em reduzir o Carnaval a um fenômeno de “alienação das massas” e outros clichês semelhantes.
O Chave de Ouro tomava as ruas do Engenho de Dentro até o Méier. O espírito carioca de contestação estava em sua raiz. Foto: Paulo Moreira / Agência O Globo / 1974
O Chave de Ouro tomava as ruas do Engenho de Dentro até o Méier. O espírito carioca de contestação estava em sua raiz. Foto: Paulo Moreira / Agência O Globo / 1974
Chave de Ouro era o nome de uma padaria que existia na Rua Adolfo Bergamini e que acabou dando nome a toda a região situada entre o Méier e o Engenho de Dentro. Na mesma rua ficava o Cine Engenho de Dentro, um tradicional “poeira”, com mais de 800 lugares. Diz a lenda que, na Quarta-Feira de Cinzas de 1942 (ou 1943, ou 1947...), o cinema exibia em sua sessão vespertina uma chanchada carnavalesca quando, de repente, faltou luz. O público, impaciente, logo começou a cantar e batucar nas cadeiras. Um dos lanterninhas, que tinha o apelido de Azeitona, tocava surdo em uma escola de samba e guardava o instrumento no cinema. Ao ouvir a algazarra, começou a tocar. A luz não voltou, e a plateia acabou saindo às ruas, cantando e dançando ao compasso do surdo de Azeitona, que no dia seguinte foi despedido.
Na Quarta-Feira de Cinzas do ano seguinte, o dono do cinema, precavido, chamou a polícia para evitar qualquer bagunça. O que aconteceu a seguir é narrado por um dos fundadores do bloco, Nelson Duarte, em entrevista dada ao Jornal do Brasil em 1971: “Você precisava de ver: foi igual manteiga em nariz de gato. Juntou logo uma comarca para saber o que estava acontecendo. Nêgo pensava que tinha gente morta dentro do cinema. Foi juntando e juntando até que a polícia começou a baixar a lenha. Aí o pessoal compreendeu. Tava formado o bloco”. Na época da entrevista, Duarte tinha 41 anos (“Tão gasto pela boêmia que parece ter 60”) e sua descrição corresponde praticamente ao arquétipo do boêmio dos subúrbios do Rio de Janeiro: “Magro, bigodinho fino, de chinelos, no pescoço uma medalha de São Jorge toda cravejada em brilhantes”.
Em 1972, o bloco Chave de Ouro levou mais de 5 mil pessoas às ruas; nem a presença do delegado delegado José Gomes Sobrinho (abaixo a direita), em primeiro plano, impediu que autoridades fossem enterradas durante o cortejo. Foto: Arquivo / Agência O Globo / Negativo: 82927
Em 1972, o bloco Chave de Ouro levou mais de 5 mil pessoas às ruas; nem a presença do delegado delegado José Gomes Sobrinho (abaixo a direita), em primeiro plano, impediu que autoridades fossem enterradas durante o cortejo. Foto: Arquivo / Agência O Globo / Negativo: 82927
Ainda segundo a reportagem, um alfaiate chamado Luís Teixeira da Silva, mais conhecido como Zé Macaco, organizou “um estado-maior de impor respeito em qualquer roda de bandidos” e saiu pedindo contribuição ao comércio para a saída do bloco. “As contribuições existiam mais por medo do que pelo desejo de participação, porém o dinheiro era rigorosamente empregado na folia do bairro.” Alguns dizem que os vidros das lojas que não colaboravam eram sempre quebrados; outros dizem que isso é um exagero e que, quando o Chave de Ouro começou a reunir muita gente, os comerciantes logo descobriram que podiam faturar com isso e passaram a apoiar o bloco.

Na década de 50, o Chave de Ouro já era uma lenda na cidade, atraindo gente de bairros distantes ao Engenho de Dentro só para ver os foliões desafiar a polícia. Era um bloco de sujos clássico: bateria improvisada com um ou dois surdos e algumas latas velhas, fantasias feitas com qualquer coisa que estivesse à mão, sem cordão de isolamento, sem liderança clara, sem licença da polícia nem de qualquer outro órgão público. Enfim, a síntese da anarquia e da liberdade carnavalescas, sempre tão incômodas para aqueles que nunca vão aceitar que a grande contribuição do Brasil para o mundo é esculhambar a civilização ocidental. Uma dessas pessoas, o delegado Pedro Paulo, declarou ao Jornal do Brasil que “o Chave de Ouro só tem marginais, que saem para fazer baderna e roubar”.

Comentário de Nelson Duarte: “Essa não. Ele está mais por fora que arco de barril”. Ao ser questionado sobre se o bloco tinha algum líder, ele respondeu: “Que líder que nada. Só se for o delegado que diz que nós somos ladrões. A televisão e os jornais dão a maior cobertura e, como o bloco já está famoso, vem gente até de Niterói e Petrópolis só para ver. Mas como ninguém pode ver que leva borrachada, essa turma também sai correndo e aí vira componente do Chave de Ouro. A polícia é quem lidera a fuzarca”.

