January 28, 2016

Nas franjas da sociedade


Dorrit Harazim

 O mesmo chumbo que paralisa motores de automóveis não poupa nenhum órgão humano quando ingerido ou inalado 

 Esta semana a Oxfam divulgou o seu relatório global sobre desigualdade, demonstrando, entre outros, que 62 bilionários top detêm bens equivalentes aos da metade da população mundial mais pobre (3,6 bilhões de pessoas). Também esta semana, no seu habitual refúgio montagnard de Davos na Suíça, o atual elenco de cabeças tidas como pensantes marcaram presença na reunião anual para equacionar as grandes questões mundiais.

Poderiam ter ficado em casa e se debruçado a sério sobre o relatório da Oxfam, começando pelo item 1. Boa parte das grandes questões mundiais do século 21, senão a raiz de todas elas, está lá.

Que o diga a cidade de Flint — caso exemplar, evitável e por isso tão aterrador.
Flint, no estado americano de Michigan, só não permanecia no seu justo anonimato porque dele fora arrancada em 1989 pelo cineasta Michael Moore através do ácido documentário “Roger e eu”, sobre o declínio da cidade. De lá para cá, as coisas só pioraram.

Apelidada de “Murdertown” (algo como Assassinópolis), essa cidade situada a uma centena de quilômetros de Detroit há muito esqueceu os tempos em que reluzentes Buicks saíam das fábricas da GM e empregavam 75 mil trabalhadores. A Flint daqueles tempos dourados tinha 200 mil habitantes e uma das rendas per capita mais altas do país.

Como se sabe, tudo isso virou pó com a automação, a desindustrialização, a migração da GM para outras paragens, a mudança do cenário econômico nacional e mundial. A cidade dependente de uma única indústria e de uma única empresa perdeu metade de sua gente e 93% de seus postos de trabalho.

Restaram cem mil almas formando uma população completamente atípica nos Estados Unidos: 57% são negros, 41,5% vivem abaixo da linha de pobreza, contra os 17% e 15% da média nacional americana. As milhares de casas abandonadas na cidade fantasma se transformaram em abrigos de criminosos. Uma das poucas distrações locais, por não custar nada, passou a ser os frequentes incêndios que fazem de cada imóvel vazio um espetáculo à la “E o vento levou”.

Sem recursos, Flint e outras cidades de perfil semelhante passaram então a receber tratamento de choque para evitar a falência. Segundo uma lei de gerenciamento emergencial aprovada no estado de Michigan em 2012, o governador começou a nomear administradores de sua escolha para assumir a gestão das contas públicas em municípios em crise. Com poder maior do que o dos representantes eleitos pelos munícipes.

O receituário do administrador para equilibrar as finanças de Flint foi ortodoxo: cobrou taxas mais altas para saneamento básico e iluminação de rua de uma população já depauperada; encolheu o funcionalismo público numa cidade de poucos empregos e enxugou o efetivo policial do município conhecido como “Assassinópolis”.

Em abril de 2014, adotou medida de corte mais radical, alterando a fonte de captação de água do município. Optou por desconectar Flint do sistema hídrico de Detroit, abençoada por um dos maiores conjuntos de lagos de água doce do planeta, e passou a suprir a cidade com recursos vindos do Rio Flint. Apesar de esse rio ser, há muitas décadas, notório depósito de lixo industrial das fábricas locais. Festejou, assim, uma economia anual de US$ 1 milhão a US$ 2 milhões.

Dois meses depois da nova água amarelada começar a jorrar das torneiras e ser usada na comida, no banho, na bebida diária dos moradores da cidade, a pediatra Mona Hanna-Attisha, do hospital infantil municipal, soou o alarme. Ela notara uma incidência anormal de sintomas ligados a metal no organismo de seus jovens pacientes.

