May 28, 2023

A historia dos vencidos

 

  

 Procurei um velho amigo
na Avenida Paulista e ele não estava
mais lá. Registro aqui a sua existencia. 

 P O R  M A R I A  R I TA  K E H L

Recentemente, fui visitar
meu amigo na Avenida
Paulista e ele não estava lá.
Ninguém, ao redor de seu
endereço, sabia seu para-
deiro. Tinha desaparecido da minha pai-
sagem tão familiar.

Acontece que seu endereço não era o
de um prédio ou de uma loja. Era uma
barraca na calçada, dessas que uma ONG
teve a excelente ideia de distribuir para
moradores de rua. Meu amigo, cujo nome
nunca me ocorreu perguntar, não mora-
va só. Como também acontece com mo-
radores de rua, vivia com seus cachorros.
Cinco. Só me lembro do nome de uma de-
las: Vaquinha. Hoje, percebo, consterna-
da, que também nunca perguntei o nome
do próprio dono dos cãezinhos! Quando
eu passava por ali, pedia dinheiro ape-
nas para comprar comida para os bichos.
Mas, além de ajudá-lo com a ração barata
dos seus bichinhos, eu também compra-
va, no bar atrás de sua barraca, um pas-
tel de carne e um de frango. A exclama-
ção de prazer com que ele recebia o lan-
che – ôôô dona! – evidenciava que, ape-
sar de pedir ajuda apenas para alimentar
seus cachorros, ele também tinha fome.
Na triste ocasião em que não o encon-
trei, perguntei do seu paradeiro ao dono
do bar. Me disse que a polícia tirou a bar-
raca e levou os cachorros para um abri-
go da prefeitura, porque o rapaz os tinha
deixado três dias trancados na barraca,
sozinhos. Por alguns dias, sumiu.

 
Não acredito que fosse descaso. Para
mim, era óbvio o apego aos cachorros.
Pode ter adoecido e ido parar em um hos-
pital público – onde, talvez, tenha ficado
alguns dias num corredor à espera de as-
sistência, não por desleixo dos médicos,
mas por falta de leitos disponíveis. Po-
de ter sido preso, por puro preconceito
da polícia. Imaginei a desolação de vol-
tar para “casa” e não achar nem a barra-
ca nem sua família canina.

 
Não subestimemos o apego dos mora-
dores de rua por seus cães. São sua com-
panhia, seus defensores e, nas noites de
inverno, também são capazes de aque-
cê-los. Entendo que seu pedido de aju-
da para comprar comida para eles fosse
sincero, não apenas um truque para pe-
dir esmolas. “O estômago roncava, mas
não deixou de dividir o pastel com aque-
le cachorro que era a desgraça de sua vi-
da”, diz um lambe-lambe fixado em um
poste da Vila Madalena. Assim é.


Não perdoo a
insensibilidade,
com cheiro de
eugenia, do prefeito
Ricardo Nunes

 
Tomei um táxi e passei bem devagar,
na ida e na volta, debaixo do viaduto que
liga a Doutor Arnaldo à Paulista. As cal-
çadas ali estão todas ocupadas pelos mo-
radores de rua que se protegem do frio e
da chuva. Ele não estava lá. Fiquei triste
como se tivesse perdido contato com um
parente próximo, com um velho amigo.
Faz pouco soube que o desmonte das
barracas dos moradores de rua tornou-se
uma política oficial imposta pelo prefei-
to-coxinha Ricardo Nunes. Uma cruel-
dade gratuita. Que mal fazem eles? Os
moradores de rua não são bandidos. Por
que o prefeito filiado ao MDB optou por
uma “limpeza étnica” na cidade?

 
Étnica, sim, pois a maioria dos muito
pobres costuma ser de negros, descenden-
tes dos escravos que, no Brasil, foram jo-
gados nas ruas sem nenhum recurso pa-
ra refazer suas vidas, depois da abolição.
Os Estados Unidos têm uma conside-
rável parcela da população composta de
negros de classe média – um deles che-
gou a presidente da república – por con-
ta da política que, em alguns estados do
Sul, concedeu um pedaço de terra e um
animal de tração para as famílias liber-
tas. Aqui, foram simplesmente jogados
nas ruas. O senhor de escravos que man-
tinha, sob uma dieta de fome, cem afri-
canos trabalhando para ele sob açoite, ao
ser obrigado a contratá-los escolheu os
mais fortes e despejou o “resto” na rua.
Não por acaso, a maior parte da popula-
ção pobre é composta de descendentes
de africanos. Não são vagabundos. São os
órfãos da abolição.

