April 29, 2016

A taça do mundo

ZÉLIA DUNCAN

Nasci em 64. Demorei um certo tempo, o tempo de ficar maiorzinha, pra entender por que, quando eu dizia o ano do meu nascimento, assim como quando digo que sou do signo de escorpião, algum adulto levantava as sobrancelhas e apertava a boca. Consigo ter lembranças nítidas da Copa de 70. Poucas, mas fortes. Morávamos numa vila em Niterói, os vizinhos se juntaram. Não me lembro dos gols, lembro-me das imensas bandeiras, de um verde que parecia muito escuro.

Lembro que às vezes um torcedor distraído e eufórico passava pela criança pequena que eu era e deixava aquela bandeira deslizar sua extensão no meu rosto. Era macia a bandeira, embora me assustasse um pouco aquele contato repentino, fogos estourando de perto, o grito seguido de abraços desajeitados daqueles adultos. Foi a primeira felicidade coletiva que conheci, até o comício das Diretas Já, muitas cores depois. Ninguém ali parecia descontextualizado, todos queriam muito a mesma coisa, todos obtiveram a tal coisa, a taça! A taça do mundo era nossa. Com o brasileiro não há quem possa, cantavam pelas ruas e TVs. O mundo parecia tão bom e tão nosso. Da alegria, das famílias, do bem, dos vizinhos que se amavam incondicionalmente, num tempo em que todos se juravam igualmente campeões. E a seleção brasileira no colo, no centro do coração do povo.

A palavra ditadura nunca foi confortável de se dizer e ouvir, segundo minha percepção já de adolescente. Da mesma leva que embalava o tricampeonato foi tirado o nome do filme “Pra frente, Brasil”, que relata uma história que acontecia no mesmo ano de 1970 (quando eu era aquela criança feliz e harmonizada). O roteiro traz um pacato trabalhador, que é confundido com um ativista político. A confusão lhe custou a vida e muito, muito sofrimento antes disso. O filme de Roberto Farias é de 1982. Foi a primeira vez que revisitei aquela sensação da bandeira macia no rosto. Naquele dia me ardeu na lembrança, me senti uma traidora-mirim da pátria. No filme, o personagem perde a vida, enquanto os gritos de gol superam seus gritos de socorro, bem como seu último suspiro.

Graças à música brasileira, pra onde me mudei, e aos álbuns de Chico, Caetano e Gil, principalmente, fui caindo em mim, e nesse tombo necessário, enxergando com mais realidade os fatos. Na verdade, são nossas histórias pessoais, somadas ao que estava ou não em nossas mamadeiras, que viram os ingredientes do nosso olhar e da nossa forma de perceber o mundo que queremos e podemos ver. É que algumas coisas, as que cerceiam a liberdade, reprimem, perseguem, torturam e tiram a vida de tantas pessoas, sempre achei que seriam unanimemente execradas, por suas consequências óbvias e maléficas, que já sentimos na pele. E que seríamos sempre bons vizinhos, porque nessas coisas que me pareciam e parecem fundamentais, estaríamos juntos, na mesma luta. Mas nada é bem assim.

“Quem é esta mulher, que canta sempre esse estribilho? Só queria embalar meu filho, que mora na escuridão do mar…” Sempre sofri com essa canção, mesmo antes de entender que não se tratava de um menino que se afogou literalmente, mas que essa mulher era Zuzu Angel, cujo filho, assassinado pelos militares e desaparecido pra sempre, transformou sua vida em luto irremediável e numa batalha insana por respostas, que só terminou com sua própria morte, num “acidente” previsto por ela mesma e jamais admitido ou desvendado com a honestidade merecida.

Anda praticamente impossível afinar discursos, travar bons diálogos, ou aprender com as opiniões que divergem. Divergir, hoje, significa declarar guerra, abrir represas de ódio e relações de cimento. O mais impressionante é termos princípios tão diferentes e distantes quando o assunto é tortura e crime. Tudo bem que existam opiniões que nunca vão se encontrar, mas não estarmos juntos, de mãos dadas pra cuspir na desumanidade de quem evoca orgulhosamente o nome de um torturador criminoso, sádico, numa votação dentro de um Congresso Nacional é inacreditável. Já tínhamos engolido nomes de netos, filhos precocemente engravatados, babando por aparecer. Selfies inoportunas, rompantes desproporcionais, desrespeitos de toda ordem. O rei dos réus presidindo a sessão já deveria ser ilegal, e, eu pergunto: exaltar assassinos confessos na hora de um voto tão importante para todos não seria também algo que precisa de uma consequência? Esse mesmo sujeito, Jair Voldemort Bolsonaro, exalta também Eduardo Cunha, o cínico dos cínicos, esfrega na nossa cara esse poder sombrio que os une, o poder de tirar o pudor do armário. O pudor de ser uma criatura da lama virou orgulho de repente. Andamos tão enviesados moralmente que, no Brasil, até o diabo pede misericórdia e todos dizem amém

O Globo,  22 de abril de 2016

April 28, 2016

A segunda vitima

Verissimo

 

Era improvável que a Dilma usasse alguns dos poucos minutos da sua participação na conferência sobre o clima nas Nações Unidas para falar no golpe que ameaça seu governo, mas o pânico se instalou mesmo assim. Ela iria denegrir a pátria diante do mundo! Houve uma mobilização geral para contestar o ainda não dito. Os ministros do Supremo Celso de Mello e Gilmar Mendes se apressaram a declarar que, ao contrario do que a Dilma poderia dizer na ONU, o impeachment em curso estava longe de ser um golpe. Estranho açodamento de quem, cedo ou tarde, terá que julgar questionamentos jurídicos do que está ou não está acontecendo no Brasil. Mas não importava a inconfidência espontânea dos magistrados, importava a negação do que a Dilma diria. Antes que ela dissesse.

