Fred Coelho
Em momentos de crise, narrativas são preciosos objetos de disputa. Narrar algo, isto é, contar, relatar, fabular sobre algum evento ocorrido, é o que fazemos todos os dias. Muitas vezes, ficamos também a narrar a narrativa alheia, produzindo camadas cujas origens podem ser muito distantes de nós no tempo e no espaço. Sempre vale conferir de onde vem o que se repete. O fato é que temos algumas responsabilidades sobre as narrativas que escolhemos para nos posicionar no mundo.
Adotamos pontos de vista de acordo com hábitos, vivências e espaços que condicionam os nossos discursos e influem diretamente no que estamos narrando. No atual cenário em que plataformas de escrita se multiplicam diariamente, os monopólios tradicionais das narrativas sobre as informações muitas vezes demonstram esgotamentos. Além disso, há hoje a possibilidade, inédita em outros tempos, de se acessar a qualquer momento um amplo arquivo virtual para pesquisar assuntos e criar sua própria versão dos fatos. A internet desestabiliza narrativas oficiais e cria um ambiente arisco tanto para certezas cegas quanto para suposições. Temos cada vez mais pessoas escrevendo e pesquisando, e isso aumenta, também, as contradições das narrativas elementares que muitas vezes vemos circularem no senso comum. Boatos nascem na mesma velocidade com que são desmentidos.
Nesse sentido, aquilo que estamos lendo e ouvindo nos últimos dias sobre o quadro político brasileiro gera apreensão. Temos visto em jornais e sites a promoção diária de uma disputa política polarizada por certas opções narrativas que simplificam o país ao apostar em fabulações nocivas. O ponto aqui não é negar o confronto (sempre de ideias), mas sim lamentar irresponsabilidades. São escritas e falas que criam climas de expectativa com palavras no mínimo mal escolhidas. Vimos recentemente jornalistas experientes, que sabem exatamente o impacto de certas expressões no imaginário dos seus leitores, utilizarem termos como “milícia” para se referir aos apoiadores do PT. Isso é um fato? O partido tem membros armados e treinados para o confronto contra os seus inimigos? É prudente utilizar a mesma expressão para definir alguns poucos militantes que brigam nas ruas (sozinhos? Contra pessoas cordatas? Ou contra pessoas tão agressivas quanto seus inimigos?) e os meliantes que ocupam as comunidades cariocas com brutal violência contra sua população? Em dias de incêndio, palavras são gasolina quando a intenção do seu uso é dúbia. Nessa narrativa, vivemos diariamente a iminência de uma ruptura institucional sem volta, com militares e milicianos prontos para se enfrentar nas ruas. É isso mesmo que estamos vendo no dia a dia dos milhões de trabalhadores, estudantes e da população em geral? Olhe ao seu redor, pense bem e responda.
Para além da obviedade embutida nessa narrativa do confronto, fica óbvio que aí se instala uma armadilha e a resposta do outro lado subirá sempre de tom. Quem ataca? Quem defende? Quem é vítima e quem é algoz? Um texto que anuncia um suposto confronto em âmbito nacional não é a mesma coisa que uma reportagem que relata ocorrências esparsas. É uma fabulação. Fica aberto a qualquer uso, sem base lógica para além de suas intenções especulativas. Alucinados de todos os espectros ideológicos são movidos por brechas como essas e propagam sandices militarizadas, arroubos destrutivos ou ódios fundamentalistas. O que lemos e ouvimos por aí cada vez mais é a intolerância como dispositivo de hipocrisia acusatória. Alimentá-la sem lastro no real é uma temeridade.
Somos inimigos entrincheirados, apenas? Sabemos que não. Há narrativas contemporâneas mais amplas, que englobam a arte, o planeta, os corpos, a espécie, os afetos, o futuro. Existem também narrativas mais subjetivas, que enxergam a política de forma expandida, através dos ganhos concretos que ocorreram em suas vidas e dos que vivem ao seu redor. Há ainda as narrativas que apenas observam, isentas do quadro atual em prol de uma aposta para além dos nomes e eventos que se desenrolam. E existem até mesmo narrativas fanáticas que invocam totalitarismos salvadores ao redor de “mitos” cultivados pelo ódio à diferença. Tudo solto na plataforma do ar.
E assim um país plural como o Brasil se vê em 2016 em plena “guerra fria”, falando de militares, comunistas, supostas milícias, de Cuba, do imperialismo, de Deus, da família, de petróleo etc. Não que problemas crônicos estejam ultrapassados — afinal, a desigualdade social permanece inalterada em sua estrutura perversa, e o saneamento básico, por exemplo, continua sendo uma tragédia social secular entre nós. Mas há muita coisa em jogo no país para além das narrativas que apostam no conflito. É nesse sentido que escolher lados em uma democracia é fundamental, desde que seja para superar impasses — e não para alimentá-los com medos, paralisias e violências.