As autoridades não quiseram ouvi-la, mas ela persistiu. Mandou analisar a água e constatou a temida contaminação por chumbo. Embora apresentasse as provas, não lhe deram ouvidos. Pior, foi repreendida por espalhar o pânico sem necessidade. O fato de o pastor da paróquia local ter parado de usar a água malcheirosa para batismos tampouco alterou o quadro.

A General Motors, que mantém em Flint uma fábrica de motores, achou prudente agir por conta própria para salvaguardar a saúde de seus equipamentos. Seis meses depois de operar com a nova fonte hídrica implantada na cidade, a empresa comunicou às autoridades que seus motores estavam sendo danificados pelas propriedades corrosivas da água do rio e, por isso, reverteriam ao sistema anterior. E assim fizeram.

Sorte das máquinas.

O mesmo chumbo que paralisa motores de automóveis não poupa nenhum órgão humano quando ingerido ou inalado — cérebro, sistema nervoso, coração, rins, ossos, DNA, tudo. Ademais, é irreversível. E nada há a fazer: ferver a água apenas concentra ainda mais o nível do metal. E como o governador Rick Snyder levou 18 meses para admitir a calamidade, ela agravou-se de forma exponencial, pois quanto mais tempo a água contaminada corrói encanamentos e tubulações, mais tóxica ela se torna.

“Tragédias não são apenas furacões e tornados, coisas assim. O que temos aqui em Flint é uma tragédia. Todas as crianças daqui estiveram sob o risco de lesão cerebral irreparável”, desabafou a pediatra em entrevista à CNN.

Foi somente depois que os moradores da cidade se mobilizaram e atraíram especialistas ambientais, ativistas em saúde pública e a grande imprensa dos Estados Unidos que o caso adquiriu a dimensão da catástrofe e está sendo monitorado de todos os ângulos.

Simplificações e generalizações costumam ser expedientes fáceis e baratos. Tomar Flint como exemplo de qualquer coisa também é uma simplificação. Mas pior seria não falar em Flint. Até porque tem uma mini-Flint gangrenando em quase toda grande cidade brasileira — seja por ações equivocadas do poder público, seja, sobretudo, por séculos de abandono dos marginalizados a vidas entre esgotos.


O GLOBO, 24 DE JANEIRO DE 2016

January 25, 2016

Confinados pela poluição


por






















January 24, 2016

Dilma aderiu aos oligarcas


Elio Gaspari
Ao aSsinar a Medida Provisória que facilitou as operações das grandes empresas apanhadas em roubalheiras, a doutora Dilma abandonou a posição de neutralidade antipática que mantinha em relação à Lava Jato. Ela alterou uma lei de seu próprio governo e alistou-se na artilharia dos oligarcas que, pela primeira vez na história do país, estão ameaçados por um braço do Estado.

O mimo permitirá que empreiteiras cujos diretores foram encarcerados negociem novos contratos e obras com a Viúva. No mais puro dilmês, ela disse que "devemos penalizar os CPFs (as pessoas físicas), os responsáveis pelos atos ilícitos. Não necessariamente penalização de CPFs significa a destruição dos CNPJs (as pessoas jurídicas). Aliás, acreditamos que não exige". A frase de pouco nexo escamoteia o conceito de que as roubalheiras podem ter mais a ver com malfeitorias de pessoas do que de empresas.

As roubalheiras não eram dos executivos, eram da oligarquia empresarial. Prova disso está no fato de que nenhuma empreiteira queixou-se de seus executivos.

Os defensores do abrandamento dos acordos de leniência sustentam que a Lava Jato abala negócios, desemprega trabalhadores e inibe a economia. É um argumento parecido com aquele usado pelos defensores do tráfico negreiro no século 19, mas essa é outra discussão.

Até hoje nenhuma grande empreiteira pediu desculpas à população pelas mentiras que repetiu tentando proteger-se da Lava Jato. O papa Francisco pediu desculpas pelos casos de pedofilia na Igreja. A Volkswagen desculpou-se pelas fraudes ambientais. Os oligarcas brasileiros mentiram para a população e nada.