O Senado mandou o senador Aloysio Nunes atrás da Dilma, com a missão de rebater o que ela falasse, fosse o que fosse. E a Câmara, que não tinha dinheiro para pagar a passagem de uma testemunha de acusação do Eduardo Cunha na sua comissão de ética, subitamente encontrou uns trocados no bolso de outra calça e mandou dois deputados a Nova York, também para desmentir a Dilma. Não se sabe exatamente o que os dois fariam, se Dilma pronunciasse a palavra “golpe”. Pulariam das suas cadeiras e gritariam “mentira!”? Começariam a cantar o Hino Nacional para abafar a voz da traidora? Nunca saberemos. Dilma não disse o que todos temiam que ela dissesse. Depois, em particular e para jornalistas, falou em golpe à vontade. Mas na ONU, diante do mundo, frustrou a expectativa de todos. O pânico foi em vão. Os dois deputados brasileiros teriam sido barrados na entrada do plenário da ONU, mas isso eu não sei se é verdade. Teria sido um final adequado para a farsa.

Dizem que a primeira vítima de uma guerra é sempre a verdade. Se for assim, a segunda vítima é certamente o senso do ridículo.

O GLOBO, 28 DE ABRIL DE 2016

April 23, 2016

Olympia

Jean Carlos Novaes


Tenho amigos e clientes Engenheiros e Arquitetos. Conheço vários que vem em longa carreira na Prefeitura e nas faculdades do Rio. Alguns, certamente os melhores. A Geo-Rio tem uma equipe experiente, porém subutilizada. A maior parte das obras feitas pela Prefeitura do Rio, que tem um interesse político-econômico do Prefeito Eduardo Paes, são aprovadas ao arrepio da lei. Poderia citar aqui uma dezena delas. Tive a oportunidade de participar de algumas reuniões do Conselho Municipal de Meio Ambiente do Rio durante o procedimento de licenciamento da obra do Golf Olímpico, e o que vi lá foi o rolo compressor do Prefeito passando por cima de toda a equipe técnica, empurrando goela abaixo da população uma obra absolutamente imoral, ilegal e criminosa. 

Uma obra como a da ciclovia da Niemeyer, em primeiro lugar, não deveria ter sido sequer realizada, pois, os Costões Rochosos são considerados pela Constituição Estadual e Lei Orgânica como Área de Proteção Permanente, isto é, aquela área só poderia receber intervenções em hipóteses bem restritas. De qualquer maneira, qualquer obra a ser realizada numa área dessas deveria ser precedida de Estudos de Impacto Ambiental e de Audiências Públicas. A população tinha o direito constitucional de dizer se preferia uma ciclovia de 45 milhões ou outra obra, ou quem sabe melhorias nas escolas ou nos hospitais. Nos parece que num Estado e Cidade falidos como o nosso, essa ciclovia - que mais parece a reencarnação da Perimetral -, estava longe de ser uma prioridade, considerando-se a forma como foi concebida: sem estudos ou pareceres que indicassem a necessidade de uma obra desta envergadura naquele local. Criar espaços para a utilização de bicicletas é andar na direção correta. Entretanto, o que não dá para engolir é a utilização dos motivos corretos (criar ciclovias) para os fins errados: marketing político em ano eleitoral e a execução de obras grandiosas para camuflar superfaturamentos, que ordinariamente é o que ocorre. 


Assim sendo, considerando-se que as “obras olímpicas” foram levadas a toque de caixa, com um olho no calendário esportivo e o outro, num interesse maior no “faturamento” e nos “dividendos” que iam gerar para os “Parceiros” da administração da ‪#‎Rio2016‬, financiadores das campanhas de Eduardo Paes e de Pedro Paulo, me parece desfocado procurar responsabilidades apenas no âmbito da concepção ou execução de projetos, ainda que tudo aponte nessa direção. 


Quem “encomendou” essas obras e fez de tudo para aprová-las, passando por cima do devido processo legal, não estava nenhum pouco preocupado com detalhes tão óbvios como a onda do mar. Não é de hoje que várias vozes têm se levantado contra o “golpe” diário que nossas leis sofrem, contra a subtração de direitos, contra a falta de transparência e contra a “apatia” do Ministério Público Estadual e a complacência do Judiciário. Desta forma, reduzir responsabilidades ao nível puramente técnico em casos específicos não nos parece contribuir para o “aperfeiçoamento” do sistema de controle das obras públicas e, inevitavelmente, nos conduzirá a outros infortúnios como esse.

April 22, 2016

A salvação já começou

bernardo mello franco

 

Os petistas ainda não limparam as gavetas, mas o novo regime já começou a implantar sua doutrina de salvação nacional. O primeiro na fila de resgate é o deputado Eduardo Cunha. Depois de seis meses de manobras, ele está prestes a se livrar de vez do processo por quebra de decoro parlamentar. 

A nova fase da Operação Salva Cunha foi deflagrada no domingo. Enquanto o país assistia ao show do impeachment, aliados negociavam um ponto final às investigações contra o peemedebista. A ideia é premiá-lo com uma "anistia" pelo empenho para derrubar Dilma Rousseff. "Todo mundo sabe que sem Eduardo Cunha não teria impeachment", disse o deputado Paulinho da Força. "Ele merece ser anistiado", defendeu.

Horas depois de ser chamado de "gângster", "bandido", "canalha" e "ladrão" em rede nacional, o presidente da Câmara acordou fortalecido na segunda-feira. Ontem seu aliado Waldir Maranhão levou a pizza ao forno.

Com o Congresso esvaziado, escalou um colega para anunciar novas amarras ao Conselho de Ética. Mesmo que o processo vá adiante, Cunha já tem maioria para trocar a cassação por uma pena mais branda.

Para isso, conta com a cumplicidade da oposição, que parou de atacá-lo, e do velho aliado Michel Temer, prestes a se tornar usufrutuário da faixa presidencial. O Supremo continua a lavar as mãos. O pedido para afastar Cunha está na corte desde dezembro, sem data para ser julgado.

Em outra frente, os salvacionistas articulam um enterro para o processo de cassação da chapa Dilma-Temer no TSE. No dia 13, o ministro Gilmar Mendes ressuscitou a ideia de se

 

 

 

O golpe no exterior


Fernando Molica

É compreensível que a oposição tente jogar na conta da Dilma a responsabilidade pelas muitas reportagens e editoriais de importantes jornais, revistas e TVs internacionais que criticam o processo de impeachment. Mas chega a ser constrangedor que jornalistas brasileiros afirmem que colegas do New York Times, Wall Street Journal, Le Monde, Guardian, CNN e Economist (para citar apenas os principais) estejam sendo enganados pela presidente.