O GLOBO, 9 DE MARÇO DE 2016
Em momentos de crise, narrativas são preciosos objetos de disputa. Narrar algo, isto é, contar, relatar, fabular sobre algum evento ocorrido, é o que fazemos todos os dias. Muitas vezes, ficamos também a narrar a narrativa alheia, produzindo camadas cujas origens podem ser muito distantes de nós no tempo e no espaço. Sempre vale conferir de onde vem o que se repete. O fato é que temos algumas responsabilidades sobre as narrativas que escolhemos para nos posicionar no mundo.
Adotamos pontos de vista de acordo com hábitos, vivências e espaços que condicionam os nossos discursos e influem diretamente no que estamos narrando. No atual cenário em que plataformas de escrita se multiplicam diariamente, os monopólios tradicionais das narrativas sobre as informações muitas vezes demonstram esgotamentos. Além disso, há hoje a possibilidade, inédita em outros tempos, de se acessar a qualquer momento um amplo arquivo virtual para pesquisar assuntos e criar sua própria versão dos fatos. A internet desestabiliza narrativas oficiais e cria um ambiente arisco tanto para certezas cegas quanto para suposições. Temos cada vez mais pessoas escrevendo e pesquisando, e isso aumenta, também, as contradições das narrativas elementares que muitas vezes vemos circularem no senso comum. Boatos nascem na mesma velocidade com que são desmentidos.
Nesse sentido, aquilo que estamos lendo e ouvindo nos últimos dias sobre o quadro político brasileiro gera apreensão. Temos visto em jornais e sites a promoção diária de uma disputa política polarizada por certas opções narrativas que simplificam o país ao apostar em fabulações nocivas. O ponto aqui não é negar o confronto (sempre de ideias), mas sim lamentar irresponsabilidades. São escritas e falas que criam climas de expectativa com palavras no mínimo mal escolhidas. Vimos recentemente jornalistas experientes, que sabem exatamente o impacto de certas expressões no imaginário dos seus leitores, utilizarem termos como “milícia” para se referir aos apoiadores do PT. Isso é um fato? O partido tem membros armados e treinados para o confronto contra os seus inimigos? É prudente utilizar a mesma expressão para definir alguns poucos militantes que brigam nas ruas (sozinhos? Contra pessoas cordatas? Ou contra pessoas tão agressivas quanto seus inimigos?) e os meliantes que ocupam as comunidades cariocas com brutal violência contra sua população? Em dias de incêndio, palavras são gasolina quando a intenção do seu uso é dúbia. Nessa narrativa, vivemos diariamente a iminência de uma ruptura institucional sem volta, com militares e milicianos prontos para se enfrentar nas ruas. É isso mesmo que estamos vendo no dia a dia dos milhões de trabalhadores, estudantes e da população em geral? Olhe ao seu redor, pense bem e responda.
Para além da obviedade embutida nessa narrativa do confronto, fica óbvio que aí se instala uma armadilha e a resposta do outro lado subirá sempre de tom. Quem ataca? Quem defende? Quem é vítima e quem é algoz? Um texto que anuncia um suposto confronto em âmbito nacional não é a mesma coisa que uma reportagem que relata ocorrências esparsas. É uma fabulação. Fica aberto a qualquer uso, sem base lógica para além de suas intenções especulativas. Alucinados de todos os espectros ideológicos são movidos por brechas como essas e propagam sandices militarizadas, arroubos destrutivos ou ódios fundamentalistas. O que lemos e ouvimos por aí cada vez mais é a intolerância como dispositivo de hipocrisia acusatória. Alimentá-la sem lastro no real é uma temeridade.
Somos inimigos entrincheirados, apenas? Sabemos que não. Há narrativas contemporâneas mais amplas, que englobam a arte, o planeta, os corpos, a espécie, os afetos, o futuro. Existem também narrativas mais subjetivas, que enxergam a política de forma expandida, através dos ganhos concretos que ocorreram em suas vidas e dos que vivem ao seu redor. Há ainda as narrativas que apenas observam, isentas do quadro atual em prol de uma aposta para além dos nomes e eventos que se desenrolam. E existem até mesmo narrativas fanáticas que invocam totalitarismos salvadores ao redor de “mitos” cultivados pelo ódio à diferença. Tudo solto na plataforma do ar.
E assim um país plural como o Brasil se vê em 2016 em plena “guerra fria”, falando de militares, comunistas, supostas milícias, de Cuba, do imperialismo, de Deus, da família, de petróleo etc. Não que problemas crônicos estejam ultrapassados — afinal, a desigualdade social permanece inalterada em sua estrutura perversa, e o saneamento básico, por exemplo, continua sendo uma tragédia social secular entre nós. Mas há muita coisa em jogo no país para além das narrativas que apostam no conflito. É nesse sentido que escolher lados em uma democracia é fundamental, desde que seja para superar impasses — e não para alimentá-los com medos, paralisias e violências.
O GLOBO, 9 DE MARÇO DE 2016
No comments:
Post a Comment