Fulanizando os casos das três maiores empreiteiras do país:
A Odebrecht sustenta que nada fez de errado. Em outubro de 2014, Marcelo Odebrecht, disse o seguinte: "como diretor-presidente da Odebrecht S.A. venho a público manifestar minha indignação, e de toda a organização, com informações inverídicas veiculadas na imprensa, em prejuízo de nossa imagem".

Também em outubro de 2014, a Camargo Corrêa disse que não havia "qualquer procedência" nas acusações feitas pelo Tribunal de Contas da União a respeito de obras superfaturadas na refinaria Abreu e Lima. Um mês depois, a Lava Jato encarcerou seu então presidente (Dalton Avancini) e então vice (Eduardo Leite). Neste ano, ambos passaram a colaborar com o Estado e a Camargo Corrêa aceitou uma multa de R$ 700 milhões.

A Andrade Gutierrez informou, em dezembro de 2014, que "todos os contratos da empresa com a Petrobras foram realizados dentro dos processos legais de contratação". Seu presidente (Otavio Azevedo) vendera uma lancha a Fernando Baiano por R$ 1,5 milhão, mas tratava-se de uma operação de CPF para CPF. Em junho, Azevedo foi preso e, em novembro, a Andrade Gutierrez passou a colaborar com o Estado e aceitou uma multa de R$ 1 bilhão.

Empresas desse tamanho não brincam com dinheiro. A teoria do CPF x CNPJ da doutora é empulhação. Se a Camargo Corrêa e a Andrade Gutierrez resolveram desembolsar R$ 1,7 bilhão, elas sabem que os delitos não foram cometidos por pessoas físicas.

A colaboração da Camargo e da Andrade é uma boa notícia. Não se pede muito, apenas que peçam desculpas por terem mentido, pois foi exatamente a arrogância e o faço-porque-posso que arruinou seus CNPJs e levou seus marqueses para a cadeia.

O GLOBO, 23 DE DEZEMBRO DE 2015 

January 16, 2016

Bowie é 10


Apesar do evidente paradoxo, nenhum artista capturou tão bem a fluidez do tempo, das pessoas, dos seres

Na noite de 18 de abril do ano passado, quando Lou Reed entrou para o Rock and Roll Hall of Fame, sua viúva, Laurie Anderson, contou que ele acreditava que uma pessoa morria, por assim dizer, três vezes. Primeiro, seu coração parava de bater. Depois, ela era enterrada ou cremada. Por fim, seu nome deixava de ser pronunciado. Ato contínuo, Laurie puxou um coro gutural: “Lou! Lou! Lou!” Claro, Reed morreu apenas duas vezes, em outubro de 2013. Antes, foi ídolo e protegido de David Bowie.

Na manhã de 11 de janeiro, a da última segunda-feira, na qual foi anunciada a morte de Bowie, ocorrida na véspera, em Nova York, cruzei em Laranjeiras com uma garota carregando sacolas de supermercado e vestindo uma camiseta com a face de Aladdin Sane, persona do álbum de 1973. Aquela homenagem imediata proporcionou-me o único meio sorriso daquela manhã. Sucessor de Ziggy Stardust, seu alter ego mais famoso, Aladdin Sane era um trocadilho com “a lad insane” (um rapaz insano).

Na tarde da última segunda-feira, depois de enviar para o jornal um primeiro artigo sobre Bowie, isolei-me no escritório com uma pilha de CDs para pronunciar o seu nome. Chorei um pouco. Por Bowie, pelos três amigos que perdi em 2015, pela minha gata querida, por todos os que vamos passar. Apesar do evidente paradoxo, nenhum artista capturou tão bem a fluidez do tempo, das pessoas, dos seres — rumo ao fim, individual, ou ao Fim, coletivo. Sua troca de personas e estilos foi a dramatização disso.