 
Volto ao prefeito. Será que pensa que
roubando – esse é o termo – as barracas

legitimamente concedidas aos morado-
res de rua, eles desaparecerão das calça-
das? Para onde iriam? Continuarão nas
calçadas, evidentemente. Só que com
frio. Debaixo da chuva, que, quando vem
forte, não tem marquise que proteja.
Por que me valho deste espaço pa-
ra contar a história de um morador de
rua anônimo? Bem, como escreveu o fi-
lósofo judeu-alemão Walter Benjamin
em suas Teses Sobre o Conceito de Histó-
ria, a história oficial refere-se, invaria-
velmente, aos fatos e bravuras cometi-
dos pelos vencedores. Os reis, os vence-
dores de batalhas, os heróis. É com es-
tes que os historiadores, que ele chama
de “historicistas”, se identificam. “Os
que num dado momento dominam”,
escreveu, “são os herdeiros de todos os
que venceram antes. A empatia com o
vencedor beneficia, sempre, portanto.
esses dominadores. Isso diz tudo para
o materialista histórico. Todos os que
até hoje venceram participam do cor-
tejo triunfal, em que os dominadores de
hoje espezinham os corpos dos que es-
tão prostrados no chão.”

 
Quem contaria a história dos vencidos?
É necessário contar a história deles, pois
a dos vencedores está nos livros, nas te-
ses, nas homenagens, nas salas de aula. Se
meu amigo sumiu – talvez eu nunca mais
o veja –, que ao menos sua existência anô-
nima fique registrada aqui. Uma vida anô-
nima e injustiçada. Imagino como esta-
rá triste longe de seus cachorros. Imagino
como os cãezinhos estarão tristes longe
dele. E não perdoo, como espero que os lei-
tores desta coluna também não perdoem,
a insensibilidade “limpinha”, cheirando
a eugenia, do prefeito Ricardo Nunes.
CARTA CAPITAL  

 

 

 

 

 

May 27, 2023

O TRABALHO ESCRAVO PERSISTE

 

 

 PASSADOS 135  ANOS DA LEI ÁUREA, O TRABALHO ESCRAVO
PERSISTE GRAÇAS AO VALETUDO DAS TERCEIRIZAÇÕES E À
RELUTÂNCIA DO JUDICIÁRIO EM PUNIR OS ESCRAVOCRATAS

p o r  F A B Í O L A M E N D O N Ç A

 Aos 8 anos de idade, Valdi-
rene foi trabalhar como
doméstica em troca de
um punhado de cruzei-
ros que eram repassados
à mãe todo mês. Isso, no
fim dos anos 1980. A me-
nina foi entregue à famí-
lia pela própria genitora, que não tinha
mais condições de criar os filhos depois
de ser abandonada pelo marido. Valdi-
rene passou, então, a cuidar de crianças
quase da mesma idade da dela e a dar con-
ta dos afazeres domésticos, que não eram
poucos. “No interior, se diz muito ‘vou le-
var pra casa pra brincar com meus filhos’,
mas, na verdade, faz-se de tudo. Muitas
vezes em troca das sobras de comida. O
que sobra das próprias crianças eles di-
zem ‘ah, está limpo’ e botam no seu pra-
to para você comer”, relembra a domés-
tica, hoje com 42 anos e diretora do Sin-
dicato das Empregadas Domésticas da
Bahia. A história de Valdirene é um típi-
co caso de escravidão moderna, uma he-
rança maldita de mais de três séculos de
escravização no Brasil, uma ferida aberta
até os dias de hoje, mesmo passados 135
anos da Lei Áurea.

