Engarrafamento de coluna: o mijão motorizado
Neste 14 de maio passado, sigo — graças à perene generosidade do meu colega e querido amigo Valter Sinder — de carona para a PUC onde damos aula. No posto de gasolina situado na entrada da ponte que liga o Rio a Niterói (esse país estrangeiro mais próximo dos cariocas, onde moramos), topamos com o rotineiro e inevitável funil que vergonhosamente entope o trânsito em todas as grandes cidades brasileiras. Valter resolve abastecer o carro. Na saída, deu-se o inesperado: um Citroën, novo em folha, está acintosamente parado na saída do posto. Valter, como todo bom motorista brasileiro que se preza, não espera, contorna o carro que o bloqueia e então nos deparamos com o motorista que, em pé, com cara limpa e porta aberta, urina tranquilamente na calçada. Seu rosto estampa a bonança brasileira do senador ex-presidente que não sabe que recebe ilegalmente um auxílio-moradia porque, com tanto dinheiro, não precisa conferir seu contracheque.
Nessas caras que eram de pau, mas são hoje feitas do mais puro aço inoxidável, não há nenhum sentimento de vergonha ou estranheza. Nelas, estampa-se apenas a serenidade dos superiores que exercem o direito aristocrático de revelar como estão acima das normas a seu bel-prazer, podendo roubar o erário, distribuir dinheiro público para o seu partido ou mijar na frente de todo mundo.
Qual a diferença? Quem esperava condução e estava na frente do mijão faz o que todos temos feito ao longo destes anos todos de inútil demanda igualitária: desolham.
Fingem que não veem. Mas, eis o ponto, ninguém ousa fazer coisa alguma! Não se ouvem as buzinadas iracundas que acontecem quando um velhinho tenta atravessar ou quando uma criança sai de um automóvel defronte de uma escola. O mijão exerce seu pleno direito de romper com as regras mais básicas do convívio social certo de que, pelo tipo de carro, pela cor da pele e pela “aparência”, ele era um dos nossos cavalões de raça.
Desses que, comilões, podem fazer tudo. Todos aceitamos o ato do mijão que — era óbvio — não estava apenas satisfazendo uma necessidade inadiável, mas mostrando o membro viril. O símbolo deste poder indigno e abusivo que, a partir de um certo estatuto social, todos somos capazes de adquirir. O poder de descolar das normas públicas de decência que não se aplicam com a mesma força para todos. Uns podem ignorá-las, outros não as conhecem, alguns rompem com elas de modo de liberado e acintoso, como fez esse cavalão, mostrando a arrogância que, no Brasil de hoje, é moeda corrente daqueles que estão no poder.
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Entro num táxi e, na Avenida Visconde de Pirajá, a mais badalada do Rio de Janeiro, equivalente social da Rua Oscar Freire, em São Paulo, topamos com um trecho bloqueado por um veículo enguiçado. O motorista aproveita para me contar o seguinte: na semana passada viu-se diante de um Volvo de última geração, igualmente enguiçado. Quando ele se preparava para a ultrapassagem, um senhor sai do carro, entra no seu táxi e manda que ele siga para um condomínio de luxo. Alarmado, o taxista pergunta se o rico proprietário do Volvo vai abandonar o automóvel ali, em plena rua, correndo o risco de ser roubado. O dono retruca que está pouco se lixando.
O carro tem seguro e se for roubado ele recebe outro; a responsabilidade não era dele, mas da companhia de seguro. O motorista, parvo com essa demonstração de riqueza, poder e descaso para com o espaço público, segue em frente.
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Ando pelas calçadas sempre perplexo com o caminhar dos meus companheiros de “cidadania” que não mudam de rumo, mesmo sabendo que estão vindo em minha direção.
A regra, deduzo, é a de que sou eu quem deve dar a devida passagem, pois estão todos imbuídos daquela “sobranceria” que Sergio Buarque de Holanda destaca como um traço da sociabilidade hispânica, e se consideram superiores. Afinal, como falamos aqui no Brasil, os “incomodados que se mudem” pois eles, como o nobre deputado, pouco se lixam para os outros. Assim, é só no derradeiro instante que viram condescendentemente o corpo para o lado, dando lugar ao velhinho que caminha em sentido contrário. Ou simplesmente nada fazem e eu é que trato de me safar para não receber um encontrão. O fato é que todos caminham de peito estufado, sem prestar atenção nos outros, cuja obrigação é de ceder o espaço. É o velho estilo Carlota Joaquina (esposa de Dom João VI), que obrigava os que cruzavam o seu caminho a postarem-se de joelhos e tirar o chapéu em respeito a sua sacrossanta pessoa de princesa e rainha.
Eu fico fascinado com esse estilo de usar o espaço que teoricamente pertence a todos nós, brasileirinhos democratas e, em princípio e até segunda ordem, pessoas normais e comuns.
Andamos de peito estufado e sem a menor preocupação com quem conosco divide a calçada que a partir do momento que saímos de casa passa a ser nossa e muito nossa. E que o prefeito deveria mandar, como diz a velha canção, ladrilhar. Não para o nosso amor passar, mas para nós, na nossa santa ignorância de democratas que não sabem o que é viver numa democracia!
A arrogância no Brasil de hoje é moeda corrente.
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