Estão cancelados Justin Trudeau, Chris Evans, Oprah Winfrey, Kanye West e Taylor Swift. Autos de fé realizados nas redes sociais decretaram que essas personalidades públicas, entre outras tantas, cometeram ações politicamente comprometedoras ou deram declarações etnicamente insensíveis e por esses crimes devem ser canceladas, como se cancela um cartão de crédito ou uma conta de serviço de streaming. Não se deve mais reconhecer a existência do primeiro-ministro do Canadá, do ator que fez o Capitão América, da apresentadora que se tornou chefe de um império de mídia, da cantora de “Shake it off” e do rapper de “Gold digger”. Para todos os efeitos, são todos não pessoas — embora continuem bem populares fora dos círculos militantes da internet. Os vigilantes da chamada “cancel culture” (cultura do cancelamento) não perdoam: para eles, indícios de preconceito em um tuíte de uma década atrás bastam para condenar uma celebridade ao opróbrio. Relativamente recente, o fenômeno também é chamado de “call-out culture” — “call out” conjuga a ideia de denunciar, criticar alguém, e, ao mesmo tempo, chamá-lo a se explicar pela falta cometida.
O ato de “cancelar” ganhou especial destaque no final de outubro do ano passado, quando foi criticado por Barack Obama em um evento na fundação que leva seu nome. De forma elegante, mas incisiva, o ex-presidente dos Estados Unidos acusou a pretensão de pureza que embasa a nova cultura jovem — uma pureza que não aceita negociações ou concessões. “O mundo é bagunçado”, ponderou Obama. “Existem ambiguidades. Pessoas que fazem coisas boas têm suas falhas.” Obama atacou com especial precisão o ímpeto justiceiro que, sobretudo nas universidades, dominou a juventude: “Tenho a sensação de que hoje, entre os jovens — e isso é acelerado pelas redes sociais —, há a noção de que o único modo de alcançar mudanças é julgar outras pessoas da forma mais severa possível, e isso basta”. De fato, não basta: a prática do “cancelamento”, além de pouco fazer de efetivo pelos direitos de minorias e pelas demais causas que pretende defender, também corrói o diálogo democrático. E tem tornado as novas gerações mais intolerantes — e infelizes.
Fenômeno originalmente americano que tem se replicado pelo mundo — no Brasil, inclusive —, a cancel culture é a versão 2.0 do que antigamente se chamava de patrulha ideológica. Temperada pelas fixações identitárias da esquerda universitária e turbinada pelas redes, as novas patrulhas são a face mais estridente da política woke (desperto, atento, em inglês), também criticada por Obama. O programa woke incorpora causas em princípio justas e razoáveis — combate ao racismo, à discriminação de gays e transgêneros e à desigualdade de gêneros. Mas ser woke consiste não tanto em defender esta ou aquela ideia: trata-se, antes, de compartilhar certa hipersensibilidade a ofensas, reais ou imaginárias, contra minorias. “Ofensivo” é a sentença terminal da cancel culture, e é significativo que os cancelamentos, com um punhado de exceções — o produtor Harvey Weinstein, que enfrenta denúncias numerosas de assédio e abuso sexual, e o músico R. Kelly, acusado de abusar sexualmente de adolescentes —, raramente incidam sobre pessoas que cometeram crimes ou transgressões objetivamente comprováveis. Em geral, uma pessoa é cancelada por algo que ela tenha dito. E a expedição de vereditos sumários não se limita a celebridades distantes: um colega de classe também pode ser cancelado, com toda a carga de censura e suposta “desonra” que isso carrega. O jornal The New York Times publicou, dias depois de Obama ter criticado a cancel culture, uma compilação de testemunhos de estudantes do ensino médio e dos primeiros anos de faculdade sobre o tema. Uma menina relatava ali a experiência de ser cancelada aos 15 anos. Como ninguém mais falava com ela, a adolescente resolveu perguntar a uma antiga amiga, por mensagem de celular, por que estava recebendo aquele tratamento de silêncio. A amiga consultada chamou outras colegas para a conversa, e a jovem cancelada recebeu uma torrente de impropérios — “mesquinha”, “sanguessuga emocional” — pelo Instagram. “Todo mundo faz coisas questionáveis ou diz coisas estúpidas. Mas as redes sociais permitem que as pessoas peguem algo que você disse no passado e transformem isso no que você é”, queixou-se a jovem.
