June 21, 2009

O elo perdido



RELATÓRIO CONFIDENCIAL DO DOPS, DE 30 DE AGOSTO DE 1971, REFORÇA LIGAÇÃO COM O ARTISTA


DA SUCURSAL DO RIO

Relatório interno do Departamento de Ordem Política e Social da Guanabara, com carimbo "confidencial", resumiu em 30 de agosto de 1971 a relação com Wilson Simonal:
"É elemento ligado não só ao Dops, como a outros órgãos de informação, sendo atualmente o elemento de ligação entre o governo, as autoridades e as Forças Armadas com o povo, participando de atos públicos e festividades, fazendo de seu verbo e prosa a comunicação que há tanto tempo faltava".
O signatário foi o chefe da Seção de Buscas Ostensivas, Mário Borges. O destinatário, o chefe do Serviço de Buscas, José Pereira de Vasconcellos.

No mesmo dia, o diretor da Divisão de Operações, Zonildo Castello Branco, endereçou aquele relatório sigiloso ao diretor do departamento, coronel do Exército Gastão Barbosa Fernandez. O coronel encaminhou-o à Justiça, que o anexou ao processo 3.540/72.
Seu conteúdo não foi contestado por ninguém.

Produzido no calor da repercussão em torno da detenção de Raphael Viviani, o documento evoca episódio em que o Dops deu proteção a Simonal por três meses contra supostos "subversivos" que teriam prometido estourar bombas no teatro em que o artista estava em cartaz.

Ele ajuda a entender o grau da intimidade que permitiu, para resolver pendenga privada, surrar um cidadão em prédio público onde funcionários se dedicavam a questões de Estado: combater oposicionistas, em particular os de grupos armados.

Menos de quatro semanas antes da chegada de Viviani, o engenheiro Raul Amaro Nin Ferreira foi preso e levado para o Dops, onde o torturaram.
Seu martírio prosseguiu na instalação do Exército em que funcionava o DOI (Departamento de Operações de Informações). Raul Amaro saiu de lá para o hospital, onde morreu.

No comando da radiopatrulha que o transportou entre o Dops e o DOI estava Mário Borges, conforme a edição 2009 do "Dossiê Ditadura -Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1974-1985)", organizado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos.
Borges foi um dos cinco réus no processo decorrente da tortura contra Viviani. Acabou absolvido porque não participou das sevícias e tinha álibi de que estava ausente -em missão contra a "subversão".

Em 1985, o Projeto Brasil: Nunca Mais, coordenado pela Arquidiocese de São Paulo, inventariou a tortura durante a ditadura. Foram numerosas as denúncias de presos políticos apontando Mário Borges e José Pereira de Vasconcellos como torturadores.

Forças Armadas

O relatório do Dops que descreve a colaboração de Simonal com outros órgãos ganhou mais verossimilhança com o interrogatório do tenente-coronel do Exército Expedito de Souza Pereira, na 23ª Vara Criminal, em 29 de julho de 1974.
Testemunha de defesa do cantor, ele afirmou: "Conhece o primeiro acusado [Simonal] porque após a revolução de 64 o primeiro réu sempre colaborou com as Forças Armadas".

Em 1974, o oficial estava lotado na Escola Superior de Guerra. Em 1971, era relações públicas do 1º Exército, comando da Força na Guanabara (que hoje equivale ao município do Rio de Janeiro) e em outros Estados. Pereira disse ter sido procurado por Simonal, que lhe falou sobre ameaças que estaria sofrendo. O militar sugeriu que recorresse ao Dops.

Nos anos 1990, Simonal obteve um atestado da SAE (Secretaria de Assuntos Estratégicos) assegurando que ele nunca foi seu informante.
A SAE sucedeu o SNI (Serviço Nacional de Informações) da ditadura.
O nome do SNI não aparece, entretanto, no processo 3.540, no qual Simonal é reconhecido como informante do Dops e colaborador do 1º Exército.

Em 1972, o cantor contextualizou em juízo a origem da intimidação: "[...] Desde que participou de uma Olimpíada do Exército fazendo um show, e de fazer [sic] um disco da Shell de propaganda do governo, isto é, fazia indiretamente propaganda do governo, passou a receber telefonemas anônimos que lhe faziam [sic] ameaças a si e a sua família".

"Comunistas"

Ele repetidamente proclamou a camaradagem com integrantes da polícia política. Em 1971, de acordo com o "Correio da Manhã", mencionou José Pereira de Vasconcellos como "meu grande amigo".

Logo depois do mandado de prisão expedido em 1974, entregou-se ao Dops de São Paulo. "O delegado Sérgio Fleury é meu chapinha e tudo vai correr dentro do figurino", disse, conforme o "Última Hora".
Responsável por dezenas de assassinatos, Fleury foi o mais destacado policial no combate à luta armada durante o governo do general Emilio Garrastazu Médici (1969-74).

Em seus últimos anos, Simonal reclamou do que considerava um viés persecutório do jornalismo contra ele. Mas, em seguida à surra em Raphael Viviani, a versão do artista foi encampada por parcela expressiva da imprensa.

Reportagens céticas em relação aos relatos de Simonal provocaram irritação, sugere nota do colunista Ibrahim Sued na edição de "O Globo" de 4 de setembro de 1971.
A nota: "As autoridades militares estão começando a ficar de olho em certa imprensa marrom, principalmente no que se refere aos artistas... Eu estou apenas advertindo. Quem avisa amigo é... O mar não está pra peixe...".

O semanário "O Pasquim" foi o primeiro que tratou Simonal como "dedo-duro". Com a sentença de 1974, a revista "Veja" publicou que a operação contra Viviani "foi facilitada pelo fato de Simonal também ser informante da polícia".
A fama de delator custou-lhe vaias e xingamentos em shows.

Em agosto de 1982, ainda na ditadura, a Folha circulou com entrevista de Simonal em que ele afirmou:
"Dizer que eu dedurei os cantores comunistas é meio calhorda. Eles próprios nunca negaram que eram comunistas. Chico Buarque, Caetano Veloso jamais disseram o inverso. E qualquer criança sabe o que eles são..."
Depois, Simonal disse que suas declarações foram distorcidas. O jornal respondeu que nada havia alterado.
(MÁRIO MAGALHÃES)

Folha, 21 de junho de 2009

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