Pulei de CD em CD, de faixa em faixa, sem cronologia ou critério. Percebi, porém, que do meio de tantas belezas emergiam as minhas “dez mais” de Bowie agora, na hora da sua morte; só estavam excluídas faixas do sublime último disco, “Blackstar”, por terem sido ouvidas quase todas as vezes sob comoção. Ei-las:

“Time”, do álbum “Aladdin Sane”. Tal qual Reed, Bowie tinha uma queda por música de cabaré, à la Weill & Brecht. Esse é um lindo exemplo. Na letra, o toque de sacanagem é dado pelos versos “Time — He flexes like a whore/ Falls wanking to the floor” (Tempo — Ele se flexiona como uma puta/ Cai no chão tocando punheta).

“Life on Mars?”, do álbum “Hunky dory” (1971). A balada sobre inadequação. Garota vai ao cinema contra a vontade da mãe, mas com a bênção do pai, se desencontra da amiga e assiste sozinha a um filme chatooo. O piano é tocado por Rick Wakeman, então em vias de se tornar tecladista do Yes. Inspirou uma série policial da BBC.

“Changes”, também de “Hunky dory”. No obituário que escreveu no “New York Times”, Jon Pareles disse que, se Bowie tinha um hino, era esse. O homem das mil mutações louva as mudanças. Ouvir aquela gaguejada teatral em “ch-ch-ch-ch-changes” ainda me causa taquicardia 40 anos depois de tê-la ouvido pela primeira vez.

“I would be your slave”, do álbum “Heathen” (2002). Nick Hornby ensinou que toda boa lista — ou fita K7 — deve ter um toque de obscuridade. O meu vem de um CD gravado sob o impacto do Onze de Setembro. Triste, triste, com um quarteto de cordas e uma letra romântica: “Eu vou te dar todo o meu amor/ Nada mais é de graça”.

“Absolute begginers”, da trilha do filme homônimo, de Julien Temple (1986). O ator Bowie trabalhou no musical ambientado na Londres de 1958. Uma das frases de publicidade dizia “alarmante elegância, tumultos, romance e be-bop”. A música-tema é um baladão com toques jazzísticos. Gil Evans arranjou sopros em outras faixas.

“Warszawa”, do álbum “Low” (1977). Parceria com o tecladista e produtor Brian Eno. É uma peça minimalista, sombria, quase toda instrumental. “Falava” da visita de Bowie à capital da Polônia, então sob o regime comunista, mas evocava, também, o massacre do gueto judeu pelos nazistas, durante a Segunda Guerra Mundial. 

“Heroes”, do álbum homônimo (1977). Um pouco de bravata, outro tanto de desespero: “Não somos nada/ e nada vai nos salvar.” Philip Glass se inspirou no álbum inteiro para compor a sua quarta sinfonia. Gosto muito da versão cantada em inglês e em alemão por Bowie, incluída na trilha de “Christiane F.”, de Ulrich Edel (1981).

“Look back in anger”, do álbum “Lodger” (1979). A aceleração desse rock incluído no disco final da chamada “Trilogia de Berlim” — com “Low” e “‘Heroes’” — sempre me pareceu o Bowie quintessencial: urgente. Além disso, a música destaca uma faceta tão importante em sua arte vocal quanto o falsete andrógino: o crooner viril. 

“The stars (are out tonight)”, do álbum “The next day” (2013). Bowie estava sem gravar havia dez anos quando — mais uma vez — surpreendeu-nos com um trabalho que mostrava que o rock podia se tornar sessentão sem perder dignidade e ousadia. Essa é a minha faixa favorita. Trata da (dis)função das celebridades em nosso planeta.

“Moonage daydream”, do álbum “The rise and fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars” (1972). Difícil escolher uma só faixa deste que provavelmente é o melhor disco de um cara que nunca — nunca — lançou nada menos que bom. A guitarra de Mick Ronson, o coro “de boca fechada”, os crescendos arrebatadores...