 
O processo de escravização de Valdire-
ne repetiu-se em outras casas e estendeu-
-se por longos dez anos. Aos 12 anos, de-
pois de ter sido estuprada pelo patrão e de
uma breve passagem por outro trabalho
forçado no município de Camacã, no ex-
tremo sul da Bahia, Valdirene fugiu pa-
ra Salvador, com a promessa de ter os di-
reitos trabalhistas garantidos em um no-
vo emprego doméstico. Ledo engano. Lá,
passou outros quatro anos em cárcere pri-
vado, muitas vezes trabalhando sob vio-
lência e à base de biscoito e água. Segundo
explica, “num vacilo” da patroa escravis-
ta, ela conseguiu escapar e chegar à sede
do Sindicato das Domésticas, que denun-
ciou o caso ao Conselho Tutelar e ao Mi-
nistério do Trabalho. “Infelizmente, não
deu em nada. É muito triste a gente passar
por tudo isso e um juiz dar ganho de causa
ao empregador”, recorda. “As pessoas que
julgam nossas causas também são em-
pregadores e pensam igual aos patrões.”
Situação semelhante à de Valdirene é
a de Madalena Gordiano, um caso em-
blemático de grande repercussão ocorri-
do em Minas Gerais. A diferença entre as
duas foi o desfecho. Depois de 38 anos vi-
vendo em condições análogas à escravi-
dão e servindo a duas gerações da mesma
família, Gordiano foi resgatada no fim de
2020 e conseguiu, via um Termo de Ajus-
tamento de Conduta (TAC), uma indeni-
zação equivalente a mais de 600 mil reais,
valor considerado fora da curva pelos pró-
prios especialistas. Madá, como é chama-
da, trabalhou por 24 anos para uma famí-
lia no município de Viçosa, interior minei-
ro, e, depois, foi levada para Patos de Mi-
nas, onde ficou por mais 14 anos, servin-
do à segunda geração da família.

 
“Constatamos que Madalena era sub-
metida a jornadas exaustivas de trabalho,
de domingo a domingo, sem direito a in-
tervalo entre uma jornada e outra. Ela co-
meçava a trabalhar às 2, 4 horas da ma-
drugada e ia até as 8 da noite, uma carga
extenuante”, relembra Thiago de Castro,
procurador do trabalho que atuou no caso
e vice-coordenador nacional do GT sobre
trabalho doméstico do Ministério Públi-
co do Trabalho (MPT). Gordiano recebia,
em média, 200 reais por mês, valor que
não dava sequer para os custos com mate-
rial de higiene pessoal, que não era ofere-
cido pelos patrões. “Eu colocava bilhetes
por baixo da porta dos vizinhos pedindo
ajuda, um dinheiro para comprar um sa-
bonete, um papel higiênico, que eu não ti-
nha. Eles me pagavam pouco, eu tinha de
pedir porque não dava para comprar na-
da”, explica a ex-doméstica, que, com a in-
denização, adquiriu dois quitinetes. Mora
em um e alugou o outro, de onde tira seu
sustento. Orgulhosa, Madá diz que voltou
a estudar, através do programa Educação
de Jovens e Adultos.

 
“Não tem indenização financeira que
recupere a vida que essas pessoas perdem
nas casas onde são escravizadas. A gen-
te precisa desconstruir esse discurso do
‘é como se fosse uma pessoa da família’.
Não sentamos na mesa para nos alimen-
tar com eles, não dormimos nos melhores
aposentos da casa, e sim num quartinho
quente, abafado, cheio de objetos que eles
não querem mais, não estamos no testa-
mento nem no plano de saúde deles e não
participamos das decisões da família. En-
tão, como é que somos da família?”, dis-
para Luíza Batista, presidente da Federa-
ção Nacional das Trabalhadoras Domés-
ticas. Ela cita a dificuldade do sindicato de
ter acesso ao local de trabalho, facilitan-
do ainda mais a exploração por parte dos
patrões. “Como o crime acontece dentro
das residências, os sindicatos não podem
ir até lá, porque, pela Constituição, a re-
sidência é inviolável”, observa, chaman-
do atenção para uma campanha do MPT,
em parceria com o Sindicato Nacional dos
Auditores Fiscais (Sinait), para flexibili-
zar a fiscalização do trabalho doméstico.

Apesar de real, a escravidão domésti-
ca está longe da aparecer nas estatísticas.
Segundo dados compilados pela platafor-
ma Smartlabbr.org, com base nos núme-
ros divulgados pelo Ministério do Traba-
lho, entre 1995 e 2022, os setores econômi-
cos com maior incidência de trabalho aná-
logo à escravidão são os de criação de bo-
vinos (29%), plantações de cana (14%) e de
café (6%), seguidos de fabricação de álcool,
construção civil e produção florestal (to-
dos figuram com 4%), além dos cultivos de
soja e algodão (3% cada). Nesta série his-
tórica de quase 30 anos foram resgatados
57,7 mil trabalhadores em situação análo-
ga à escravidão, dos quais 2.575 em 2022.

