March 28, 2016

Carta a Beatriz


antonio prata

 

Cara Beatriz: na última terça (8) você escreveu aqui pro jornal se dizendo espantada com a minha crônica de domingo (6); "após uma semana de fatos surpreendentes na política", "num momento tão importante para uma boa análise", um de seus "colunistas preferidos" havia se saído com um texto "bobo e sem propósito".

Fico feliz por me citar entre seus "colunistas preferidos", mas me pergunto se o elogio foi sincero ou só uma gentileza. Afinal, quase toda semana o Brasil nos brinda com "fatos surpreendentes na política" e quase todo domingo, em vez de uma "boa análise", publico textos que poderiam ser considerados bobos e sem propósito.

Não o faço por desvio de caráter nem para irritá-la, Beatriz, mas por dever de ofício. O cronista é um cara pago para lubrificar as engrenagens do maquinário noticioso com um pouco de graça, de despropósito e -vá lá, por que não?- de bobagem. Minha função é lembrar o leitor desolado entre bombas na Síria, tiros na Rocinha e patacoadas em Brasília que este mundo também comporta mangas maduras, Monty Python, Pixinguinha.

O Rubem Braga atravessou duas ditaduras e seu maior libelo à liberdade não é um texto contra o pau de arara, mas uma carta/crônica ao vizinho que havia reclamado do barulho. O AI-5 podou direitos políticos e a liberdade de expressão, mas não impediu que continuassem a brotar trocadilhos da pena do Millôr Fernandes. (Afinal, como ele mesmo disse, "A justiça farda, mas não talha"). Se você achou as minhas piadas infames, tá legal, eu aceito o argumento, mas se a crítica é por ter feito piada num momento crítico eu não acolho; that's my job.

É verdade que nem sempre sou um funcionário exemplar. Às vezes a vontade de comentar o noticiário é mais forte do que eu e fraquejo: acabo dando meus pitacos. Sobre a semana passada, contudo, sobre esta semana e os últimos meses, não tenho muito o que dividir contigo além da minha perplexidade e da minha tristeza.

Dizem que vivemos um Flá-Flu. Quem dera! Saudades dos tempos em que havia dois times e eu sabia para quem torcer. Hoje, em que arquibancada vou me sentar? Da Dilma e do PT, que mentiram e quebraram o país para se reeleger? Do PSDB, que varre chacinas para baixo do tapete estatístico e vota pautas bomba para apressar o impeachment?

Pra ser franco, nem entendo direito que campeonato está sendo jogado. O que é a Lava Jato, por exemplo? É uma ação imparcial para acabar com a corrupção generalizada entre nós ou uma revanche classista, visando punir os ilícitos apenas de um lado? E se for uma revanche classista para punir ilícitos apenas de um lado, isso por acaso perdoa os ilícitos cometidos por tal lado? Estamos vivendo um momento catártico, tirando esqueletos seculares do armário? Ou voltando na história, fortalecendo os eternos donos do poder e seus velhos capitães do mato?

Não sei, realmente. Às vezes sou Flá, às vezes sou Flu, mas na maior parte do tempo vaio os dois times e procuro no horizonte, sem sucesso, um Botafogo ou Vasco que venha resgatar a minha esperança no ludopédio político. Lamento, Beatriz, mas atualmente a única "boa análise" que tenho sido capaz de fazer é às quintas, 15h, deitado num divã na rua Apiacás –e nem sempre é assim tão boa.

Um abraço.

FOLHA DE SÃO PAULO, 13 DE MARÇO DE 2016 

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