Marcus Faustini
A cada ano, as turmas inovam nos materiais das fantasias, nos adereços e na performance da saída
Já é carnaval na cidade do Rio de Janeiro. Quem é de bloco exibe sua euforia pelas timelines da vida, quem é de escola de samba está pronto para exaltar a agremiação ou a beleza do espetáculo na avenida. Mas, no subúrbio, um outro carnaval mostra sua vitalidade, mesmo com a crise econômica. São os numerosos bate-bolas e clóvis, essas turmas de mascarados cariocas capazes de despertar sentimentos de profunda paixão em seus integrantes, que não medem esforços de viver a alegria da brincadeira, de lutar pelo reconhecimento de sua cultura, contra a discriminação por parte de autoridades e pela superação da lógica de guerra entre turmas, que marcou anos anteriores.Anderson Souza já é homem feito. Uma vida de batalhas e correrias, típica de todo carioca popular. Mas os olhos de Anderson ganham aquele brilho de adolescente quando o assunto é bate-bola. Buda, como é chamado pelos mais próximos, é líder da Turma da Fascinação de Oswaldo Cruz, que completa 18 carnavais na próxima semana, quando a turma estará novamente nas ruas. Anderson é reconhecido como um líder consciente que age com humildade e competência, valores muito importantes para a cultura dos bate-bolas e clóvis. Faz tempo que acompanho sua dedicação. Posso dizer com tranquilidade que ele é um personagem importante dessa cena.
Há 11 anos realizei um documentário sobre algumas dessas turmas que marcam a cena do carnaval do subúrbio carioca. Da Zona Norte até Santa Cruz, na Zona Oeste, fui escutar como os próprios integrantes pensavam aquela cultura. O filme correu cinemas, canais de TV e festivais. Foi minha forma de homenagem. Saí de bate-bola, moleque, numa fantasia feita por uma tia, pelas ruas do Jacarezinho. A maioria das turmas que filmamos estão ativas até hoje. Uma tradição que, por vezes, infelizmente, é noticiada como um ponto fora da curva do carnaval, sem demonstrar toda potência e complexidade desse universo. Alguns avanços aconteceram nos últimos anos. As turmas foram reconhecidas como patrimônio cultural da cidade e foram criadas linhas de fomento em alguns editais. Mas elas sobrevivem mesmo é da devoção de seus integrantes. Marcelo Rodrigues, outro personagem importante, líder da Turma do Índio, tido por muitos como um dos grandes nomes da cultura dos bate-bolas, vem dedicando esforços para criar o museu dos bate-bolas. É um tipo de líder que vive a alegria da brincadeira, mas sabe que precisa lutar pelo reconhecimento da tradição da cultura dos bate-bolas.
A cada ano, as turmas inovam nos materiais das fantasias, nos adereços e na performance da saída. O sistema de criação envolve uma cadeia produtiva cheia de artistas oriundos das turmas. Alguns são artesãos, costureiras etc. Possuem um sistema estético definido, arranjos cooperativos e uma cadeia econômica vibrante. Os integrantes pagam as fantasias mensalmente ao longo do ano. Encontros mensais formam a identidade das turmas e o senso de comunidade. É possível contemplar o resultado das turmas durante o carnaval. Nos blocos do Centro, no carnaval de coretos ou no tradicional palco da Cinelândia, onde acontece o concurso das fantasias, sempre aparece alguma turma. Mas o grande momento da cultura dos bate-bolas, especialmente da Zona Norte, é a saída da turma. A plateia se aglomera perto do portão da casa onde a turma se prepara, fogos são disparados, música-tema na batida da caixa de som, e a saída da turma acontece. Momento mágico, quem viu sabe como é!
Os bate-bolas e clóvis mantêm na vida urbana a força da cultura popular, mas com fortes traços territoriais. As turmas de Santa Cruz têm a tradição de mais panos, para poder rodar a fantasia enquanto caminham. Uma das cenas mais marcantes que vi foi uma turma fazer esse tipo de evolução na Rua Felipe Cardoso, em Santa Cruz, no carnaval de 2005. Um daqueles momentos que dão gosto lembrar! Por outro lado, as turmas que se dedicam a manter a tradição da performance de assustar pessoas usam roupas mais curtas. Pra quem quer se iniciar na cultura é bom saber que bate-bolas são a versão que usa uma bexiga e corre atrás de quem provoca. E clóvis é um termo mais usado para as turmas que usam outros adereços — sombrinhas, por exemplo — e priorizam andar exibindo suas fantasias.
No mapa deste ano tem saída de turmas em Cascadura, Realengo, Marechal, Paciência, Baixada Fluminense etc. Vai ter turma dos Malditos, Sinistro, Abusado, Amizade, Estrelas, Família Furo Olho, Velhas, Índio, União, Aventura e Fama, “Agunia”, entre tantas outras. Mais de uma centena de turmas misturando adultos e crianças, homens e mulheres. No próximo dia 26, domingo de carnaval, a partir das 14h, a Turma da Fascinação faz mais uma saída. Esta será especial, completando a maioridade. Anderson comemora os 18 anos da turma, mas já pensa na festa dos 20 anos.
— Pra gente que rala o ano todo é uma libertação, aqui nós somos os artistas — disse-me Anderson, com a cabeça em 2019.
Vem de bate-bola, meu bem!
O GLOBO, 21 DE FEVEREIRO DE 2017
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