Chega-se a dizer que os repórteres desses veículos são desinformados, inocentes, incapazes de separar a realidade do discurso oficial. Engraçado é que as reportagens internacionais que eles publicaram sobre o Petrolão eram sempre destacadas por aqui e tomadas como exemplos de verdade absoluta. Parece que, agora, nossos coleguinhas internacionais ficaram idiotas e governistas.

Li vários artigos e reportagens que saíram nos últimos dias na imprensa internacional. Em linhas gerais, iam na mesma linha: Dilma não é acusada de roubo; o presidente da Câmara e centenas de deputados respondem a processos; o vice-presidente articula para chegar ao poder; a votação do impeachment foi constrangedora; o afastamento da presidente tem tudo para piorar a situação econômica do país. Uai, alguma novidade nisso tudo, tem alguma mentira aí? Vale citar que os colegas gringos não negaram a roubalheira na Petrobras, a corrupção no governo petista e as tais pedaladas fiscais.

Alguns de nossos colegas brasileiros afirmam que, ao falar em golpe, Dilma transforma o Brasil numa republiqueta, algo que afetará os investimentos estrangeiros, que aumenta a insegurança institucional. Bem, a sessão de domingo e os votos em nome de Deus, dos netos, da família e do torturador não ajudaram a melhorar nossa imagem, né? E, caramba, ao falar em fraude nas eleições, ao dizer que as urnas eletrônicas tinham sido manipuladas, o PSDB também contribuiu para nos atrelar aos países mais folclóricos da região. Até hoje a derrota nas urnas não foi deglutida, o que contribui para aumentar a instabilidade política.

Ao falar em "golpe", Dilma e seus aliados apenas reforçam o caráter político do processo de impeachment, uma característica ressaltada o tempo todo pela oposição - citada até mesmo para justificar a necessidade de o STF não entrar no mérito do eventual impedimento da presidente, afinal de contas, impeachment é um processo político (quantas vezes não ouvimos isso nas últimas semanas?). Enfim, se a oposição pode (e pode mesmo, é do jogo) tratar do tema politicamente, é razoável que o governo também possa.

É muita inocência também achar que os petistas não iriam lutar contra o impeachment, que iriam ficar quietos. Claro que fariam barulho. O governo é acusado de, ao resistir ao impeachment, manter o país na confusão por, pelo menos, mais seis meses (tempo do julgamento de Dilma pelo Senado), mas a oposição também contribuiu para o caos, principalmente depois da eleição de Eduardo Cunha para a presidência da Câmara, ajudou a piorar um governo que já era muito ruim. Enfim, o processo é político, os lados em disputa têm o direito de usar suas armas.

O DIA , 22 DE ABRIL DE 2016 

April 18, 2016

Nada para comemorar


O bolão do impeachment é a cara do Brasil que acha que tem algo a comemorar no dia de hoje
Dorrit Harazim

Aviso a quem festejar com arroubos cívicos o final da votação de hoje no Congresso, fadada a culminar com o triunfo de um dos brasis em confronto: nada há a comemorar. Este domingo 17 de abril em que o país assiste à etapa-chave do rito de impeachment da presidente Dilma Rousseff representa um dia de derrota nacional. Para todos, inclusive quem festejar até o sol raiar.

Um país que desde 1945 só conheceu quatro transmissões de faixa entre presidentes eleitos deveria ter tido mais zelo por suas instituições antes de permitir que elas sejam testadas com atalhos constitucionais.

Ao contrário do que ocorreu no impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello, 24 anos atrás, as parcelas de responsabilidade por este domingo amargo acabarão sendo amargas para todos.
A começar para a disfuncional ocupante do Palácio do Planalto, encalacrada em pedaladas fiscais, responsável por uma economia em ruínas, abandonada por eleitores fieis até seis meses atrás, e respingada pelo lamaçal de corrupção do petrolão. Dilma decepcionou, mas manteve intacta sua honestidade pessoal.

As responsabilidades se estendem ao comando do PT, que até hoje não achou necessário tratar a militância com maturidade e com ela debater o mensalão e o petrolão. Já são duas as gerações de companheiros que aguardam em vão essa prestação de contas.

No momento a responsabilidade maior se concentra nos 513 bípedes que nos representam na Câmara dos Deputados, somados aos 81 com assento no Senado Federal.

Ali os instalamos através de eleições legislativas de representação proporcional, e dali exercerão seu poder de voto e veto ao mandato da presidente sitiada. Ao resto do país cabe o papel duplo de protagonista e plateia desse capítulo em aberto da História do país.

“Aqueles que abrem mão de liberdades essenciais para obter alguma pequena segurança temporária”, ensinou Benjamin Franklin séculos atrás, “não são merecedores nem de liberdade nem de segurança”.
Pois o Congresso Nacional está coalhado dessa espécie que nada merece. A começar pelo presidente da Casa e chefe da fila julgadora, Eduardo Cunha, cuja lista de crimes levantados pela Operação Lava-Jato empalidece as acusações arroladas para justificar o impeachment de Dilma Rousseff.
Segundo dados da Transparência Brasil citados por Simon Romero, do “New York Times”, 60% das excelências do Congresso têm no currículo acusações de corrupção, fraude eleitoral, sequestro, homicídio ou desmatamento ilegal.

Um terço da tribo legislativa também tem a biografia entrelaçada às delações premiadas da Lava-Jato e talvez sonhe em ver tudo apagado na euforia de um admirável mundo novo — o Brasil pós-Dilma.
Certamente nunca ouviu as palavras do americano — “Aqueles que abrem mão de liberdades essenciais...”