Não demorou muito para que o Chave de Ouro começasse a sacanear os Poderes Constituídos por meio de paródias de sambas e marchinhas, cartazes ferinos e um caixão de papelão, onde todo ano eram simbolicamente enterrados os desafetos do povo. No Carnaval de 1963, o jornal Última Hora, que fazia oposição ao então governador da Guanabara, Carlos Lacerda, publicou uma matéria intitulada “Bloco proibido desafia e vence polícia: saiu na 4ª Feira de Cinzas”. Na época, Lacerda era acusado de mandar raptar mendigos para afogá-los num dos afluentes do Rio Guandu. O bloco não perdoou, e o jornal também não: “‘A salvação do mendigo’, carro alegórico satirizando os crimes da Polícia de Lacerda no Rio da Guarda, saiu ontem às ruas do Engenho de Dentro acompanhado de 500 foliões do ‘Bloco Chave de Ouro’”.
Dois dos fundadores do Chave de Ouro: Nelson Duarte (à esquerda) e Jorge Macaco (à direita). Foto: Paulo Moreira / Agência O Globo
Dois dos fundadores do Chave de Ouro: Nelson Duarte (à esquerda) e Jorge Macaco (à direita). Foto: Paulo Moreira / Agência O Globo
Mas não eram só os políticos que ficavam incomodados com o Chave de Ouro: a Igreja Católica se escandalizava com um bloco que violava a Quaresma, e a polícia não achava nenhuma graça nas provocações, que incluíam o enterro de delegados e chefes de polícia no caixão de papelão. Com o passar do tempo, a repressão foi ficando cada vez mais acirrada, o que só aumentava a fama do bloco e a disposição dos foliões. O Chave de Ouro conseguia burlar o forte aparato repressivo com táticas como a divisão em pequenos grupos que saíam simultaneamente de lugares diferentes, desnorteando a polícia. Além disso, sempre que o pau comia, os integrantes se dispersavam e se refugiavam na casa dos moradores, que apoiavam o bloco e escondiam os instrumentos e cartazes; assim que a polícia saía de cena, eles voltavam e recomeçavam a bagunça. Ou, como resumiu um morador, em depoimento ao Correio da Manhã: “O pessoal do Chave de Ouro é vivo, sai, desfila um pouquinho e some; eles entram em qualquer casa, o pessoal daqui é chapa; depois que a polícia se afasta, eles tornam a sair e assim conseguem desfilar aos pouquinhos”.
Em plena Guerra do Vietnã, os foliões do Chave de Ouro eram verdadeiros vietcongues do Carnaval carioca. No Carnaval de 1968, a manchete do Jornal do Brasil era “Chave de Ouro saiu de novo adotando tática de guerrilha”. A matéria conta que os diretores do bloco e alguns comerciantes do bairro tentaram conseguir uma autorização com o então superintendente executivo da Polícia, general Osvaldo Niemeyer, mas não tiveram sucesso. Foram até o coreto da Rua Adolfo Bergamini explicar ao povo que o desfile seria adiado até que conseguissem licença. “Os foliões responderam com prolongadas vaias, e, enquanto os dirigentes tentavam convencer os mais exaltados, sob as vistas de dois choques da PM, alguns integrantes do Chave de Ouro iniciavam por conta própria o desfile na Rua Daniel Carneiro, alguns quarteirões adiante. — É a turma da guerrilha — lamentou-se um dirigente, enquanto a PM se movimentava para acabar com o desfile.”
À medida que a ditadura militar se tornava mais violenta, a repressão ao Chave de Ouro também aumentava. No Carnaval de 1969, o primeiro após o AI-5, a manchete do Jornal do Brasil era “Chave de Ouro sai em luta contra o lacrimogêneo do Dops”. A matéria do Correio da Manhã narrava a seguinte cena após a prisão de um folião:
“O homem (um escuro) que a PM prendeu é agredido e preso na Radiopatrulha 8-191. Os moradores ficam revoltados. Uma senhora se aproxima e diz:
— Moço, não precisa bater tanto, ele estava apenas brincando.
— A senhora passou o Carnaval todo dormindo, eu fiquei acordado zelando pela segurança da cidade, comigo é na lei do cão, Carnaval já acabou e eu não brinquei nada”.
Nesse mesmo ano, a PM tocava fogo nos cartazes do bloco quando os fotógrafos dos jornais começavam a registrar o que estava acontecendo. A polícia foi atrás e arrancou o filme das máquinas — pela primeira vez, a matéria do Correio da Manhã saiu sem fotografias.
No desfile de 1971, a tradição se repetiu, com tumulto, bombas, correria e policiais caçando foliões pelas ruas. Foto: Arquivo / Agência O Globo
No desfile de 1971, a tradição se repetiu, com tumulto, bombas, correria e policiais caçando foliões pelas ruas. Foto: Arquivo / Agência O Globo

No Carnaval de 1971, a repressão ao bloco chegou ao auge. Segundo o Correio da Manhã, foram mobilizados 35 viaturas e 200 policiais, que bloquearam as principais vias de acesso ao bairro. O jornal informava que Nelson Duarte fora “detido com uma relação de contribuintes do comércio para a saída do Chave de Ouro” e seria autuado como “achacador e perturbador da ordem pública”. O delegado Silvio Ribeiro Fernandes, da 26ª Delegacia de Polícia, tinha sido informado de que, naquele ano, o bloco tinha feito não um, e sim dois caixões, e em um deles estava o nome do próprio delegado. Fernandes ia de porta em porta, perguntando aos moradores: “O senhor tem um caixão dentro de sua residência?”. Diante da resposta negativa, o delegado agradecia e dizia: “Acredito em sua palavra. Boa tarde e desculpe”. Nada disso, é claro, intimidou os foliões, que mais uma vez brincaram de gato e rato com a polícia. Um folião declarou ao Correio da Manhã: “O nosso negócio é somente gozar a polícia, e se ela não aparecer o bloco acabará morrendo”.

