July 10, 2020

Caso do menino Miguel Otávio é a síntese das relações desse país

Ilustração com silhuetas das pessoas. Uma mulher negra dá atenção a duas crianças brancas que estão brincando com vários blocos coloridos. No canto direito, uma criança negra brinca sozinha com dois blocos

DJAMILA RIBEIRO

Assisti à entrevista de Sarí Côrte Real na última edição do Fantástico. Olhando a televisão, revisitei as dores desse caso tão representativo das relações coloniais desse país.

De início, os cenários não descritos: o serviço doméstico em meio à pandemia, a hierarquização de vidas. A patroa que faz as unhas, enquanto Mirtes Souza, empregada doméstica, passeia com o cachorro. Miguel Otávio, criança de cinco anos filho de Mirtes, sem lugar naquele ambiente em que a mãe não está momentaneamente, provou uma experiência comum para pessoas negras no país: ser uma presença indesejada, uma chateação preta no momento de vaidade da família branca.

Por quatro vezes a criança queria sair, até que na quinta é despachada pela corte colonial. Será que ninguém se pergunta por que tantas vezes a criança quis deixar aquele lugar? Será que não é de se questionar uma família com mãe e avó servirem por gerações a família da corte colonial?

As pessoas brancas não têm a menor noção, mas é da memória da primeira infância de muitos adultos negros e negras ir com a mãe para o serviço na “casa de família”.

Essas memórias seguem sendo construídas na mente de crianças em todo o país, pois o ciclo da exclusão e hierarquia de vidas continua a todo vapor. Ajudar a lavar louça, brincar no cantinho, perder aulas. Ver aquele quarto imenso para a criança branca brincar de desperdício, chorar de barriga cheia.

Lembro minha mãe que começou a trabalhar aos dez anos de idade e ficou por anos até o patrão investir sexualmente, não obtendo êxito em sua tara, pois foi intimidado por ela, que agarrou uma panela com óleo fervente. Nunca mais soube dele, duvido que esteja vivo, mas não me espantaria se for contra políticas públicas de reparação histórica, pelo contrário.

Atualmente, mais de 6 milhões de mulheres são empregadas domésticas, num ciclo que descende das relações escravistas e historicamente contribuiu para a feminização negra da pobreza.


    Surpreenderia alguém caso fosse revelado que a bisavó, a tataravó e assim por diante da linhagem de Miguel foram empregadas domésticas, recebendo pagamentos escassos, e, sucessivamente, mulheres escravizadas pelas cortes coloniais? No caso da atual capitania hereditária do Recife, tanto mãe quanto avó eram contratadas como servidoras da Prefeitura de Tamandaré, uma cidade pequena e de baixo IDH.

    A corrupção e as capitanias andam de mãos dadas e são premiadas com representação de estátuas em centros históricos, nomes de rodovia, praças e ruas —e ai de quem fala em destruir esses símbolos horrorosos.

    Tamanha é a indignidade que grassa nesse país até hoje que qualquer programa, lei, direitos que visem questionar, ainda que timidamente, os arranjos estratificados da sociedade são capazes de gerar furor, reportagens gigantescas, falsas polêmicas nas redes sociais. Ou as pessoas brancas não mais se lembram do que foi a PEC das Domésticas? Do que foram as cotas para ingresso nas universidades que eram exclusivas delas?

    Até hoje jornalistas brancos me perguntam disso, sendo que há decisão do Supremo Tribunal Federal transitada em julgado sobre o assunto. Ainda hoje os movimentos negros não têm nenhum programa em horário comercial na televisão aberta ou fechada, ao passo que matérias que fixam lugares periféricos como lugares de crimes estão há décadas com horas de exibição diária.

    Com a mobilização recente pela morte de George Floyd, a mensagem clara me parece ser a de que devemos ficar por demais satisfeitas e satisfeitos com algumas inserções em jornais; que a mera abordagem do racismo já é mais que suficiente e que pessoas ao abordarem o tema devem ficar confinadas a falar apenas sobre isso, sem abordar o tema como o fio que costura muitos outros, como as políticas econômicas em curso de precarização da população e consequente aumento da desigualdade material entre brancos e negros.

    Ao final, a representante da corte colonial do Recife disse que fez todo o possível para evitar a morte da criança de cinco anos que ela deixou sozinha no elevador, viu as portas se fecharem e voltou para casa ao encontro de sua manicure, outra mulher negra.

    Acompanhei a nova capitulação jurídica anunciada

    pelo delegado como “abandono de incapaz com resultado morte”. Penso que o fato de estarem em meio a uma pandemia, de estarem sendo pagas com dinheiro público da prefeitura, do mínimo espaço de tempo em que a criança esteve sem a mãe são agravantes nesse caso que é a síntese do Brasil.

    ILUSTRAÇÃO LINOCA SOUZA

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