A cena que melhor retrata o déficit cívico de Brasília e ofende os milhões de brasileiros angustiados com o descarrilamento da vida nacional foi produzida esta semana pelo Corregedor da Câmara, deputado Carlos Manato, e seu companheiro de partido Paulinho da Força, ambos do Solidariedade.
Foi uma cena que pode ter parecido inofensiva diante do drama maior, ou bem humorada em meio à tensão política. “Não passou de brincadeira”, disseram seus autores. Nem eles nem os demais congressistas que dela participaram sequer perceberam o quanto ela foi insultuosa, quase obscena.
Sem qualquer constrangimento Manato e Paulinho, ambos favoráveis ao afastamento da presidente da República, iniciaram um bolão entre os colegas sobre o placar da votação do impeachment. Cada aposta custava R$ 100.

Manato, cuja campanha foi abastecida em parte com dinheiro de empresas envolvidas na Lava-Jato, tem por função, como corregedor parlamentar, “manter o decoro, ordem e disciplina no âmbito da Câmara dos Deputados”. Esta semana, ele circulou pelos corredores da Casa com uma pasta que continha a lista e o dinheiro arrecadado.

Quanto ao deputado Paulo Pereira da Silva, um dos principais aliados de Eduardo Cunha, o ar rarefeito de Brasília deve tê-lo feito esquecer o real valor de R$ 100 para um trabalhador no resto do país.

O bolão do impeachment é a cara do Brasil que acha que tem algo a comemorar no dia de hoje.

O GLOBO, 17 DE ABRIL DE 2016 

April 17, 2016

Não haverá mais conciliação

vladimir safatle

 

"Quem não é criminoso enfrenta com dignidade o devido processo legal. O delinquente faz de tudo para escapar do julgamento. Apenas o delinquente esbraveja, grita". De todas as pérolas do inesgotável Compêndio de Bolso do Autoritarismo Nacional que ilumina boa parte das opiniões correntes nos dias atuais, estas afirmações emitidas na semana passada pelo sr. Eros Grau, ex-ministro do STF, merecem ser gravadas em mármore pela sua clareza. Ao lê-las, foi difícil não lembrar imediatamente dos versos do poeta Torquato Neto: "Leve um homem e um boi ao matadouro. Aquele que gritar é o homem, mesmo que seja o boi".

Uma das especificidades da democracia é ser o regime político capaz de reconhecer que a crítica das leis e de processos legais injustos não é sinal de "delinquência". A democracia admite que a configuração atual das leis pode comportar injustiças e que, por isto, o direito não é, nunca foi, nem nunca será a expressão imanente do que tem legitimidade. Ao contrário do que acreditam alguns, não foram as leis que criaram os homens, mas os homens que criaram as leis. Eles as criaram em contextos específicos nos quais se fez valer o sistema de interesse hegemônico à época. Otto von Bismarck, que tinha ao menos a virtude da honestidade, lembrava: "Leis são como salsichas. Melhor não saber como são feitas". Por isto, é correto dizer: não são as leis que nos unem, mas a certeza de termos caminhos no interior da vida social para fazer valer a justiça. Quando tais caminhos desaparecem, não há mais união possível.

Como se não bastasse, a democracia reconhece, entre outros, o caráter falível da aplicação da lei por pessoas muitas vezes movidas por interesses particulares. Ela nos lembra que só mesmo aqueles animados por uma passividade bovina confundiriam a justiça não apenas com o regime atual das leis, mas com a interpretação atual fornecida pela opinião dos juízes.

No entanto, a afirmação do sr. Grau tem a vantagem de explicitar qual deve ser o regime de imposição da autoridade daqui em diante. Quem questionar o processo legal, por mais que tal processo seja distorcido, interessado, com mais furos do que um queijo suíço, só poderá ser visto como delinquente. Pois com o fim da Nova República através de um golpe farsesco travestido de impeachment, não será mais possível esperar que toda a população brasileira tenha um campo mínimo de conciliação no qual encontraríamos procedimentos que todos aceitem. O golpe quebrará de vez o pacto, dividindo o país clara e definitivamente em dois. A partir de então, valerá apenas a força.

Contra isto, há de se dizer com clareza: não há razão alguma para se submeter a um governo que será ilegítimo, fruto de um "processo legal" que está mais para uma verdadeira comédia do Pai Ubu. Pois esse processo de impeachment tem, ao menos, três desvios que destroem totalmente sua legitimidade.

Primeiro, um dos princípios elementares da justiça é: "quem tem conflitos de interesse não pode julgar". 31 deputados indiciados na Comissão de Impeachment, lutando por sua sobrevivência, e um presidente da Câmara que é réu, tendo apresentado a proposta de impeachment para retaliar o partido da presidente em sua decisão de votar pela sua investigação no Conselho de Ética (sic), não podem julgar nada em lugar nenhum do mundo, apenas no Brasil. Segundo, o argumento das "pedaladas fiscais" não é suficiente para um impeachment, pois não posso afastar um presidente (a mais brutal de todas as penas) por práticas admitidas anteriormente e, principalmente, praticadas atualmente por outros membros do poder executivo sem maiores consequências. Por fim, não é possível afastar a presidente e empossar um senhor que assinou, na condição de presidente em exercício, decretos similares aos que levaram a presidente a perder o cargo.

Em 2013, em uma impressionante demonstração de vitalidade popular, o país deixou claro que procurava reinventar sua democracia e seu modelo de desenvolvimento econômico. Três anos depois, a casta política nacional, com sua capacidade ímpar de sobrevivência, foi capaz de produzir uma espécie de "contrarrevolução" na qual ela se conserva, chama para o governo aqueles que perderam todas as últimas eleições de que participaram e fornece, em troca, o sacrifício de seu sócio mais novo para saciar a ira de uma parte da população. Imaginar que todo o país se unirá na celebração desta farsa é não entender nada da história que se abre a partir de agora.

FOLHA DE SÃO PAULO, 1 DE ABRIL DE 2016




 

April 16, 2016

O governo Temer não existirá

vladimir safatle

 

A partir de segunda-feira (18), o Brasil não terá mais governo. Na democracia, o que diferencia um governo do mero exercício da força é o respeito a uma espécie de pacto tácito no qual setores antagônicos da população aceitam encaminhar seus antagonismos e dissensos para uma esfera política. Esta esfera política compromete todos, entre outras coisas, a aceitar o fato mínimo de que governos eleitos em eleições livres não serão derrubados por nada parecido a golpes de Estado.