Palavras proféticas. No Carnaval de 1972, o Chave de Ouro estava mais subversivo do que nunca, e os cartazes traziam dizeres como “Fora Negrão” — referindo-se ao então governador da Guanabara, Negrão de Lima —, “Morte à polícia” e até mesmo “Abaixo a ditadura”. Mas a 26ª DP tinha mudado de titular, e o novo delegado, José Gomes Sobrinho, resolveu usar uma tática nova: não só autorizou a saída do bloco, como ainda acompanhou o desfile e permitiu que os foliões subissem e cantassem em cima dos carros de polícia. Além disso, discursou ao público no começo e no fim do bloco com o administrador regional, Gélson Ortiz Sampaio. Em seu discurso, o delegado disse, sob aplausos da população: “Tudo muda nessa vida, e é burrice da polícia querer proibir a saída do Chave de Ouro na Quarta-Feira de Cinzas”. A matéria do Jornal do Brasil termina assim: “Com o samba ‘Paz e amor’ eles encerraram o desfile, dentro da maior tranquilidade. Mas muitos ficaram desconfiados. Acham que o bloco Chave de Ouro perde, assim, sua razão de ser. Entre os descontentes estavam diversas senhoras que afirmaram divertir-se muito mais com o pau comendo do que com discursos”.
Os integrantes do Chave de Ouro se juntavam ao cordão aos poucos, com mais irreverência do que fantasia. Foto: Rodolpho Machado / Agência O Globo
Os integrantes do Chave de Ouro se juntavam ao cordão aos poucos, com mais irreverência do que fantasia. Foto: Rodolpho Machado / Agência O Globo
A partir daí, a história do Chave de Ouro foi outra. O bloco continuou desfilando, mas era evidente que tudo tinha mudado. No Carnaval de 1974, segundo matéria do Correio da Manhã, “30 mil pessoas participaram do quase nostálgico desfile, antes turbulento, do bloco Chave do Ouro”. O delegado saiu na frente do cortejo, novamente acompanhado do administrador regional, que agora era candidato a deputado estadual nas eleições daquele ano, apresentando-se como “o que deixou o bloco Chave de Ouro sair na Quarta-Feira de Cinzas, com proteção da polícia”. Ele não foi eleito. Ainda segundo a matéria, cujo intertítulo era “muito barulho, pouca alegria”, o “melancólico desfile” se encerrou com mais discursos das autoridades: “Nas esquinas, muitos homens idosos lembravam com saudades dos tempos em que ‘o pau comia, mas havia animação de verdade’”. No Carnaval de 1978, o Jornal do Brasil publicou uma matéria intitulada “Fundador admite que o bloco Chave de Ouro perdeu a graça”: “Agora o bloco não tem mais graça, desabafou o diretor do bloco Chave de Ouro, Nelson Duarte”.

O espírito transgressor nunca abandonou completamente o Chave de Ouro, que desfila até hoje com seu caixão de papelão, mas os tempos românticos de desafiar a polícia há muito ficaram para trás. Sem o apelo da perseguição, o Chave de Ouro aos poucos deixou de aparecer nos jornais e na televisão. No Carnaval de 1981, uma reportagem do Jornal das Sete, da Rede Globo, informava que cerca de 1.000 pessoas haviam participado do desfile, que naquele ano enterrou em seu caixão a RioTur, órgão responsável pelo Carnaval carioca. A matéria termina com a repórter informando aos espectadores que, “para o ano que vem, os componentes do bloco Chave de Ouro estão pensando em sair na quinta-feira, já que a saída na Quarta-Feira de Cinzas está permitida”. No meio das imagens, aparece Nelson Duarte, com ar melancólico, desfilando sentado em cima de um camburão da PM.

Gustavo Pacheco é diplomata e colunista de ÉPOCA

March 23, 2019

Grupo de amigos e clientes reabre o Bip Bip, com o mesmo espírito e programação musical

Em 2018, Alfredinho em uma das tradicionais rodas do Bip Bip Foto: Guito Moreto

Lucas Altino

A morte de Alfredo Jacinto Melo, o Alfredinho do Bip Bip , não representou o fechamento do bar que leva seu nome. O espaço, que se transformou em um dos principais centros culturais da cidade, está sendo administrado agora por dezenas de amigos do antigo dono. Com a autorização da família, essa “comissão” reabriu as portas do estabelecimento há duas semanas, com o objetivo de manter intacto o espírito e a programação do Bip Bip.

— Depois da morte do Alfredinho, alguns amigos interessados e apaixonados pelo bar constataram que não conseguiriam viver sem ele. Então nos esforçamos e nos unimos para mantê-lo aberto, com a premissa de que tudo deveria continuar o mais parecido possível com o que o Alfredinho deixou, o que inclui a manutenção de projetos sociais e a programação musical — explica Chiquinho Genu, auditor fiscal e músico amador, responsável por inaugurar as rodas de samba do bar, e que diz ser o cliente mais antigo ainda vivo. — Estou lá há 30 anos. Hoje vivo no Catete, mas já até morei no prédio literalmente em frente ao Bip Bip, quando o Alfredinho conseguiu um apartamento para eu morar. 

A comissão de amigos voluntários tem cerca de 10 pessoas, segundo Genu. O plano de administrar o bar foi aprovado pela família, que nomeou, então, Matias Bidart como o gerente. O grupo, porém, admite que ainda está aprendendo a como gerenciar a casa, que só tem um funcionário, responsável por realizar as compras às tardes,  já que o bar só abre à noite. Um ponto positivo é o fato de o estabelecimento ser um imóvel próprio. Depois da morte de Alfredinho, o Bip Bip ficou fechado por uma semana, até ser reaberto no fim de semana pós carnaval.
“Uma vez, Jaguar escreveu que o Bip Bip é o único bar sem fins lucrativos, e é assim que queremos manter. A gente nem sabe se hoje dá lucro, vamos ver. O que queremos é que continue sendo um polo de cultura, amizade e, principalmente, de solidariedade”
Chiquinho Genu
Auditor fiscal e músico amador


— Uma vez, Jaguar escreveu que o Bip Bip é o único bar sem fins lucrativos, e é assim que queremos manter. A gente nem sabe se hoje dá lucro, vamos ver. O que queremos é que continue sendo um polo de cultura, amizade e, principalmente, de solidariedade — diz Genu, que se define como um “músico abusado”, com boa aceitação nas rodas de samba da cidade. — Outro dia até brinquei que só não consigo imitar a caligrafia horrorosa do Alfredinho e os esporros sem motivo. Mas o resto a gente vai fazendo.

A programação inclui o chorinho às segundas e terças; bossa nova às quartas; e samba às quintas e domingos. Sábado é um dia livre com debates políticos, lançamentos de livros e outras atividades. Sobre os projetos sociais, o objetivo é manter o trabalho que Alfredinho apoiava, como a distribuição de cestas básicas para 42 famílias carentes.