Obrigado, Bowie, viva em paz. 

Arthur Dapieve

O GLOBO, 15 DE JANEIRO DE 2016 

January 15, 2016

Assustada, a oligarquia precisa da crise


Elio Gaspari, O Globo

Impeachment, Dilma Rousseff, Michel Temer e Eduardo Cunha são ingredientes secundários de um momento muito maior. Vice-presidente de olho na cadeira do titular é coisa comum. Oposição querendo derrubar o governo também é coisa que acontece.

O que há de novo e saudável no Brasil de hoje é que pela primeira vez desde o desembarque de Tomé de Souza, em 1549, o braço do Estado está investigando, encarcerando e punindo personagens da oligarquia política e econômica da terra de Santa Cruz, hoje Brasil. Diante dessa novidade, Dilma, Temer e Eduardo Cunha são explosivos asteriscos. Em graus variáveis, estão mais próximos do problema do que de sua solução.

O Supremo Tribunal Federal investiga os presidentes da Câmara e do Senado. Estão na cadeia o dono da maior empreiteira do país, um poderoso banqueiro e o líder do governo no Senado. Dois ex-diretores da Petrobras colaboram com as investigações. Cinquenta e sete pessoas já foram condenadas a penas que somam 680 anos de prisão.

Neste momento inédito, foram para a prisão pessoas que se comportavam como se estivessem acima das leis. Empreiteiros que desqualificavam a Operação Lava-Jato deram-se conta de que a festa acabou e passaram a colaborar com o Ministério Público. Superestimando sua invulnerabilidade, o senador Delcídio do Amaral articulava a fuga de Nestor Cerveró com direito a mesada de R$ 50 mil. Está preso.

Uma parte do Ministério Público e do Judiciário dissociou-se da secular tradição que protegia os maus costumes das oligarquias política e econômica. A briga do Planalto com Eduardo Cunha é apenas um momento explosivo no curso dessa grande mudança.

De um lado está a doutora Dilma (“não respeito delator”) eleita por um partido que teve dois presidentes e dois tesoureiros encarcerados. Do outro, o comandante de uma poderosa bancada pluripartidária, apanhado com uma fortuna escondida no banco Julius Baer.

Os petistas dizem-se perseguidos, mas, entre os 68 políticos investigados, seu partido está empatado com o PMDB (ambos com 12 notáveis). A taça ficou com o Partido Progressista, com 31 acusados. O PP tem uma peculiaridade: abriga um plantel de doutores cujas raízes remontam ao tempo da ditadura.

Nunca se afastaram do poder. Símbolo dessa grei é Paulo Maluf. Olhando-se para as empreiteiras que tiveram executivos encarcerados chega-se a empresas poderosas desde a metade do século passado.

Ferida, a oligarquia está atemorizada. É comum ouvir-se a pergunta: “Onde é que isso vai parar?” Em geral, ela significa outra coisa: “Será que vai chegar a mim?” Também é frequente a advertência: na Itália, a Operação Mãos Limpas desaguou em nove anos de poder de Silvio Berlusconi com suas bandalheiras.

Novamente, a frase tem outro significado: “É melhor deixar tudo como está.” A Mãos Limpas italiana obrigou a oligarquia italiana a mudar de modos. Berlusconi perdeu os direitos políticos e a batalha para não pagar na cadeia os 11 anos a que está condenado. Matteo Renzi, o atual primeiro-ministro da Itália, não tem as ligações perigosas dos cardeais da extinta democracia cristã, nem as traficâncias da última geração de políticos socialistas. A “Mani Pulite” não transformou a Itália numa Nova Zelândia, mas tornou mais arriscado o ofício de roubar.