 
De acordo com uma pesqui-
sa realizada pela Clínica de
Trabalho Escravo e Tráfico
de Pessoas da Faculdade de
Direito da UFMG, entre 2017
e 2022 foram realizadas 335
fiscalizações no estado. Em 174 (51,4%)
delas foi constatado trabalho análogo à
escravidão. A maior incidência foi no se-
tor da agricultura (45,97%), seguida pe-
la carvoaria (33,33%), onde os trabalha-
dores viviam e trabalhavam em situa-
ção degradante, uma das modalidades da
escravidão moderna. “Em praticamen-
te 100% dos casos identificamos o que a
gente chama de tripé do trabalho degra-
dante: alojamento precário, sem água po-
tável, sem instalações sanitárias e condi-
ções de higiene sequer para se alimentar.
Não é só uma mera irregularidade traba-
lhista”, explica Lívia Miraglia, uma das
coordenadoras da Clínica da UFMG. A
pesquisadora acrescenta que o estudo
também identificou jornada de trabalho
exaustiva, servidão por dívida e confisco
de documentos das vítimas, reforçando
a prática escravista.

 
Há mais de dez anos realizando traba-
lho de campo nas operações que fiscali-
zam a escravidão moderna, Lucas Reis,
auditor do trabalho e diretor do Sinait,
explica que o trabalho forçado está pre-
sente em todos os setores econômicos.

 
“Antes, as fiscalizações eram pratica-
mente na área rural, mas avançaram
para o ambiente urbano. No setor têxtil,
o número de resgates tem sido bastante
representativo, assim como no trabalho
doméstico”, ressalta Reis, citando que a
construção civil é mais um segmento que
figura entre as atividades escravocratas,
sobretudo no processo de construção de
grandes obras, como aeroportos e nos es-
tádios da Copa e das Olimpíadas. No ra-
mo têxtil, marcas já conhecidas do con-
sumidor como Zara, Farm, Animale e
M. Officer também estão associadas ao
trabalho análogo à escravidão. Em abril
passado, quatro bolivianos foram resga-
tados de uma oficina de costura, no inte-
rior de São Paulo. Eles chegavam a traba-
lhar 15 horas por dia e viviam em situa-
ção degradante, sem higiene e segurança.
Em março deste ano, cinco trabalha-
dores que prestavam serviços para o fes-
tival de música Lollapalooza, considera-
do um dos maiores do mundo, também
foram resgatados em condições análo-
gas à escravidão. A organização do even-
to tentou se desvencilhar da responsabi-
lidade, alegando tratar-se de contratados
por empresas terceirizadas, o mesmo
álibi apresentado pelas vinícolas Aurora,
Salton e Garibaldi, na Serra Gaúcha, on-
de foram resgatados no início deste ano
207 pessoas trabalhando em situação de-
gradante e sob violência física. Em mar-
ço foi assinado um TAC entre o MPT e
as vinícolas, dando o direito a cada víti-
ma de receber míseros 9,6 mil reais em
indenização. Outros 5 milhões de reais
foram destinados a entidades, fundos e
projetos voltados para o combate ao tra-
balho escravo.

 
As vinícolas disseram que as vítimas
não eram contratadas diretamente por
elas, e sim pelas empresas terceirizadas
Fênix Serviços Administrativos e Apoio
à Gestão de Saúde Ltda. Este é um discur-
so recorrente, uma vez que, após a apro-
vação da Lei da Terceirização, que permi-
te esse tipo de prática para atividade-fim,
muitas empresas pulverizam sua cadeia
de produção, como explica Lucas Reis.
“A terceirização faz com que as grandes
empresas, que mais se beneficiam com
o trabalho escravo, fechem os olhos pa-
ra as violações que ocorrem nessa cadeia
de produção. Elas se apropriam do lucro
que advém do trabalho nessas condições
desumanas, mas não se responsabilizam
pelas violações que ocorrem.”