Outra iniciativa tomada por entusiastas do bar foi um abaixo assinado online para que se mude o nome da Rua Almirane Gonçalves para Alfredinho do Bip Bip. O projeto está sendo encampado inclusive por parlamentares, como o vereador Reimont (PT). Genu acredita que essa seria uma bela homenagem, mas não a coloca como algo primordial, e diz que por enquanto a comissão ainda não se envolveu diretamente nisso.

— O falecimento do Alfredinho saiu em tudo quanto é lugar, e o velório foi um acontecimento, uma coisa gigantesca. Esse sábado agora vai ter uma roda de samba na Lapa em homenagem a ele, inclusive. A verdade é que o Bip Bip há algum tempo que é uma verdadeira reunião da ONU, sai em todos guias turísticos, a à noite você ouve todas as línguas do mundo. É um bar turístico sem ser turístico.



Relatos de 'vidas passadas' são colhidos por pesquisadores em Minas Gerais




Ciência e religião se unem no estudo sobre as memórias que seriam de outras vidas Foto: Shutterstock

Élcio Braga

 A cena martela a cabeça da advogada Janaína de Franco, de 42 anos, desde a infância: uma moça atravessa uma pacata rua no bairro de Piedade, na Zona Norte do Rio, e se depara com um carro preto em velocidade. Momentos depois, vê a mãe lamentando a morte da jovem, diante do corpo. Janaína acredita que a vítima desse atropelamento, que teria ocorrido entre 1910 e 1920, tenha sido ela, aos 16 anos, em outra vida.

Em busca de casos como esse, o Núcleo de Pesquisas em Espiritualidade e Saúde (Nupes), da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), lançou o inédito “Levantamento Nacional de Casos Sugestivos de Reencarnação na População Brasileira”. Na primeira semana de cadastramento on-line, mais de cem pessoas fizeram relatos de lembranças que seriam de uma outra vida. 

A pesquisa é liderada pelo psiquiatra e diretor do Nupes, Alexander Almeida-Moreira, em parceria com o professor Jim Tucker, da Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos. Foi lá, a partir dos anos 1960, que o psiquiatra Ian Stevenson coordenou, por quase 50 anos, um grupo que investigou uma série de experiências espirituais, entre as quais a reencarnação.

Olhar científico

Agora, a proposta é oferecer às supostas lembranças de outras vidas um olhar mais apurado de psiquiatras e pesquisadores.
— Nosso objetivo é fazer um grande banco de casos de pessoas que relatam suposta memória de vida passada, para que possamos realmente avançar nesse entendimento. Até hoje, a maior parte das pesquisas foi feita nos Estados Unidos e na Europa. A ideia é entender como essas situações acontecem no Brasil, que características possuem e o quanto, efetivamente, essas memórias podem ser sugestivas e precisas em relação a uma alegada vida passada — observa Almeida-Moreira, também coordenador das seções de Espiritualidade e Psiquiatria da Associação Mundial de Psiquiatria e da Associação Brasileira de Psiquiatria.

A comprovação de dados nos relatos dos participantes constará na segunda fase do levantamento, no ano que vem. Na primeira fase, prevista até o fim do ano, haverá apenas o cadastramento. A pesquisa conta com apoio financeiro da Fundação Bial, que incentiva estudos científicos em neurociências.
— Alguns dos casos sugestivos de reencarnação serão pesquisados in loco, a fim de se investigar com mais detalhes a precisão e possibilidade de acesso da criança ou familiares às informações de uma suposta vida passada — promete Almeida-Moreira.
A maior parte dos relatos, segundo o diretor do Nupes, costuma ser impreciso e genérico, como mostrou estudo de Stevenson com mais de dois mil casos pesquisados.
Um dos casos investigados academicamente foi o de Purnima Ekanayake, nascida em 1987, no Sri Lanka. Segundo o psiquiatra Erlendur Haraldsson, da Universidade da Islândia, ela, aos 3 anos, dizia ter sido, em outra encarnação, um homem que morreu atropelado, quando seguia de bicicleta para o templo de Kelaniya, onde vendia incenso da marca Geta Pichcha.
— Quando se foi investigar lá, identificou-se um vendedor cujo irmão vendia incenso da mesma marca, a Geta Pichcha, no templo. E esse irmão morreu realmente atropelado quando ia vender incenso (em 1985) — conta Almeida-Moreira.

O curioso, observa o psiquiatra, é que a lesão que gerou o óbito do vendedor se localizava na mesma área da marca de nascença de Purnima.
— A menina tinha marcas de nascença, manchas brancas, na região abaixo das costelas. O laudo de necropsia do rapaz mostra que a morte se deu por fratura das costelas, mais nas partes baixas. E essas costelas perfuraram o pulmão e o fígado. Essa criança fez ao todo 20 afirmações sobre suposta vida passada: 14 eram verídicas, três eram incorretas e três eram indeterminadas. Não dava pra saber se eram verdadeiras ou não. Esse é um exemplo de um caso que foi bem investigado — ressalta o psiquiatra.

Religião e ciência se unem na busca por explicações

A crença em reencarnações faz parte de várias religiões, como o budismo e o espiritismo, mas também consegue seguidores em outros credos. Alexander Almeida-Moreira pontua que 44% dos católicos brasileiros acreditam em vidas após a morte — o que iria contra os preceitos da própria religião.
— Cerca de uma em cada quatro pessoas no mundo defendem essa crença. Uma em cada três pessoas nos Estados Unidos acredita em reencarnação. No Brasil, segundo dados recentes, 37% acreditam totalmente na reencarnação, 18% têm dúvidas — diz o líder da pesquisa, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Mas não é só a religião que busca respostas sobre esses relatos de vidas passadas. A ciência também busca entender o que exatamente são essas manifestações de supostas memórias em encarnações.