O Brasil teve muitos sacolejos, mas nunca a oligarquia se viu ameaçada nos seus métodos. Passou por sustos, mas no conjunto sempre saiu invicta. A ameaça da Lava-Jato não é ideológica, muito menos política, é apenas a afirmação de um braço do Estado para que as leis sejam cumpridas. Corrupção passou a dar cadeia, o medo da cadeia gerou a colaboração, e a cada colaborador ampliou e fortaleceu as investigações.

Dilma pode ou não continuar na Presidência. Para a oligarquia ameaçada, isso não tem importância. O que se precisa é quebrar os ossos de parte do Ministério Público e de parte do Judiciário. Está cada vez mais difícil.

O GLOBO, 13 DE DEZEMBRO  DE 2015

HÁ UM TERRORISTA EM MIM

 FREI BETTO


É fácil criticar os terroristas do Estado Islâmico, que não respeitam nada nem ninguém. Difícil é derrotar o terrorista que me habita e se manifesta quando encontro quem não pensa como eu. Como ousa defender outro partido?, indago, aos gritos, com raiva, deixando vazar o ódio que guardo no peito. Saio falando mal do partido e do amigo que tem a desfaçatez de ainda justificar políticos e políticas que só contribuíram para o atraso deste país.

Se eu me pudesse despir dessa pele de cordeiro que encobre o lobo que sou, calava o meu amigo, cortava-lhe a língua, libertava o seu cérebro dessa lavagem cerebral a que foi submetido. Será que todos não se dão conta de que eu tenho sempre razão? E depois reclamam quando detono as bombas que trago nas entranhas e, inflamado, vocifero contra os estúpidos que insistem em me convencer de suas opiniões insensatas.

O terrorista que me povoa usa armas ferinas: difama e calunia, sem dar ao outro o benefício da dúvida, e muito menos o direito de defesa. É um fanático religioso. Na fase ateia, defende a não existência de Deus, considera todos os crentes imbecis, alienados, dopados pelo ópio do povo, movidos pela ilusão de que há transcendência e vida após a morte. Na fase religiosa, não admite a convivência de todas as religiões. Há um só Deus, o dele! Um só Credo, o que ele professa! Todos que não creem como ele crê merecem a perseguição, a morte, o inferno, pois são todos infiéis, heréticos, idólatras!

O terrorista que há em mim fala em democracia para o público externo. No íntimo, advoga uma sociedade autoritária, na qual todos pensem e ajam como ele, numa demonstração inquestionável de que fora do pensamento único não há salvação. Também fala de ética e proclama que é pecado roubar, mas embolsa o dinheiro dos fiéis, constrói mansões para o conforto de seu ego, tem horror de pobres, finge milagres para reforçar a aura divina de seu poder.

O terrorista que ocupa o meu coração é homofóbico, machista, racista, intolerante com aqueles que não se comportam segundo padrões moralistas de decência. É arrogante, prega certezas irrefutáveis. Mal-educado e grosseiro, não se levanta para dar lugar ao idoso e à mulher grávida. Desconfia da faxineira se um objeto sem valor desaparece da casa; irrita-se quando preso no engarrafamento ou se vê obrigado a enfrentar fila; usa a política para alcançar seus propósitos escusos.

O terrorista que comanda minhas emoções não é muçulmano, mas também pertence ao EI – Estado da Intolerância, que se impõe no almoço em família, no papo da roda de amigos, no local de trabalho. Ainda que dê ouvidos a um boçal para fingir educação, o que gostaria mesmo é calá-lo com um soco na cara e quebrar-lhe os dentes.

Esse terrorista que, em sociedade, usa-me como disfarce, não grita Allahu Akbar (Deus é grande!). Grita: Eu sou o cara! Dobrem-se à minha opinião! E degola virtualmente todos que discordam. Estes são queimados vivos nas brasas aquecidas pelo ódio. Divulga na internet tudo que possa ridicularizar os desafetos, adicionando mais lenha na fogueira da inquisição cibernética.

