Desde o assassinato do americano George Floyd, homem negro asfixiado até a morte por um policial branco na cidade de Minneapolis, em 25 de maio, protestos contra o racismo e a violência policial tomaram as ruas nos EUA e ao redor do mundo. Questionamentos sobre o papel e a instituição da polícia passaram a ocupar o debate público.
Uma das principais reivindicações apresentadas por ativistas e políticos que apoiam os movimentos é retirar verbas das forças policiais e aplicá-las em outras áreas. Desde o início dos protestos, algumas cidades americanas anunciaram planos de reduzir os orçamentos policiais.
A ideia é que o investimento atual de governos nas polícias e no encarceramento – apontado por defensores da medida como desproporcionalmente alto em relação a outros setores – seja redirecionado para educação, moradia, programas para a juventude e outras políticas com potencial para provocar mudanças sociais e reduzir a criminalidade e a violência.
Além do corte de verbas para a instituição, outras soluções apontadas pelo movimento contra o problema da violência policial que faz principalmente vítimas negras são investir mais na formação de policiais e até abolir a polícia da forma como ela existe hoje.
De forma geral, o movimento mira na reformulação de estratégias de segurança pública, criando um modelo distinto das instituições policiais tradicionais, que têm sua abordagem centrada no uso da força, e reduzindo o papel da polícia na sociedade.
Uma questão de prioridade orçamentária
Nos Estados Unidos, a frase “defund the police” (retire o financiamento da polícia, em tradução livre) apareceu em cartazes, faixas e pichações de protestos recentes. A reivindicação já angariou apoio de acadêmicos, artistas, advogados, ativistas, líderes comunitários e religiosos.
Em uma carta aberta que defende o desinvestimento na polícia, divulgada no início de junho, a cofundadora do movimento Black Lives Matter (“Vidas Negras Importam”) Patrisse Cullors lembra a longa lista de pessoas negras assassinadas por forças de segurança nos EUA. Também as coloca no contexto da pandemia de covid-19, que mata mais negros do que brancos no país, e foi o pano de fundo para os protestos antirracistas e contra a violência policial.
“Os EUA não têm um sistema nacional de saúde. Em vez disso, temos o maior orçamento militar do mundo e alguns dos departamentos de polícia mais militarizados e fortemente financiados no planeta. O policiamento e militarização consomem a maior parte dos orçamentos locais e nacional. (...) Chegou a hora de retirar financiamento da polícia”, argumenta a carta.
Uma reportagem da revista Slate publicada em 19 de junho compara os gastos de três cidades americanas (Minneapolis, Los Angeles e Dallas) com a polícia aos valores dedicados a outros serviços públicos em 2020.
São cidades de diferentes regiões, tamanhos e características demográficas, mas todas têm a polícia entre suas principais despesas: ela está em primeiro lugar entre os maiores gastos de Los Angeles, é o quarto maior volume de gasto público em Minneapolis e fica em segundo lugar em Dallas.
Os defensores da redução dos orçamentos policiais também propõem diminuir a gama de atuação das polícias. Para eles, funções que vão além do âmbito criminal, como o atendimento de crises de saúde mental da população, a fiscalização de infrações de trânsito e o patrulhamento de escolas públicas e universidades, poderiam ser exercidas por outros agentes públicos.
Onde a proposta vai ser adotada
Segundo uma reportagem publicada pelo site de notícias Bloomberg Citylab em 9 de junho, legisladores de pelo menos 17 cidades americanas apresentaram propostas ou assumiram o compromisso de cortar recursos da polícia.
Outras tantas propuseram tirar a polícia das escolas. Algumas iniciativas aguardam a realização de pesquisas ou a participação da população.
Entre as administrações que já anunciaram cortes no financiamento da polícia e direcionamento de verbas para outras áreas estão cidades americanas importantes como Nova York, Los Angeles e São Francisco.
Em Los Angeles, uma das primeiras a aderir à mudança, a redução anunciada pelo prefeito e pelo legislativo municipal deve chegar a US$ 150 milhões. Esse dinheiro, somado a outros US$ 100 milhões vindos de outras áreas, será investido em projetos voltados para a população negra da cidade. O orçamento da polícia na cidade foi de US$1,8 bilhão em 2020. Líderes de movimentos reivindicavam uma redução de pelo menos US$ 250 milhões.