— Entre situações bastante precisas, em que não há evidência de fraude deliberada, a primeira hipótese se chama criptomnésia, uma memória oculta. Será que essa criança teve acesso a essa informação de alguma forma: vendo na televisão, ouvindo alguém comentar, ou visitando um lugar? Mesmo não lembrando conscientemente, ela reproduz essa informação — observa Almeida-Moreira.
Uma outra hipótese refere-se à memória genética. Seria o caso quando, de alguma forma, a pessoa lembra ser, supostamente, a reencarnação do avô ou do bisavô.
— A memória desse avô teria passado geneticamente para ela. Mas,  do ponto de vista científico atual, as nossas memórias não passam geneticamente. Não há herança das memórias adquiridas para os nossos descendentes. E, mesmo que isso fosse possível, a maior parte dos casos ocorre fora da família. Não há uma linhagem genética. Não teria como passar essas informações via genética, via biológica — pondera o psiquiatra.
Há mais explicações "menos ortodoxas", mas fora do campo científico, conta Almeida-Moreira:
— A criança teria alguma percepção extra-sensorial. Um processo telepático, ou uma clarividência, em que ela obteria informações por vias extrassensoriais sobre aquela outra vida e que ela manifestaria isso. Outra hipótese seria a da sobrevivência da consciência. De alguma forma, efetivamente, aquela consciência, após a morte do corpo físico, sobrevive e ela se manifesta naquela criança.




March 20, 2019

Prefeito diz que Rio é ‘uma esculhambação completa’


O prefeito Marcelo Crivella em café da manhã com servidores da Fundação Parques e Jardins Foto: Divulgação Prefeitura do Rio


March 18, 2019

Torturado por milícia, fotógrafo vive isolado e vê avanço dos criminosos


  • Thiago Amâncio 
     
     Retrato do fotógrafo que, em 2008 quando era fotógrafo do jornal carioca O Dia, foi torturado após uma reportagem sobre milicianos no Rio

    ​"Pô, quando eu vejo essas notícias, volta tudo, né? Eu queria um dia falar pessoalmente para a família da Marielle: É melhor vocês orarem pela alma dela, porque vocês não vão arrumar nada com o estado. Olha eu aí, vai fazer 11 anos."
    O autor do recado é Nilton Claudino, 61. Fotógrafo aposentado, não porque assim tenha decidido, mas para poder manter-se vivo.
    Contratado no jornal O Dia, Claudino investigava, disfarçado, a atuação de uma milícia em uma favela no Rio de Janeiro, em 2008, quando foi capturado e torturado por sete horas e meia, com um motorista e uma repórter.

    "Quando nós fizemos a matéria, você contava nos dedos quantas comunidades eram dominadas pela milícia. Hoje, dominam o Rio todo", diz ele, num inconfundível sotaque carioca e um "meu irmão" como marcador em cada frase.
    Aos 61, Claudino está assustado com o tamanho que esses grupos criminosos atingiram. Inicialmente formados por policiais, bombeiros e agentes penitenciários que monopolizavam serviços como venda de gás e TV a cabo pirata em determinadas regiões, atuando como mafiosos, as milícias hoje possuem poderio comparável ao do tráfico de drogas --atividade que passaram a exercer também.
    O atentado à vereadora Marielle Franco faz Claudino relembrar seu pesadelo, vivido há 11 anos, assim como o discurso adotado pela família Bolsonaro --o presidente já defendeu a atuação desses grupos em sessões públicas quando era deputado, e Flávio Bolsonaro empregou familiares de milicianos em seu gabinete.
    "Você acha que isso vai parar? Você acha que é só ex-policial, ex-bombeiro? Porra, prenderam o cara [suposto assassino] da Marielle, ele mora no condomínio do Bolsonaro", diz. O presidente disse que não se lembra do suspeito.
    "A minha vida é isso aí. Eu não tenho paz. Se eu olhar para um PM, eu já abaixo a cabeça. Sabe quem não olha no olho de um PM? Tá devendo. É bandido. E eu me sinto assim."