É claro que há vários que dirão que o impeachment atual não é golpe, já que é saída constitucional. Nada mais previsível que golpe não ser chamado de golpe em um país no qual ditadura não é chamada de ditadura e violência não é chamada de violência. No entanto, um impeachment sem crime, até segunda ordem, não está na Constituição. Um impeachment no qual o "crime" imputado à presidenta é uma prática corrente de manobra fiscal feita por todos os governantes sem maiores consequências, sejam presidentes ou governadores, é golpe. Um impeachment cujo processo é comandado por um réu que toda a população entende ser um "delinquente" (como disse o procurador-geral da República) lutando para sobreviver à sua própria cassação é golpe. Um impeachment tramado por um vice-presidente que cometeu as mesmas práticas que levaram ao afastamento da presidenta não é apenas golpe, mas golpe tosco e primário.

Temer agora quer se apresentar como líder de um governo de "salvação nacional". Ele deveria começar por responder quem irá salvar o povo brasileiro dos seus "salvadores". Seu partido, uma verdadeira associação de oligarquias locais corruptas, é o maior responsável pela miséria política da Nova República, envolvendo-se até o pescoço nos piores casos de corrupção destes últimos anos, obrigando o país a paralisar todo avanço institucional que pudesse representar riscos aos seus interesses locais. Partido formado por "salvadores" do porte de Eduardo Cunha, Renan Calheiros, José Sarney, Sérgio Cabral e, principalmente, o próprio Temer. Pois nunca na história da República brasileira houve um vice-presidente que conspirasse de maneira tão aberta e cínica para derrubar o próprio presidente que o elegeu. Em qualquer país do mundo, um político que tivesse "vazado" o discurso no qual evidencia seu papel de chefe de conspiração seria execrado publicamente como uma figura acostumada à lógica das sombras. No Brasil de canais de televisão de longo histórico golpista, ele é elevado à condição de grande enxadrista do poder.

Mas não havia outra chance para tal associação de oligarcas conspiradores. Afinal, eles sabem muito bem que nunca chegariam ao poder pela via das eleições. Esta Folha publicou pesquisas no último domingo que demonstravam como, se a eleição fosse hoje, Lula, apesar de tudo o que ocorreu nos últimos meses, estaria à frente em vários cenários, Marina em outros. O eixo central da oposição golpista, a saber, o PSDB, não estaria sequer no segundo turno. Temer, que deveria também ser objeto de impeachment para 58% da população, oscilaria entre fantásticos 1% e 2%. Estes senhores, que serão encaminhados ao poder a partir de segunda-feira, têm medo de eleições pois perderam todas desde o início do século. Há de se perguntar, caso fiquem no poder, o que farão quando perceberem que poderão perder também as eleições de 2018.

Os que querem comandar o país a partir de segunda-feira aproveitam-se do fato de o país estar em uma divisão sem volta. Eles governarão jogando uma parte da população contra a outra para que todos esqueçamos que, na verdade, são eles a própria casta política corrompida contra a qual todos lutamos.

Diante da crise de um governo Dilma moribundo, outras saídas, como eleições gerais, eram possíveis. Elas poderiam reconstituir um pacto mínimo de encaminhamento de antagonismos. Mas apelar ao poder instituinte não passa pela cabeça de quem sempre sonhou em alcançar o poder por usurpação.

Diante da nova realidade que se anuncia, só resta insistir que simplesmente não há mais pacto no interior da sociedade brasileira e que nada nos obriga à submissão a um governo ilegítimo. Nosso caminho é a insubmissão a este falso governo, até que ele caia. Este governo deve cair e todos os que realmente se indignam com a corrupção e o desmando devem lutar sem trégua, a partir de segunda-feira, para que o governo caia e para que o poder volte às mãos da população brasileira. Àqueles que estranham que um professor de universidade pública pregue a insubmissão, que fiquem com as palavras de Condorcet: "A verdadeira educação faz cidadãos indóceis e difíceis de governar". Chega de farsa.

FOLHA DE SÃO PAULO, 15 DE ABRIL DE 2016 

 

April 15, 2016

Temer: o não dito


Flávia Oliveira


Um discurso pode ser medido tanto pelo que exibe quanto pelo que esconde

O vice-presidente Michel Temer, açodado pela perspectiva de assumir a nação, teve o áudio em que se manifestaria ao país como virtual substituto de Dilma Rousseff tornado público na mesma segunda-feira em que deputados se preparavam para votar o relatório pró-impeachment na comissão especial da Câmara. Temer alegou que o vazamento fora acidental, mas confirmou que os quase 14 minutos de gravação expressavam seus pensamentos sobre um futuro governo. As prioridades apresentadas no curto e apressado pronunciamento sugerem uma agenda liberal, no sentido conservador do termo. Mas o que ficou de fora também diz muito sobre o que o Brasil pode esperar de uma gestão, até aqui, vice.

Um discurso pode ser medido tanto pelo que exibe quanto pelo que esconde. O áudio de Temer foi interpretado mais pelo gesto do que pelo conteúdo. Não faltou quem comparasse o ato ao do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, então candidato a prefeito de São Paulo, que na véspera do pleito posou para fotos sentado na cadeira de mandatário. A eleição acabou vencida por Jânio Quadros, que antes de ocupar o assento desinfetou-o, numa provocação ao adversário.
Esta colunista prefere associar Temer a outro episódio igualmente famoso, batizado de Lei Ricupero. Nos meses seguintes ao lançamento do Plano Real, em 1994, o então ministro da Fazenda do governo Itamar Franco teve uma conversa com um jornalista captada por antenas parabólicas antes da transmissão oficial da entrevista. No bate-papo informal, Rubens Ricupero declarava: “Eu não tenho escrúpulos. O que é bom a gente fatura; o que é ruim, esconde”. Acabou deixando o cargo quatro dias depois.