Esse terrorista fundamentalista jamais dirá ao outro “a tua fé te salvou”, como fez Jesus. Dirá “eu te salvei”. Isso se o outro comungar a fé que ele professa, ao contrário de Jesus que ousou, em supremo gesto de liberdade religiosa, dizer “a tua fé te salvou” ao centurião romano, que professava o paganismo, e à mulher cananeia, que pertencia a um povo politeísta.


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January 13, 2016

Para acalmar o mercado em Copacabana


Você vai ao réveillon de Copacabana, vê por lá milhares de turistas, se diverte e no dia seguinte lê no jornal que estamos numa recessão

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Os caras atacaram o jornal “Charlie Hebdo” um ano atrás. Os caras, o tipo de coletivo que não diz se estamos falando de bons ou maus. Posso dizer os caras para os que atacaram e para os que foram atacados. Enfim, Deus criou os caras. Ou, na onda do je suis Charlie, nós somos os caras.
Nesse ataque, que metralhou o ano de 2015 assim que ele começou, morreu um cara chamado Bernard Maris. Na coluna que assinava como Tio Bernard (Oncle Bernard) tratava como merecem ser tratadas as frescuras do mercado, o mercado está nervoso, é preciso acalmar o mercado, esse tipo de coisa. O cara era também professor de Economia na Universidade Paris VIII e, entre muitos livros, escreveu um que se chama “Carta aberta aos gurus da economia que nos tomam por imbecis”.

Uma boa leitura de começo de ano para quem ouve falar de economia a torto e a direito (muito mais a torto). Você vai ao réveillon de Copacabana, vê por lá milhares de turistas, se diverte e no dia seguinte lê no jornal que estamos numa recessão, a maior em não sei quantos anos. Ou seja, recessão é a festa fantástica de que você participou vista pelo olhar dos economistas.

Uns dias depois da festa convido Tio Bernard para um chope... em Copacabana. Nos sentamos em um bar e pergunto: o que é, afinal, a recessão?

Ele me diz: “números, estatísticas, manipulação de experts. Uns caras do mesmo tipo dos que, 15 dias antes da falência da Enron, a maior falência da história americana depois do World Com, encorajavam as pessoas a comprar papéis da Enron, isto é, tomavam por imbecis os pequenos acionários e titulares de planos de aposentadoria. No dia seguinte à falência, eles mudariam o discurso. Eles são assim, têm explicações para cada coisa e seu contrário.” Tio Bernard toma seu chope e se pergunta: “Por que a Ciência Econômica, que veio de tão alto, da Filosofia e da Lógica, de Ricardo, Marshall, Keynes, desceu ao nível do blá-blá-blá de falsos experts?”

Tomo também meu chope recessivo: então, não importa mais o fato, a festa?

E Tio Bernard: “Importa o que eles dizem, eles são os sacerdotes e as virgens da nova religião do Mercado. A eles está permitido errar, como não está aos médicos, engenheiros, maquinistas de trem, cujos erros podem levar à prisão. Os economistas podem sempre dizer uma coisa e seu contrário. São os ideólogos do liberalismo, mais aferrados ao liberalismo do que os mais ferrenhos defensores da ideologia marxista são aferrados ao marxismo, eles são os stalinistas do mercado. Os mesmos que odeiam o Estado, mas não vacilam em pedir a ajuda do Estado quando querem fechar suas contas.”

Digo a Tio Bernard: mas eu conheço pessoas que perderam o emprego, conheço gente que passa por dificuldades.

E Tio Bernard: “Eu também conheço, é a mesma coisa na França, em muitos países. E, aqui como lá, isso é um problema real. Mas os índices, as soluções receitadas pelo Banco Mundial, pelo FMI, pelo neoliberalismo são falsos. O ‘Manifesto dos economistas aterrorizados’, lido por cem mil pessoas, denuncia a manipulação de dados, que dificulta a solução real desses problemas.”