    Claudino passou por sete horas e meia de tortura depois de viver duas semanas disfarçado, registrando a ação de policiais em um grupo criminoso que extorquia moradores do morro do Batan, no Realengo, zona oeste do Rio.
    Ele começou no jornalismo pela porta dos fundos: contratado pela editora Abril como mensageiro, foi alçando cargos administrativos até parar na revista Placar como assistente de produção.
    Convidado a escrever sobre uma partida de futebol, recusou. "Como que não quer, meu irmão? Tu vai ser repórter", foi a reação do jornalista Marcelo Rezende, conta Claudino. "Falei: 'Quero ser repórter fotográfico. Amo fotografar'."
    Foi aí que fez a primeira cobertura escondido. "Os caras não deixavam eu entrar no gramado do Maracanã. Começaram a me perseguir e eu fotografei de dentro do placar eletrônico, com minha câmera em um buraquinho", diz.
    Da Placar, Claudino foi para o Jornal do Brasil, O Dia e a TV Globo. Trabalhou com o amigo Tim Lopes (1950-2002), angariando prêmios ao longo da carreira.
    Em 2001, em sua segunda passagem pelo O Dia, disfarçou-se de morador da favela da Maré para investigar a milícia Comando Azul.
    "Um dia, um morador me abordou: 'Vocês têm que sair da favela, fodeu, os caras acharam teu equipamento.' Fomos embora e publicamos a matéria. Caiu o comandante do batalhão."
    Em uma entrevista em 2007, Claudino relatou uma emboscada de traficantes enquanto fotografava uma plantação de maconha no Paraguai. "Prometi nunca mais me envolver em matérias do gênero."
    Mas se envolveu. Em 2008, veio o convite do editor do jornal: investigar uma milícia no morro do Batan.
    "Todo jornalista que frequenta favela no Rio de Janeiro tem que ser meio artista. O repórter do caso do Comando Azul fingia que mancava, arrastava o pé. Eu, naquele meu jeitão de índio, passava por morador."
    Uma coisa que Claudino não sabia, no fim, se mostrou perigosa: a pauta no Batan foi sugerida por um motorista do jornal que havia crescido naquele morro e cujos pais e avós ainda moravam lá.
    "O cara morava na favela, foi criado com o chefe da milícia. Era a maior furada. Se nos descobrissem, o cara e a família toda estariam perdidos"
    Antes de se mudar para o morro, por três sábados ele foi até o local. "Ficava no bar olhando os caras jogando sinuca. Falei que vinha de Mato Grosso do Sul e que estava esperando ser chamado para um emprego. Disse que minha mulher vinha de Minas Gerais e tinha me livrado do alcoolismo, porque era da igreja."
    No dia 1º de maio, os dois se mudaram para o terceiro andar de uma casa. A repórter arrumou um emprego em um bar como cozinheira e passou a frequentar uma igreja. Mobiliaram a casa com móveis usados, doados e vendidos por vizinhos, de quem tinham conquistado a confiança.
    "Chegou uma hora, eu tava fazendo churrasco, pô, com os caras da milícia."
    Semanalmente, iam a uma LAN house fora da favela de onde enviavam relatórios ao jornal, dando detalhes do que viam: policiais fardados achacando moradores. Encontraram sites onde a milícia e o crime organizado exibiam orgulhosos fotos de suas vítimas.
    Depois de mais ou menos dez dias, quando já se davam por satisfeitos, um político foi à favela fazer campanha e o jornal pediu que ficassem para ver se flagravam compra de votos. Ficou acordado que iriam embora em 15 de maio.
    "Deixei para fazer as fotos no último dia, para não correr risco. De dentro do carro, sem flash, fotografei os caras fazendo churrasco, fardados, bebendo com a Madalena, um caibro desse tamanho. Dele eu tinha medo."
    Além do porrete chamado de Madalena, portavam um taco apelidado jocosamente de "direitos humanos" e um chicote chamado "Catarina", relatou Claudino à polícia depois.
    Após tirar as fotos, combinou de assistir a um jogo do Botafogo com o motorista do jornal. "Já estava combinado que eu ia embora no dia seguinte. Ia na kombi dos milicianos, os caras iam me levar na rodoviária. Olha que loucura."
    "Tomei um banho e desci. Quando chego na lanchonete, bicho, já vem aquele carro, os caras de AR-15. 'Filha da puta', eu já tomei uma mãozada no ouvido. E aí, mermão, falei, fodeu, todo mundo morto."
    A acusação: "Jornalista filho da puta, atrapalhando nosso trabalho". Haviam sido descobertos. Àquela hora, a favela estava cheia, e a humilhação foi um espetáculo público.
    Colocaram num carro fotógrafo, repórter, motorista e um morador da favela que não tinha a ver com a história, todos encapuzados. Foram até uma casa em outra favela.
    Em uma sala, algemados, ouviu o motorista gritar que tinha escorpiões em suas costas. Não paravam de apanhar.
    "E eu ouvia e via uns coturnos vindo. Vivi no meio de polícia, não vou saber o que é coturno? E ouvi os camburões chegando. Carro de polícia no Rio não tem manutenção e tem um barulho específico, de cano de descarga fodido. Ouvia os carros chegando, um por um, devia ter uns cem homens ali dentro".
    Foram levados a uma outra sala. "Tinha uma luz mais clara. E aí, mermão, aí foi foda. Aí eles pegavam um saco, botavam em mim, e a repórter na frente. Eles tiravam de mim, e eu uuhh [imita o barulho da asfixia].
    Eles tiravam de mim e botavam na repórter. Da repórter vinha pra mim. E eu pedi duas vezes pra não fazer, porque ela era mulher. Os caras botavam duas vezes em mim, e uma vez nela. E aí eu fui quase morrendo."
    Claudino tentou argumentar. "Eu tenho a maior moral dentro do jornal. Sou amigo da dona. Vamos conversar. Não faz isso comigo. O jornal sabe onde eu tô, se vocês me matarem estão ferrados, os caras sabem quem são vocês."
    Os milicianos pediram endereços de email e senha dos torturados e enviaram por rádio a outras pessoas. Minutos depois, alguém chegou trazendo folhas impressas. "Pegaram o email da repórter. Maluco, as matérias todas lá. Já tinha mandado tudo, os nome dos caras". Apanharam mais.
    Em uma sala ao lado, tiraram seus sapatos, colocaram todos sobre uma poça de água e passaram a dar choques elétricos. "Aí apaguei. Vi meu corpo, meu espírito saindo do meu corpo. Juro por Deus. Meu corpo lá, tentando se salvar, acordar, mas meu espírito já estava fora", relata Claudino, pela primeira vez chorando durante a conversa.
    Claudino via pneus queimando em uma favela em frente, dominada pelo Comando Vermelho. "Eles falavam que iam matar a gente lá e colocar a culpa no tráfico."
    Por volta das 5h, levaram-nos até a casa dos pais do motorista. Buscaram a câmera que ficou na casa da avó dele. "Olharam as fotos, ficaram putos, me deram mais um cacete ali. Aí o cara falou 'Agora você vai me ensinar a mexer nessa máquina, que eu vou fotografar vocês. Se essa matéria sair, sabemos onde você mora."
    Na dúvida do que fazer com eles, diz Claudino, chamaram os moradores até uma praça. "Diziam que a gente ia morrer apedrejado, igual à Madalena".
    Decidiram soltá-los, sob ameaças --não queriam atrair holofotes como no caso de Tim Lopes, morto seis anos antes. O pai do motorista os levou de carro até a estação da Leopoldina. Evitaram a avenida Brasil.
    "Pensei que iam matar a gente lá, chega um cara, metralha e acabou."
    No carro, a repórter gritava, desesperada, acusando um jornalista d'O Dia de tê-los delatado. Os milicianos a chamaram por um apelido pelo qual era conhecida na redação e descreveram as mesas deles no jornal com detalhes.
    Já em casa, telefonaram para o diretor do jornal e planejaram o que fazer. Foi quando viu que o pesadelo só começava. Mentiu no hospital que tinha caído de um cavalo. "Aí começou a fuga. Entramos num táxi, 'vup' para Friburgo, Teresópolis, minha família foi para o Nordeste, eu para o Pantanal, dali pra Bolívia."
    "Todos os dias pensava em me matar. Não virei um animal não sei por quê. Eu sei. Porque minha fé salvou minha vida." Foi morar em Florianópolis com a família, por recomendação do então ministro da Justiça, Tarso Genro.
    Um dia antes de se mudar para o Batan, Claudino tinha recebido R$ 900 mil por uma ação trabalhista contra o Jornal do Brasil. "Só eu e meu advogado sabíamos que esse dinheiro estava na minha conta."
    "Em Florianópolis, eu ia ao banco, pegava R$ 5.000 por dia. Botava R$ 1.000 numa igreja, R$ 500 na outra. Ia ao centro espírita, comprava cobertor, material escolar. Saía distribuindo aquele dinheiro. Comecei a pagar meu tratamento por fora, nem cobrava do jornal. Quando eu vi, não tinha mais dinheiro."
    Seu cachorro morreu na época. "Era meu único amigo". Foi o estopim para que Claudino sumisse por 15 dias. "Quando voltei, a PF estava atrás de mim. Falei pra minha mulher: 'Não posso ficar perto de vocês, vou ficar louco'." Foi embora.
    O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em segunda instância, negou indenização do estado do Rio a Claudino.
    Um acordo trabalhista com o jornal O Dia previa que a empresa lhe pagasse R$ 1,315 milhão em 124 parcelas. Desde janeiro de 2018, porém, não recebe --o que tem lhe causado dificuldades financeiras, já que não pode mais trabalhar. O jornal entrou em recuperação judicial naquele mês e 53 parcelas ficaram pendentes, segundo a direção da empresa, por questões legais.
    Procurado, O Dia diz que a situação de Claudino deve ser resolvida em até 120 dias. As torturas a que ele e os colegas foram submetidos renderam condenação de 31 anos de prisão a dois homens.
    Considerado chefe do grupo criminoso, Odinei Fernando da Silva, que era inspetor da Polícia Civil, está desde 2016 em liberdade condicional. Davi Liberato de Araújo também tinha o benefício até ser preso em dezembro do ano passado se passando por policial para extorquir comerciantes.
    A história foi parar em Tropa de Elite 2. Mas, no filme, os jornalistas não são soltos. "Meu filho de 15 anos um belo dia me liga, chorando pra caralho, gritando. 'Pai, botaram a tua história, você tá morto'. Que filha da puta, né, bicho, o cara pegou minha história e botou lá."
    Visitar o Rio, diz, só do alto do avião. "Esqueci o rosto de muitos amigos depois dessas minhas fugas, depois da tortura, depois dos remédios."
    Claudino diz que nunca mais ouviu falar da repórter e do motorista. "Não quero saber, porque se me pegarem não tenho quem caguetar."