A sociedade brasileira há de decidir se foram boas ou ruins as omissões de Temer. O certo é que não foram poucas. O vice-presidente — lembrou na primeira hora o mestre Janio de Freitas — não tratou da Operação Lava-Jato no pronunciamento. Tampouco mencionou a palavra corrupção. Foi um par de ausências indigestas num país que, faz dois anos, se lança contra sucessivos escândalos de promiscuidade público-privada e toma as ruas a cobrar decência e repudiar malfeitos dos políticos.
Temer também deixou de citar a estabilidade fiscal como meta de governo. Passou batido pelo tema que teria dado argumentos técnico e jurídico ao processo de impedimento de Dilma Rousseff. Não foram as pedaladas fiscais e seus danos às contas públicas ponto central da petição assinada pelos juristas Hélio Bicudo, Miguel Reale Jr. e Janaína Paschoal? Faria sentido, então, que o virtual sucessor da presidente se comprometesse com a austeridade na gestão orçamentária. Em vez disso, o vice sinalizou para governadores afogados em crises financeiras a renegociação das dívidas com a União: “Há estudos referentes à eventual anistia e revisão dos juros sobre a dívida das partes federadas. Nós vamos levar isso adiante”.

No áudio em que delineou seu “governo de salvação nacional”, Temer se dirigiu a parlamentares de todos os partidos, ao capital privado local e estrangeiro, a beneficiários de programas sociais. Aos trabalhadores avisou que dará andamento a reformas que incentivem a harmonia com os empregadores, referência sutil à flexibilização da legislação. Por três vezes, falou em sacrifícios ao povo brasileiro. Prometeu recuperar investimentos e demarcou como áreas prioritárias para o Estado a segurança, a saúde e a educação, nessa ordem.

Temer não fez referência ao tripé câmbio flutuante, metas de inflação e estabilidade fiscal, que faz a alegria do mercado financeiro na gestão macroeconômica. Dada a ênfase concedida ao setor privado no áudio, não é errado inferir que o compromisso com a ortodoxia está subentendido. Afinal, são referências presentes no documento “Ponte para o futuro”, divulgado em fins de 2015 como Bíblia do PMDB para a economia. Ainda assim, a única menção à inflação — outro incômodo para os brasileiros, principalmente os mais pobres — foi rasa. O vice atribuiu a carestia ao “descrédito do país, que leva à ausência do crescimento, do desenvolvimento”
.
Se presidente for, o vice prometeu manter Bolsa Família, Pronatec, ProUni e Fies. Nada disse sobre Minha Casa, Minha Vida, programa habitacional do governo do qual é o primeiro na linha sucessória há seis anos. Tampouco sobre territórios indígenas. Não tratou do sistema de cotas em universidades ou concursos públicos. Não reservou uma palavra à agenda de direitos civis de negros, mulheres, LGBTs. Temer, em seu discurso, ignorou reivindicações caras à sociedade civil organizada, historicamente identificado com a agenda petista. São omissões que podem tanto significar mera desatenção, como também esconder a aproximação de um futuro governo com os setores mais conservadores do Congresso Nacional. O não dito preocupa.

 O GLOBO, 14 DE ABRIL DE 2016

April 14, 2016

Golpe brasileiro ameaça democracia


MARK WEISBROT 

A presidente Dilma Rousseff está ameaçada de impeachment, mas não há evidências que a vinculem a qualquer esquema de corrupção. Em vez disso, ela é acusada de manipular as contas públicas, algo que presidentes anteriores já haviam feito.

Para traçar uma analogia com os Estados Unidos, quando os republicanos se negaram a elevar o teto da dívida, em 2013, a administração Obama recorreu a vários truques de contabilidade para adiar o prazo final no qual se alcançaria o limite. Ninguém se incomodou com isso.

A campanha do impeachment, que o governo descreveu corretamente como golpe, é um esforço da elite brasileira tradicional para obter por outros meios aquilo que não conseguiu conquistar nas urnas nos últimos anos.

O ex-presidente Lula é acusado de receber dinheiro de empresas investigadas por corrupção para fazer discursos e reformar um imóvel que ele afirma não ser dele. Mesmo que as acusações sejam verdadeiras, não há prova de vínculo com corrupção.

O juiz Sergio Moro, entretanto, lidera uma bem executada campanha de difamação de Lula. O magistrado teve que pedir desculpas ao Supremo Tribunal Federal por ter divulgado grampos telefônicos de conversas entre Lula e Dilma, Lula e seu advogado e até mesmo entre a mulher de Lula e os filhos deles.

É claro que o Partido dos Trabalhadores não estaria vulnerável a essa tentativa de golpe se a economia não estivesse em recessão profunda. Mas também a esse respeito a mídia está claramente equivocada, defendendo mais cortes nos gastos públicos e mais juros altos
.
O Brasil precisa, pelo contrário, de um estímulo sério para fazer sua economia pegar no tranco. O principal obstáculo à recuperação é o poder dos grandes bancos.

O Brasil está pagando juros de quase 7% de seu PIB sobre a dívida pública, mais que a Grécia no auge de sua crise. Mas o Brasil não tem crise de dívida nem apresenta qualquer risco significativo de moratória. Seus juros usurários são o resultado do poder político de seus próprios bancos, que hoje desfrutam um "spread" recorde de 34% entre suas taxas de empréstimos contraídos e concedidos.
A simples redução dos juros sobre a dívida pública para o nível de alguns anos atrás criaria condições para um estímulo importante.

O governo dos EUA vem guardando silêncio sobre esta tentativa de golpe, mas há poucas dúvidas quanto à sua posição. Ele sempre apoiou golpes contra governos de esquerda no hemisfério, incluindo, apenas no século 21, o Paraguai em 2012, Haiti em 2004, Honduras em 2009 e Venezuela em 2002.
O presidente Obama foi à Argentina para derramar-se em elogios ao novo governo de direita,
pró-EUA, e a administração reverteu sua política anterior de bloqueio de empréstimos multilaterais ao país. E hoje, no Brasil, a oposição é dominada por políticos favoráveis a Washington.

Seria mais uma coisa lamentável se o Brasil perdesse boa parte de sua soberania nacional, além de sua democracia, com este golpe sórdido.