 
Outro problema é a baixa punição dos
empregadores escravocratas, fato que é
apontado como estímulo a esse tipo de
ilegalidade. No Pará, por exemplo, há o
caso polêmico de uma ação civil p

ca promovida pelo MPT, em que dois fa-
zendeiros são condenados pela prática de
trabalho escravo contemporâneo na pri-
meira instância, com total improcedên-
cia da ação na segunda instância. Apesar
da tentativa dos ruralistas de destruí-
rem as provas ao queimar os alojamen-
tos instalados em situação degradante, o
Grupo Móvel do Ministério do Trabalho
recebeu a denúncia por filmagens feitas
pelos próprios trabalhadores e, ao chegar
ao local, constatou o crime e ainda conse-
guiu resgatar três trabalhadores. Cientes
da chegada da equipe com os auditores na
cidade, os fazendeiros expulsaram os tra-
balhadores sob tiros. Na primeira instân-
cia, os ruralistas, conhecidos na região co-
mo “reis do gado”, foram condenados a pa-
gar 500 mil reais por dano moral coleti-
vo e verbas rescisórias para os trabalha-
dores. Mas a quarta turma do TRT-8 não
reconheceu o caso como trabalho escra-
vo e julgou improcedente a ação.

 
“O que é trabalho degradante para os
magistrados brasileiros, pessoas bran-
cas, de classe média alta em sua expres-
siva maioria, que dificilmente tiveram de
enfrentar as agruras do trabalho braçal
que esses trabalhadores enfrentam des-
de a tenra idade? As pesquisas sociológi-
cas indicam que eles se solidarizam com
esses exploradores de mão de obra de tra-
balhadores escravizados, não condenan-
do nem reconhecendo a prática crimino-
sa”, observa Valena Jacob, pesquisadora e
coordenadora da Clínica de Combate ao
Trabalho Escravo da Universidade Fede-
ral do Pará. O caso será julgado pelo TST e
a Clínica participará do processo na con-
dição de amicus curiae.

 
A legislação brasileira é muito clara
na definição do trabalho escravo, mas a
aplicabilidade da lei nem sempre preva-
lece. A PEC que trata desse tipo de crime
foi aprovada em 2014, depois de quase 20
anos tramitando no Congresso Nacio-
nal, mas precisaria de um PL para regu-
lamentar o conceito de trabalho escravo.
“Temos o artigo 149 do Código Penal, que
já foi alterado em 2003 e diz claramen
te o que é trabalho escravo, um conceito
bastante elogiado pela OIT e pela ONU”,
esclarece a juíza do trabalho e presiden-
ta eleita da Associação Nacional dos Ma-
gistrado da Justiça do Trabalho, Luciana
Conforti. Dentre as penalidades previs-
tas na PEC do Trabalho Escravo está a ex-
propriação de terras onde ocorre o crime,
mas a proposta não foi regulamentada, es-
tá em debate no Senado Federal.

 
Segundo o Código Penal, são
quatro as modalidades de tra-
balho escravo: 1. Forçado,
quando as vítimas trabalham
sob ameaça de sofrer punição
ou têm sua liberdade restrin-
gida, como, por exemplo, trabalham em
local onde há vigilância ostensiva arma-
da. 2. Quando o trabalhador é submeti-
do a condições degradantes no ambiente
laboral e de moradia. 3. Quando a jorna-
da de trabalho é exaustiva e compromete
a saúde do trabalhador. 6. A servidão por
dívida, na qual o trabalhador se endivida
com o explorador para comprar itens es-
senciais à sua sobrevivência.

 
A impunidade, nos casos de respon-
sabilização criminal, é a regra. Um terço
dos indiciados nem sequer vai a julgamen-
to e somente 6,3% dos réus são condena-
dos definitivamente, atesta uma pesqui-
sa da Clínica da UFMG. Pior, apenas 1%
dos acusados acaba sentenciado a mais
de quatro anos de prisão e, efetivamente,
cumpre pena em regime fechado.