    March 17, 2019

    Videogames viraram 'bode expiatório' de massacres, dizem especialistas

    Jogo

    Renato Grandelle e Helena Borges

    Quando chegou ao Palácio do Planalto na última quarta-feira, horas após o ataque que deixou nove mortos na escola estadual Raul Brasil, em Suzano (SP), o vice-presidente da República, Hamilton Mourão, foi questionado por jornalistas sobre o crime. Lembrou que esse tipo de incidente vem se tornando mais usual no país e deu sua opinião sobre as causas disso:

    — Hoje, a gente vê essa garotada viciada em videogames violentos. É só isso que fazem, eu tenho netos, e muitas vezes os vejo mergulhados nisso aí — disse Mourão. — Quando eu era criança e adolescente, a gente jogava bola, soltava pipa. A gente não vê mais essas coisas. É com isso que a gente tem de estar preocupado.

    A cada novo atentado como o de Suzano — em Realengo (2011), Goiânia (2017), Medianeira (2018), ou nos casos americanos, como o de Columbine (1999) —, opiniões como a do vice-presidente ressurgem como uma tentativa de explicar o comportamento dos jovens criminosos.

    Relatos de parentes e objetos encontrados nas casas de Guilherme Taucci Monteiro, de 17 anos, e Luiz Henrique de Castro, de 25, os dois assassinos de Suzano, mostraram que eles eram de fato jogadores frequentes: iam três vezes por semana a uma lanhouse jogar games “Counter Strike” e “Call of Duty”, em que o usuário assume o ponto de vista do personagem na tela.
    Dono da empresa desenvolvedora de videogames Aquiris, responsável pelo jogo de tiros “Ballistic Overkill”, Amilton Diesel lamenta que episódios de barbárie sejam atribuídos à influência de um game:
    — Em vez de procurar remediar as psicopatias e os problemas psicológicos das pessoas, querem tirá-las dos meios de comunicação (nesse caso, um jogo), como se resolvesse a questão.

    Segundo Diesel, o mercado de desenvolvedores está mais preparado para enfrentar críticas da sociedade:
    — O jogo “God of War”, por exemplo, sempre foi violento, mas recentemente sofreu adaptações para torná-lo menos gráfico, como trocar a cor do sangue para laranja.
    Autor do livro “Videogame e violência” (Civilização Brasileira) e professor de Criminologia e Direito Penal da Universidade Federal do Rio Grande (Furg), Salah H. Khaled Jr. avalia que a tragédia pode desencadear um episódio de “pânico moral”.
    — Diante de um massacre, é tentador buscar soluções simples, identificar uma única causa para um problema complexo, e acreditar que, atacando-a isoladamente, uma tragédia não se repetirá. É isso o que fazem ao culpar os jogos, que são transformados em bodes expiatórios — critica. — Não há estudos que corroborem a ligação entre os games e o aumento da violência de forma satisfatória.
    Khaled Jr. avalia que a sociedade consome violência por diferentes mídias, como filmes, livros e videogames. É nesse contexto que surge o que pode ser definido como uma vontade de representação: o desejo de protagonizar condutas criminais e ser admirado por elas. Para o professor da Furg, a violência do game pode ser uma válvula de escape para a violência real.

    — Existem muitas recompensas subjetivas para a prática de crimes, como a sensação de empoderamento que o sujeito experimenta diante da sociedade que ele considera opressora e da subjugação das vítimas ao seu poder.