MARK WEISBROT é codiretor do Centro de Pesquisa Econômica e Política, em Washington, e presidente da Just Foreign Policy, organização norte-americana especializada em política externa 

FOLHA DE SÃO PAULO, 14 DE ABRIL DE 2016 

A ilusão


Luis Fernando Verissimo

 

Gosto de imaginar a História como uma velha e pachorrenta senhora que tem o que nenhum de nós tem: tempo para pensar nas coisas e para julgar o que aconteceu com a sabedoria — bem, com a sabedoria das velhas senhoras. Nós vivemos atrás de um contexto maior que explique tudo mas estamos sempre esbarrando nos limites da nossa compreensão, nos perdendo nas paixões do momento presente. Nos falta a distância do momento. Nos falta a virtude madura da isenção. Enfim, nos falta tudo o que a História tem de sobra.

Uma das vantagens de pensar na História como uma pessoa é que podemos ampliar a fantasia e imaginá-la como uma interlocutora, misteriosamente acessível para um papo.

— Vamos fazer de conta que eu viajei no tempo e a encontrei nesta mesa de bar.

— A História não tem faz de conta, meu filho. A História é sempre real, doa a quem doer.

— Mas a gente vive ouvindo falar de revisões históricas...

— As revisões são a História se repensando, não se desmentindo. O que você quer?

— Eu queria falara com a senhora sobre o Brasil de 2016.

— Brasil, Brasil...

— PT. Lula. Impeachment.

— Ah, sim. Me lembrei agora. Faz tanto tempo...

— O que significou tudo aquilo?

— Foi o fim de uma ilusão. Pelo menos foi assim que eu cataloguei.

— Foi o fim da ilusão petista de mudar o Brasil?

— Mais, mais. Foi o fim da ilusão que qualquer governo com pretensões sociais poderia conviver, em qualquer lugar do mundo, com os donos do dinheiro e uma plutocracia conservadora, sem que cedo ou tarde houvesse um conflito, e uma tentativa de aniquilamento da discrepância. Um governo para os pobres, mais do que um incômodo político para o conservadorismo dominante, era um mau exemplo, uma ameaça inadmissível para a fortaleza do poder real. Era preciso acabar com a ameaça e jogar sal em cima. Era isso que estava acontecendo.

Um pouco surpreso com a eloquência da História, pensei em perguntar qual seria o resultado do impeachment. Me contive. Também não ousei pedir que ela consultasse seus arquivo e me dissesse se o Eduardo Cunha seria presidente do Brasil.

Eu não queria ouvir a resposta.

O GLOBO, 14 DE ABRIL DE 2016 

 

A fala do trono de Temer


elio gaspari




Corrupção. Faltou não só a palavra, faltou qualquer referência ao tema. Pode ter sido esquecimento, o que não é pouca coisa, pois nesse caso Michel Temer seria o único brasileiro capaz de falar durante 14 minutos sobre a crise política, pedindo um governo de "salvação nacional", sem qualquer referência às iniciativas que feriram a oligarquia política e econômica brasileira.

Uma coisa é o destino da doutora Dilma. Bem outra são a Lava Jato e suas subsidiárias que estão encurralando oligarcas. É insultuoso supor que uma pessoa queira defenestrar a doutora e o PT para travar a Lava Jato, mas quem quer freá-la pode achar que uma troca é boa ideia. É necessário reconhecer que a cena do deputado Eduardo Cunha e do senador Romero Jucá de mãos dadas e braços erguidos comemorando o rompimento do PMDB com o Planalto mostra para onde vão os interesses de uma banda da oligarquia. Cunha é réu de um processo no Supremo Tribunal e Jucá está sendo investigado pelo Ministério Público.

Se houvesse qualquer referência ao combate à corrupção no seu discurso de posse presuntiva, Temer mostraria coragem e disposição de incomodar correligionários. Esqueceu-se, tudo bem, mas não deve pedir aos ouvintes que não percebam. Como se sabe desde que a palavra impeachment entrou no vocabulário politico, tirar Dilma é uma coisa, quem botar no lugar é outra.

Desconte-se a trapalhada que tornou público o áudio de Temer. Ele informou que recolheu-se "há mais de um mês". Seria um exemplo de recato se tivesse amparo nos fatos. O vice-presidente gosta de palavras raras e construções solenes. Só isso o leva a falar em "senadores da melhor cepa e sabedoria". Ou em "estudar isso com detença". O doutor parece competir com o governador Geraldo Alckmin na produção de platitudes. Coisas como "não quero que isto fique em palavras vazias", "temos absoluta convicção", "a classe política unida com o povo", "o Estado não pode tudo fazer". Finalmente: "temos que preparar o país do futuro". O tucano paulista acrescentaria: "com firmeza e determinação".

Os 14 minutos de Temer não embutiram uma plataforma, mostraram um palanque. Diante da ruína produzida pela doutora Dilma, antecipa "sacrifícios". Oferece intenções e diálogo. Num ponto, porém, ele se deteve:

"Sei, por exemplo, no tópico da Federação, da grande dificuldade dos Estados e municípios nos dias atuais. Há estudos referentes à eventual anistia ou perdão de uma parte das dívidas e até uma revisão dos juros que são pagos pelas unidades federadas. Vamos levar isso adiante."

Decifrando a promessa para governadores encalacrados e prefeitos falidos: "Vamos levar isso adiante". (Faltou definir "isso".)

Decifrando os números: Estados e municípios querem repactuar os contratos de R$ 402 bilhões de dívidas já renegociadas com a União. Neste ano horrível, a simples revisão dos juros pode tirar R$ 27 bilhões da União. (O Supremo Tribunal concedeu uma liminar que poderá beneficiar todos os governadores e prefeitos, mas a sentença ainda depende do pleno da Corte.)

Governo de "salvação nacional". Salvação de quem?

O GLOBO, 13 DE ABRIL DE 2016 

ilustração ANDRÉ MELLO

April 13, 2016

Um golpe e nada mais

vladimir safatle

 

A crer no andar atual da carruagem, teremos um golpe de Estado travestido de impeachment já no próximo mês. O vice-presidente conspirador já discute abertamente a nova composição de seu gabinete de "união nacional" com velhos candidatos a presidente sempre derrotados. Um ar de alfazema de República Velha paira no ar.