Outro chope. Pergunto: mas o antiliberalismo lá não é chamado populismo de esquerda como aqui? Ele ri. Nem precisa dizer que populismo, enganar o povo com promessas falsas que nunca se cumprem, é coisa da direita.

O mercado está nervoso? Melhor do que acalmar o mercado é você se acalmar. E Tio Bernard, pedindo outro chope: “e confiar em Keynes, esse sim, um gênio da economia, para quem o problema econômico deverá um dia voltar a seu lugar, isto é, a retaguarda.”

Aderbal Freire-Filho é autor e diretor de teatro

O GLOBO, 6 DE JANEIRO DE 2016


January 2, 2016

Bodas de sangue e ódio


clóvis rossi

Que rótulo você aplicaria a jovens que, em uma festa de casamento, esfaqueassem a foto de um bebê morto meses antes em um atentado terrorista?

Monstros? É pouco. Animais? Ofende os bichos, que são irracionais.

Aconteceu em Israel, na semana que está terminando, para horror dos judeus que não perderam a capacidade de indignar-se com atos que sua tribo anda cometendo.

Os jovens participantes da festa, nitidamente judeus ultraortodoxos, ao final dela passaram a uma macabra dança, enfeitada por armas, coquetel Molotov e facas com as quais atacavam a fotografia de Ali Dawabhsa, um bebê de 18 meses que morreu quando sua casa foi incendiada por terroristas judeus, em julho.

Diz a mídia israelense que alguns dos macabros dançarinos são parentes dos acusados (e já condenados) pelo ataque à casa dos Dawabsha. Nele morreram não apenas o bebê, mas também seus pais. Sobreviveu apenas o irmão, Ahmed, 5 anos, ainda hospitalizado pela gravidade das feridas sofridas.

A selvageria no casamento foi filmada pelos próprios participantes, prova de que não apenas não se envergonham da monstruosidade como querem difundi-la.

A TV que exibiu o vídeo informou que o ministro da Defesa, Moshe Ya'alon, mandou o filmete para lideranças de colonos, para sublinhar que dezenas de jovens extremistas apoiam apaixonadamente os terroristas judeus.

A esta altura, já estou vendo judeus no Brasil se preparando para a tradicional (e idiota) acusação de que sou antissemita ou, na melhor das hipóteses, para reclamar que não denuncio os esfaqueamentos quase cotidianos de judeus pelos palestinos.

Lamento, sim, também esses atentados, ainda mais que são apoiados pela maioria dos palestinos, conforme recente pesquisa do Centro Palestino para Políticas e Pesquisas.

Dois terços acham que os ataques "servem aos interesses palestinos de uma maneira que a negociação [de paz com Israel] não o faria".

Bobagem. Qualquer pessoa capaz de um segundo de raciocínio sabe que os palestinos podem esfaquear quantos judeus quiserem que não será por isso que Israel cederá os territórios que ocupa.
No caso palestino, seu presidente, Mahmoud Abbas, pelo menos tem um argumento a ser pesado quando diz que os atacantes palestinos são "levados pelo desespero pela falta de uma solução dos dois Estados" (um para Israel, outro para os palestinos, conforme determinação das Nações Unidas).
Que argumento podem usar os israelenses para incendiar a casa de inocentes?

Deveriam é gritar, como David Horovitz, o criador do sítio "The Times of Israel", que "não é demasiado tarde para o Estado de Israel reafirmar sua insistência em respaldar os valores fundamentais judaicos que esses jovens perderam –e, principalmente, o fundamental respeito pelo divino presente da vida humana".

"Do contrário, esses jovens dançarinos, desequilibrados e celebrando deliciosamente a morte de inocentes, trarão a ruína a todos nós."

Desconfio que o ódio mútuo na terra dita santa torna essa profecia mais iminente.

FOLHA DE SÃO PAULO, 27 de dezembro de 2015