    Fatores psicológicos são mais importantes

    Guilherme Taucci Monteiro e Luiz Henrique de Castro encaixam-se no perfil dos protagonistas de atentados. Normalmente, diz Khaled Jr., são jovens do sexo masculino, que têm problemas familiares, sofreram bullying durante a vida escolar e têm transtornos mentais não identificados ou tratados:
    — Os games podem ter influenciado na forma que a violência assumiu, mas, se retirados de cena, ela aconteceria de qualquer modo.
    Psicóloga e especialista em adolescente e família, Renata Bento pondera que o adolescente é o público mais vulnerável a esses ataques, já que, nessa faixa etária, há um distanciamento dos pais para que ele forme sua própria identidade.
    — Não se pode explicar uma tragédia sem levar em consideração aspectos biológicos, psicológicos e sociais. Há um uso abusivo da internet. Um adolescente que leva muito tempo on-line fica desconectado da vida afetiva e familiar, que são os pilares que vão ajudá-lo na travessia da adolescência — assinala.
    Bento acredita que, em um indivíduo muito influenciável, o foco em jogos violentos é motivo para “tocar uma sirene”. Além disso, pede para que os pais respeitem a privacidade dos filhos, mas que os mantenham sob supervisão:

    — Muitos pais veem os jovens, mas não sabem o que está passando dentro deles. É preciso aproximar-se. O adolescente pode falar que não precisa de ninguém. É o contrário. Deve ter seu espaço, mas quer se sentir visto e precisa de uma referência. 




    Vida e trajetória de Marielle inspiram projetos de jovens negras de favelas


    Exemplo da vereadora, morta há um ano, impulsiona projetos sociais e políticos de outras mulheres 

     

    Ana Luiza Albuquerque Júlia Barbon

    Se calaram Marielle Franco (PSOL), falam cada vez mais alto as Blendas, Milenas, Thaises e Rayannes. É uma geração de mulheres jovens, negras e criadas em favelas, a exemplo da vereadora, que foram impulsionadas por sua eleição e por sua morte, ocorrida há exatamente um ano —dois suspeitos de serem responsáveis pelo crime foram presos na terça (12).
    São ativistas que viram na parlamentar um estímulo para seus projetos políticos ou sociais. “Não tem como falar da gente sem falar das que vieram antes”, diz Milena Santos, 24, nascida no morro do Borel, na zona norte carioca.
    No caso dela e de sua amiga Blenda Paulino, 20, Marielle serviu como semente. Dias depois do assassinato da vereadora, elas fundaram com amigos de outras favelas um coletivo para discutir política.

    O grupo de jovens, batizado de Brota na Laje, se reúne quinzenalmente em lajes da zona norte para aproximar o tema de suas comunidades. O próximo passo é implantar um cursinho pré-vestibular no Borel. Foi por meio de um desses cursinhos que Marielle, nascida no Complexo da Maré, chegou à PUC-Rio.
    “A Marielle foi a primeira mulher negra em quem votei. E votei com a maior felicidade do mundo, por ser alguém que sabia que abraçaria as causas que me afetam diretamente”, afirma Blenda.
    Filha da deputada estadual Mônica Francisco (PSOL), ex-assessora de Marielle, Milena acompanhou de perto o mandato da vereadora. “Ela sempre falava que não tinha vocação para ser mártir, mas foi o que acabou se tornando. A gente não quer nossos heróis mortos”, diz.
    Rayanne da Silva, 21, esteve com Marielle na noite de seu assassinato. Também ex-assessora da parlamentar, a jovem participou do evento com mulheres negras em que ela estava momentos antes de ser morta. “Temos que transformar o medo em alguma coisa. Existia uma Marielle, mas olha quantas somos”, afirma.
    Quando conheceu a vereadora, Rayanne logo se deu conta das similaridades entre suas histórias de vida. Nascidas na Maré, ambas foram mães aos 18 anos, ingressaram no pré-vestibular comunitário e atuaram em ONGs. “Essa vontade que eu tenho foi personificada numa pessoa que teve uma superpotência. Dá um estímulo.”
    Hoje ela promove a articulação com movimentos sociais no gabinete da deputada estadual Renata Souza (PSOL). Às vezes também acompanha a atuação da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do RJ, presidida pela parlamentar.
    Rayanne acha que a história de seus familiares poderia ter sido diferente se eles soubessem o que o grupo faz. Isso porque, há dez anos, tiveram dificuldade para enterrar seu pai, dependente químico, assassinado em uma favela de uma facção rival à da comunidade em que morava.
    Os traficantes não queriam entregar o corpo, e a família teve que pagar à polícia para ajudar a liberá-lo. A comissão, acredita, poderia ter facilitado a resolução do problema. A situação simboliza a distância entre a política institucional e moradores de comunidades.

    Quem também percebeu essa distância foi Thais Ferreira, 30, empreendedora social. Durante o acompanhamento da gravidez em hospital público, com problemas na estrutura e no atendimento, ela notou que mulheres muitas vezes não conheciam seus direitos.
    A partir daí, criou o Mãe&Mais, projeto que já levou assistência e informação a grávidas e mães em 21 locais no Rio. Alguns anos depois, em 2018, se candidatou a deputada estadual pelo PSOL, mas não foi eleita e se tornou suplente.
    Thais diz que a política sempre fez parte de sua trajetória. “Não é que aconteceu uma coisa na minha vida que me despertou para a luta. Já nasci no meio dela, seria estranho se não a honrasse.”
    Ela conta que era muito tímida até a quinta série, quando pediu para mudar da escola privada para a pública. “Na escola particular não me reconhecia em ninguém. Meu irmão contava coisas incríveis sobre a escola pública, dizia que tinha um monte de criança preta igual à gente.”
    Dias antes de ser assassinada, Marielle perguntou se Thais iria mesmo se candidatar. Era comum que a vereadora incentivasse outras mulheres negras a dividir com ela o espaço da política institucional. Marielle tinha um lema: “Uma sobe e puxa a outra”.





     


    fotos Danilo Verpa e Raquel Cunha