O caso de Minneapolis
Na cidade de George Floyd, onde se iniciou a onda de protestos que se espalharam pelos EUA e por cidades de fora do país, membros do legislativo municipal anunciaram em 7 de junho o desmantelamento do departamento de polícia da cidade e a criação de um novo sistema de segurança pública.
Embora ainda não esteja claro como isso será feito e o que virá no lugar da instituição, o anúncio marca uma inflexão na forma como políticos lidam com a questão no país e no reconhecimento de que há um problema sistêmico na instituição policial.
O prefeito da cidade, Jacob Frey, se opõe ao desmantelamento da polícia. Como há apoio da maioria dos conselheiros (similares aos vereadores no Brasil), porém, ele não tem poder para vetar a medida.
Lembrada por seus índices de qualidade de vida e por sua inclinação política progressista, a cidade tem também um longo histórico de casos de violência policial e desigualdade racial.
Em entrevista à organização Marshall Project, Molly Glasgow, voluntária em uma iniciativa popular voltada à abolição do departamento de polícia da cidade chamada MPD150, afirmou que décadas de tentativas de reforma da instituição não foram capazes de quebrar o ciclo que se repete sempre que há uma morte como a de George Floyd: violência seguida de protestos e promessas de melhora que não funcionam.
Para ela, desmantelar o departamento e cortar seu financiamento é a maneira de sair desse ciclo.
A oposição à proposta
Uma das principais forças de oposição contra o movimento de redução de orçamentos de forças de segurança são os sindicatos que representam policiais no país.
Ao longo dos anos, eles têm atuado para barrar mudanças nos departamentos de polícia, derrubando medidas disciplinares mais duras e garantindo a impunidade de agentes responsáveis por condutas abusivas e criminosas. Além disso, são praticamente intocáveis pelo poder de que gozam nas ruas e junto a políticos.
O presidente americano Donald Trump também se opõe à ideia e faz críticas ao movimento para retirar o financiamento das polícias, que já classificou como “uma moda”.
Sob pressão, chegou a assinar em meados de junho um decreto que determina uma reforma limitada nas instituições policiais americanas, condicionando por exemplo seu financiamento à proibição de manobras de sufocamento como a que foi aplicada em George Floyd.
Dias antes, no Twitter, Trump havia incitado policiais a “tomarem uma posição mais firme em relação aos políticos da esquerda radical que os estão tratando tão mal, com tanto desrespeito”.
O estado da discussão no Brasil
Casos recentes de violência e mortes provocadas por policiais militares no Brasil também geraram protestos e cobranças para reformular a instituição. Em São Paulo, como resposta a essas demandas, o governador de São Paulo João Doria (PSDB) anunciou em 22 de junho um programa para “retreinamento” da tropa para evitar abusos.
Segundo dados do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2019, a despesa do Brasil com segurança pública totalizou R$ 91,2 bilhões em 2018, o equivalente a 1,34% do PIB.
O estudo avalia que os investimentos do Estado brasileiro em segurança têm sido pouco eficientes: focados em policiamento ostensivo e nas prisões de pequenos criminosos em flagrante, os valores são pouco usados em áreas que trariam resultados mais efetivos, como inteligência e investigação
Ouvidos pelo Nexo no fim de junho, o professor da FGV (Faculdade Getulio Vargas) e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública Rafael Alcadipani e o antropólogo e ex-secretário nacional de Segurança Pública Luiz Eduardo Soares apontaram aspectos que precisam ser mudados nas polícias brasileiras.
Alcadipani defendeu “uma mudança para mentalidades que privilegiem uma polícia que proteja a vida, e não uma polícia que favoreça o confronto”. Já Soares destaca a arquitetura institucional herdada da ditadura e considera que “a natureza militar da polícia ostensiva inviabilizou seu aperfeiçoamento para cumprimento de missões democráticas”.
Ambos afirmaram que as circunstâncias atuais do país são desfavoráveis para propor mudanças estruturais nessa área. Além da violência e da falta de efetividade policial, o professor da FGV chamou atenção para o envolvimento das polícias militares com o bolsonarismo e para a suspeita de que apoiariam uma eventual ruptura democrática encabeçada pelo presidente Jair Bolsonaro.
“Não significa que não tenhamos de apresentar propostas alternativas e ir trabalhando junto à sociedade no sentido de criar ou expandir uma consciência crítica capaz de compreender por que vivemos essa insegurança crônica há muitos anos e de que modo a arquitetura institucional que herdamos da ditadura contribui para sua piora”, disse o antropólogo Luiz Eduardo Soares.
No comments:
Post a Comment