 
Além do Código Penal, que cuida da
parte criminal, existe a responsabiliza-
ção trabalhista, que fica a cargo dos audi-
tores fiscais do trabalho, do MPT, da De-
fensoria Pública da União e da Justiça do
Trabalho. “Nos termos dos direitos tra-
balhistas existem ações diversas, como
as cautelares, as civis públicas e o TAC.
Em todas essas medidas são levados em
consideração critérios como a avaliação
dos valores a título de responsabiliza-
ção do empregador, a gravidade da situ-
ação encontrada, o tempo de duração da
prática ilegal e a quantidade de pessoas
atingidas”, explica Lys Sobral Cardoso,
procuradora do trabalho e coordenado-
ra nacional de Erradicação do Trabalho
Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas do Ministério Público do Tra-
balho. Segundo Cardoso, muitas vezes
os acordos prévios acontecem para evi-
tar que o caso se estenda muito e se per-
ca por conta do tempo decorrido. “Mui-
tas vezes, pelo risco de não se conseguir
nada, garante-se um acordo logo no iní-
cio, para que as vítimas possam receber
os valores devidos.”

 
O presidente do Sinait, Bob Machado,
queixa-se da defasagem de pessoal para
fazer as fiscalizações. Segundo afirma, o
Ministério do Trabalho passa por um mo-
vimento de esvaziamento e há dez anos
não realiza concurso público para audito-
res do trabalho. “Nós temos, hoje, do pon-
to de vista da inspeção do trabalho, o me-
nor número de auditores fiscais dos últi-
mos 33 anos. É humanamente impossível
atender às demandas da sociedade brasi-
leira de maneira adequada, e aí estou fa-
lando não só do combate ao trabalho es-
cravo, mas de outros tipos de fiscaliza-
ções, a exemplo do combate ao trabalho
infantil”, diz, acrescentando que hoje há
menos de 2 mil auditores do trabalho em
atividade no País e que mesmo que os ou-
tros 1,7 mil cargos vagos fossem ocupados
o número não seria suficiente. O ideal, se-
gundo Machado, seria a contratação de 5
mil novos auditores do trabalho.

 
A Superintendência Regional
do Trabalho em Pernambuco
criou uma comissão triparti-
te, com representação dos tra-
balhadores, dos empregado-
res e os fiscais do Ministério
do Trabalho, para discutir a responsa-
bilização de cada ator nesse processo, no
sentido de prevenir não só a escravidão
moderna, mas todo tipo de trabalho ile-
gal. “Fiscalizar é importante, mas é pre-
ciso também construir uma nova menta-
lidade no trabalho. Os empregadores de-
vem entender as consequências de parar
na lista suja, e os trabalhadores devem co-
nhecer seus direitos para atuar com dig-
nidade”, explica Suzi Rodrigues, superin-
tendente do MTE em Pernambuco.

 
Em janeiro deste ano, em uma ação
conjunta do Tribunal Superior do Traba-
lho (TST) e do Conselho Nacional da Jus-
tiça do Trabalho, foi criado um GT com a
finalidade de combater a escravidão mo-
derna e o tráfico de pessoas. O grupo é for-
mado não apenas por magistrados, mas
também por procuradores do trabalho
e pesquisadores. “Não temos ainda uma
compilação daquilo que vamos apresentar
no relatório final, mas é possível cogitar
que uma atitude mais firme em proces-
sos que envolvam trabalho escravo, trá-
fico de pessoas e proteção a migrante te-
nha preferência em relação a outros feitos,
tendo em vista a absoluta gravidade des-
sa conduta, que implica aviltamento da
condição humana, o que é absolutamente
intolerável. Então, esses processos pre-
cisam ter prioridade mesmo”, explica o
coordenador do GT, o ministro do TST
Augusto César Leite de Carvalho.

 
O magistrado acrescenta que o grupo
deve propor também a formação para os
juízes trabalhistas que aborde esses te-
mas, além de apresentar projetos ao Le-
gislativo no sentido de erradicar o traba-
lho escravo, a partir de multas e repara-
ções mais contundentes. Enquanto isso,
os sucessivos flagrantes de trabalho es-
cravo mostram o que o Brasil ainda está
longe, muito longe de abolir a prática. Na
quarta-feira 10, uma operação resgatou
dez trabalhadores em condições análogas
à escravidão em uma fazenda de café no
Espírito Santo. Aliciados nos estados de
Sergipe e Alagoas com a promessa de sa-
lários vantajosos, só perceberam que fo-
ram enganados ao chegar no local de tra-
balho. Vivendo em condições insalubres,
eles recebiam 16 reais por saca de 60 qui-
los de café colhido, mas tinham descon-
tadas dívidas com o empregador. Um caso
clássico de servidão moderna. Mais um.

CARTA CAPITAL