O presidente da Câmara, homem ilibado que o procurador-geral da República definiu singelamente como "delinquente", apressa-se em criar uma comissão de impeachment com mais da metade de deputados indiciados a fim de afastar uma presidenta acusada de "pedaladas fiscais" em um país no qual o orçamento é uma mera carta de intenções assumida por todos.

Se valesse realmente este princípio, não sobrava de pé um representante dos poderes executivos. O que se espera, na verdade, é que o impeachment permita jogar na sombra o fato de termos descoberto que a democracia brasileira é uma peça de ficção patrocinada por dinheiro de empreiteiras. Pode-se dizer que um impeachment não é um golpe, mas uma saída constitucional. No entanto, os argumentos elencados no pedido são risíveis, seus executores são réus em processos de corrupção e a lógica de expulsar um dos membros do consórcio governista para preservar os demais é de uma evidência pueril. Uma regra básica da justiça é: quem quer julgar precisa não ter participado dos mesmos atos que julga.

O atual Congresso, envolvido até o pescoço nos escândalos da Petrobras, não tem legitimidade para julgar sequer síndico de prédio e é parte interessada em sua própria sobrevivência. Por estas e outras, esse impeachment elevado à condição de farsa e ópera bufa será a pá de cal na combalida semi-democracia brasileira.

Alguns tentam vender a ideia de que um governo pós-impeachment seria momento de grande catarse de reunificação nacional e retomada das rédeas da economia.

Nada mais falso e os operadores do próximo Estado Oligárquico de Direito sabem disto muito bem. Sustentado em uma polícia militar que agora intervém até em reunião de sindicato para intimidar descontentes, por uma lei antiterrorismo nova em folha e por um poder judiciário capaz de destruir toda possibilidade dos cidadãos se defenderem do Estado quando acusados, operando escutas de advogados, vazamento seletivo e linchamento midiático, é certo que os novos operadores do poder se preparam para anos de recrudescimento de uma nova fase de antagonismos no Brasil em ritmo de bomba de gás lacrimogêneo e bala.

Uma fase na qual não teremos mais o sistema de acordos produzidos pela Nova República, mas teremos, em troca, uma sociedade cindida em dois.

O Brasil nunca foi um país. Ele sempre foi uma fenda. Sequer uma narrativa comum a respeito da ditadura militar fomos capazes de produzir. De certa forma, a Nova República forneceu uma aparência de conciliação que durou 20 anos. Hoje vemos qual foi seu preço: a criação de uma democracia fundada na corrupção generalizada, na explosão periódica de "mares de lama" (desde a CPI dos anões do orçamento) e na paralisia de transformações estruturais.

Tudo o que conseguimos produzir até agora foi uma democracia corrompida. A seguir este rumo, o que produziremos daqui para a frentes será, além disso, um país em estado permanente de guerra civil.
Os defensores do impeachment, quando confrontados à inanidade de seus argumentos, dizem que "alguma coisa precisa ser feita". Afinal, o lugar vazio do poder é evidente e insuportável, logo, melhor tirar este governo. De fato, a sequência impressionante de casos de corrupção nos governos do PT, aliado à perda de sua base orgânica, eram um convite ao fim.

Assim foi feito. Esses casos não foram inventados pela imprensa, mas foram naturalizados pelo governo como modo normal de funcionamento. Ele paga agora o preço de suas escolhas.

Neste contexto, outras saídas, no entanto, são possíveis. Por exemplo, a melhor maneira de Dilma paralisar seu impeachment é convocando um plebiscito para saber se a população quer que ela e este Congresso Nacional (pois ele é parte orgânica de todo o problema) continuem. Fazer um plebiscito apenas sobre a presidência seria jogar o país nas mãos de um Congresso gangsterizado.

Em situações de crise, o poder instituinte deve ser convocado como única condição possível para reabrir as possibilidades políticas. Seria a melhor maneira de começar uma instauração democrática no país. Mas, a olhar as pesquisas de intenção de voto para presidente, tudo o que a oposição golpista teme atualmente é uma eleição, já que seus candidatos estão simplesmente em queda livre. Daí a reinvenção do impeachment.

FOLHA DE SÃO PAULO, 25 DE MARÇO DE 2016 


 

April 12, 2016

Vem aí o presidente 1%

bernardo mello franco

 O Datafolha divulgou uma nova pesquisa para a corrida presidencial de 2018. Os principais pré-candidatos estão mal na foto. Aécio derreteu, Lula continuou a cair e Marina assumiu a liderança por inércia, sem sair do lugar. 

O levantamento apresenta um paradoxo. De todos os nomes do principal cenário, o menos citado pelos eleitores é o que tem mais chances de assumir a Presidência. Estamos falando do peemedebista Michel Temer, que aparece com apenas 1% das intenções de voto.

Não se trata de apostar no cavalo azarão. Como vice-presidente, Temer é o substituto imediato de Dilma Rousseff, que está com o mandato em risco. Se o Congresso aprovar o impeachment, como parece cada vez mais provável, ele pode se sentar na cadeira até o fim de abril. Terá 75 anos de idade e mais dois anos e oito meses para governar o país.

Aliados do vice já começaram a escalar sua equipe. "Será um ministério surpreendentemente bom", disse o senador José Serra ao jornal "O Estado de S.Paulo". Derrotado em duas eleições presidenciais, ele quer assumir um cargo similar ao de primeiro-ministro. Se der certo, será mais um a governar sem votos.

O Datafolha também perguntou o que os brasileiros esperam de uma eventual gestão Temer. Só 16% acreditam que ele fará um governo ótimo ou bom. Para a maioria absoluta (60%), a administração será igual ou pior do que a que está aí.

O dado leva a outro paradoxo: sete em cada dez brasileiros apoiam o afastamento de Dilma, mas quase nenhum se empolga com o vice. É um cenário desalentador, porque a recessão não vai evaporar com o impeachment. Um presidente 1% seria capaz de nos tirar do buraco?

FOLHA DE SÃO PAULO, 22 DE MARÇO DE 2016