PROCESSO A QUE A FOLHA TEVE ACESSO EXPLICITA COLABORAÇÃO ENTRE CANTOR E O DEPARTAMENTO DE ORDEM POLÍTICA E SOCIAL; EM VIDA, ARTISTA DESMENTIA VÍNCULO COM ÓRGÃOS DE SEGURANÇA |
MÁRIO MAGALHÃES
DA SUCURSAL DO RIO
Wilson Simonal de Castro, um dos mais talentosos cantores do Brasil em todos os tempos, declarou formalmente em 1971 que era informante do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), a polícia política do antigo Estado da Guanabara.
Seu depoimento na polícia foi avalizado reiteradamente em processo judicial por seu advogado Antonio Evaristo de Moraes Filho.
A declaração de Simonal e a confirmação de Evaristo nunca foram divulgadas -conhecem-se apenas as manifestações de proximidade do artista com o Dops, mas em público ele negava ter sido informante.
A Folha teve acesso ao processo 3.540/72, do qual consta o depoimento em que Simonal reconhece seus serviços.
Ele foi processado sob acusação de ser o mentor de uma sessão de tortura -em dependências do Dops- para obter confissão de desfalque de Raphael Viviani, ex-funcionário de sua firma.
Relatório confidencial do Dops, anexado aos autos e ainda hoje inédito, explicitou a ligação -reafirmada por um agente do órgão, Mário Borges, em interrogatório na Justiça.
Testemunha de defesa do artista, o tenente-coronel do Exército Expedito de Souza Pereira descreveu-o como "colaborador das Forças Armadas". Foi Simonal (1938-2000) quem se disse "colaborador dos órgãos de informação", sublinharam Viviani e seu advogado, Jorge Alberto Romeiro Jr.
O Ministério Público, representado pelo atual deputado Antônio Carlos Biscaia (PT-RJ), apontou o intérprete como "colaborador das Forças Armadas e informante do Dops". Sentença proferida pelo juiz João de Deus Lacerda Menna Barreto concordou.
Acórdão (decisão de corte superior) do TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro), assinado em 1976 pelos desembargadores Moacyr Braga Land e Wellington Pimentel, referendou: Simonal era "colaborador das autoridades na repressão à subversão". Foi a palavra final da Justiça.
Todos esses documentos integram o processo 3.540, instaurado em 1972 na 23ª Vara Criminal, concluído em 1976 e em cujas 655 folhas jamais houve divergência: dos amigos mais fiéis ao antagonista mais ressentido, todos estiveram de acordo que Simonal -e ele assentia- era informante do Dops.
Em abril, a Folha pediu ao TJ para ler os papéis. Localizados em junho, eles foram consultados pelo jornal na íntegra. A história que eles descortinam vai na contramão de versões que rejeitam a relação do cantor com o aparato de segurança da ditadura militar (1964-85).
Entrevistas com sobreviventes da época e pesquisa em periódicos jogam luz no episódio.
Em 2000, a Folha publicou reportagem com base na sentença de 11 páginas, encontrada no Arquivo Público do Estado do RJ, que guarda o acervo do Dops.
Contudo, não achou cópia do conjunto do processo nem do informe interno acerca de Simonal, da declaração em que ele se afirmou colaborador ou de lista de eventuais pessoas delatadas por ele.
Desde a década de 1930 havia informantes da polícia política nos meios culturais do Rio. Eles não costumavam ser identificados nominalmente em relatórios, como se constata no Arquivo do RJ.
Tortura
A controvérsia sobre as conexões do cantor ressurgiu com vigor devido ao documentário "Simonal - Ninguém Sabe o Duro Que Dei", de Claudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal.
O filme narra da ascensão ao estrelato à morte no ostracismo, determinada pela imagem de "dedo-duro" -função que no fim da vida Simonal contestava ter desempenhado. Ele se dizia alvo de mentira inventada por inimigos, de racismo e de perseguição da esquerda.
O cantor não foi julgado pela colaboração com a ditadura, mas por ter levado Viviani para a sede do Dops, na rua da Relação, região central do Rio.
Simonal foi ao departamento e emprestou seu carro aos policiais, que buscaram Viviani em casa quase à meia-noite de 24 de agosto de 1971, passaram pelo escritório do artista e terminaram na rua da Relação.
Lá torturaram Viviani com choques elétricos, socos e pontapés até ele assumir por escrito o desvio.
Simonal estava no Dops, para onde ajudou a transportar -desde seu escritório, em Copacabana- o ex-chefe de escritório da Simonal Comunicações Artísticas.
Ele não participou da tortura nem a testemunhou.
Um inquérito foi instaurado na 13ª DP porque a mulher do funcionário registrou o desaparecimento.
Foram condenados o cantor, um policial do Dops, Hugo Corrêa de Mattos, e um colaborador do órgão, Sérgio de Andrada Guedes. Em 1974, por crime de extorsão, a pena de cinco anos e quatro meses de reclusão. Em 1976, depois da desclassificação do crime para constrangimento ilegal, a três meses. Simonal passou nove dias detido. Os três negaram as acusações.
"Subversivos"
Relatos jornalísticos recentes sustentam que foi o inspetor Mário Borges, chefe da Seção de Buscas Ostensivas do Dops e notório torturador de presos políticos, a fonte original da classificação de Simonal como informante.
Na 23ª Vara, Borges disse que o cantor "era informante do Dops e diversas vezes forneceu indicações positivas sobre atividades de elementos subversivos".
Não citou a identidade dos "elementos". O interrogatório do policial ocorreu em 16 de novembro de 1972.
Acontece que, 450 dias antes, Simonal já prestara declarações no Dops que foram anexadas ao processo e não chegaram ao noticiário.
Às 15h de 24 de agosto de 1971, perto de nove horas antes da diligência contra Viviani, Simonal afirmou ter ido à rua da Relação "visto aqui cooperar com informações que levaram esta seção a desbaratar por diversas vezes movimentos subterrâneos... subversivos no meio artístico". Também não nomeou os "movimentos".
Ou seja, o primeiro a sustentar que Simonal era informante foi ele mesmo, e antes da ação da polícia. Na ocasião, o cantor lembrou que no golpe de Estado de 1964 esteve no Dops "oferecendo seus préstimos ao inspetor José Pereira de Vasconcellos" -outro denunciado por sevícias contra opositores.
Simonal assinalou que se aproximou ainda mais do Dops quando pediu e obteve proteção contra uma ameaça de explosão de bombas em um show.
Em 1971, ele se queixou de um "grupo subversivo" que prometia sequestrá-lo se não "arrumasse" dinheiro.
A voz anônima parecia, ele disse, a de Viviani.
Na 13ª DP, o cantor depôs em 28 de agosto. Apresentou-se como "homem de direita" e relembrou ter dito no Dops (no dia 24) que conhecia, "como da área subversiva", "uma irmã do senhor Carlito Maia" -era a produtora cultural Dulce Maia, ex-presa política e àquela altura exilada.
Esse depoimento vazou à imprensa, mas nele Wilson Simonal calou, nem lhe perguntaram, sobre a atuação como informante.
1971/1976
24 de agosto de 1971
"O declarante aqui comparece visto a confiança que deposita nos policiais aqui lotados e visto aqui cooperar com informações que levaram esta seção a desbaratar por diversas vezes movimentos subterrâneos... subversivos no meio artístico; que o declarante, quando da revolução de março de 1970, digo 64, aqui esteve oferecendo seus préstimos ao inspetor José Pereira de Vasconcellos; que o declarante de certa feita ou, melhor, quando apresentava o seu show "De Cabral a Simonal" no teatro Toneleiros, foi ameaçado de serem colocadas bombas naquela casa de espetáculos; que o declarante nesta época solicitou a proteção do Dops para sua casa de espetáculo, o que foi feito e nada se registrando de anormal."
Wilson Simonal de Castro, em depoimento ao Dops
30 de agosto de 1971
"Como sabe V. Sa., o cantor Wilson Simonal é elemento ligado não só ao Dops, como a outros órgãos de informação, sendo atualmente o elemento de ligação entre o governo, as autoridades e as Forças Armadas com o povo, participando de atos públicos e festividades, fazendo de seu verbo e prosa a comunicação que há tanto tempo faltava."
Mário Borges, chefe da Seção de Buscas Ostensivas do Dops, para José Pereira de Vasconcellos, chefe do Serviço de Buscas, em informe confidencial
16 de novembro de 1972
"O primeiro acusado, Wilson Simonal, era informante do Dops e diversas vezes forneceu indicações positivas sobre atividade de elementos subversivos."
Mário Borges, inspetor do Dops, em interrogatório na 23ª Vara Criminal
29 de julho de 1974
"Conhece o primeiro acusado [Wilson Simonal] porque após a revolução de 64 o primeiro réu sempre colaborou com as Forças Armadas."
Expedito de Souza Pereira, tenente-coronel do Exército, em interrogatório na 23ª Vara Criminal
14 de outubro de 1974
"Simonal se diz, com todas as letras neste processo, um colaborador dos órgãos de informação, por se tratar de homem de direita. A sua defesa corroborou isso com cifras definitivas [...]. Daquela época ["Revolução de 1964'] ao fato da denúncia se perfizeram 7 anos e meses de atividade policial auxiliar voluntária de Simonal (que, aqui, num processo comum, deve ficar imune a aplausos ou críticas), por conseguinte. Lapso de tempo esse que, evidentemente, levou o cantor-acusado a ter, pelo menos, grande afinidade com os agentes do Dops, para não falar em proteção."
Alegações finais do assistente de acusação Raphael Viviani, na 23ª Vara Criminal, assinadas pelo advogado Jorge Alberto Romeiro Jr.
1974
"Ficou cabalmente esclarecido que o suplicante, na tarde de 23 de agosto, inclusive a conselho de um oficial superior do Exército, compareceu ao Dops, onde prestou formalmente um depoimento em que se queixou de estar sendo vítima de telefonemas ameaçadores, por parte de elementos supostamente subversivos. [...] O suplicante, ao dirigir-se ao Dops, por recomendação de um oficial superior do Exército, o fez em decorrência das ameaças aterrorizantes que vinha sofrendo, revestidas de caráter político."
Alegações finais em favor de Wilson Simonal de Castro, na 23ª Vara Criminal, assinadas pelo advogado Antonio Evaristo de Moraes Filho
11 de novembro de 1974
"Que Wilson Simonal de Castro era colaborador das Forças Armadas e informante do Dops é fato confirmado [...]."
João de Deus Lacerda Menna Barreto, juiz da 23ª Vara Criminal, na sentença do processo 3.540/72
9 de dezembro de 1974
"O primeiro apelante, Wilson Simonal de Castro, era colaborador das Forças Armadas e informante do Dops [...]."
Antônio Carlos Biscaia, promotor de Justiça, em contra-razões de recurso
3 de junho de 1976
"Resulta duvidosa, entretanto, a finalidade de diligência, cabendo aqui destacar-lhe dois aspectos. O primeiro, quanto à colocação feita junto ao Dops, noticiando ameaças dirigidas ao cantor Wilson Simonal, pelo fato de ser o mesmo colaborador das autoridades na repressão à subversão, o [que] torna a diligência ordenada regular, como reconheceu a sentença."
Desembargadores Moacyr Braga Land e Wellington Pimentel, da 3ª Câmara Criminal, no acórdão da apelação nº 62.372
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