“Fenômeno originalmente americano, a cancel culture tem se replicado pelo mundo — no Brasil, inclusive — a partir de uma hipersensibilidade que considera quase tudo ‘ofensivo’”
Taylor Swift guarda mágoas similares do tempo em que a campanha para cancelá-la corria no Twitter. “Quando dizem que você está cancelada, não estão falando de um programa de TV, mas de uma pessoa”, disse a cantora à revista Vogue. Seu cancelamento se deu por causa de uma disputa boba com Kanye West, que fez alusões maliciosas a Taylor na música “Famous”. O próprio Kanye West foi cancelado por razões mais tipicamente políticas: é apoiador de Donald Trump e já deu declarações assombrosas sobre os benefícios da escravidão. Oprah Winfrey foi cancelada, vejam só, por se engajar no movimento #MeToo: o rapper 50 Cent acusou a apresentadora de atacar apenas abusadores negros. Chris Evans foi cancelado porque trabalhou em Missão no Mar Vermelho, filme tido como pró-Israel, e ficou ainda pior na foto quando divulgou uma imagem na qual o elenco branco aparece em primeiro plano, com figurantes negros ao fundo. No Brasil, aliás, Mallu Magalhães também sofreu pressão e se viu constrangida a se desculpar no Facebook pelo videoclipe da canção “Você não presta”, no qual ela aparece à frente de dançarinos negros. Sob o regime de vigilância das redes sociais, não se sabe qual postagem antiga pode voltar a assombrar uma celebridade: o comediante Kevin Hart deixou de ser o apresentador do Oscar de 2018 por causa de piadas homofóbicas que fez no Twitter entre 2009 e 2011. Os melindres voltam-se até contra artistas já mortos: uma retrospectiva da obra de Paul Gauguin na National Gallery de Londres foi atacada porque o pintor francês manteve relações com uma menina de 13 anos no Taiti. A matéria do jornal The New York Times sobre a controvérsia trazia o título “Chegou a hora de cancelar Paul Gauguin?”.
O comediante negro Dave Chappelle vem sendo cancelado por suas piadas sobre transgêneros. E também porque respondeu debochando da cancel culture em Sticks & Stones, stand-up na Netflix. Justin Trudeau, ao contrário, cultiva a imagem de político woke, preocupado com diversidade e consciência ambiental, mas caiu em desgraça quando veio à tona uma foto antiga em que aparece com o rosto pintado de negro. De acordo com o protocolo da cancel culture, ele se desculpou publicamente pela insensibilidade racial.
Na guerra cultural, a direita também pratica a censura — como se viu no cancelamento da exposição Queermuseu, em Porto Alegre — e a “trollagem” on-line contra seus adversários, mas a cancel culture é uma prática mais específica da juventude de esquerda. Por isso, não se faz necessário cancelar um Donald Trump ou um Jair Bolsonaro: já está implícito que, nos esquemas binários da nova geração, eles estão no campo do mal. Mas celebridades que se associam a políticos conservadores são chamadas ao tribunal do Twitter: a apresentadora Ellen DeGeneres, pioneira da defesa dos direitos gays, foi cancelada quando vieram a público imagens suas na companhia de George W. Bush em um jogo de futebol americano.
Embora, na maioria dos casos, o cancelamento leve meramente à exposição do indivíduo a uma situação constrangedora, em algumas ocasiões ele chega, realmente, a prejudicar o nome a que é associado. A Amazon rompeu um contrato com Woody Allen por causa da acusação — já investigada e descartada pelas autoridades, e bem conhecida ao tempo em que a produtora firmara o acordo com o diretor — de que ele teria abusado da filha adotiva em 1992, e também por declarações dele sobre o movimento #MeToo. Em 2015, quando a expressão cancel culture ainda não era corrente, o cientista Tim Hunt, Nobel de Medicina de 2001, perdeu posições acadêmicas de destaque por causa de uma piada boba sobre mulheres na ciência. Recentemente, a comediante Sarah Silverman disse que perdeu o papel em um filme importante — não disse qual — porque fotos antigas suas pintada com tinta negra foram descobertas. Já Taylor Swift exorcizou seu cancelamento no disco seguinte, Reputation. Jesus is king, disco que Kanye West lançou no ano passado, foi para o topo das paradas; e Oprah continua bilionária. Há quem diga, com base nessa circunstância, que a cancel culture não é a inquisição pós-moderna que seus críticos imaginam.
“O ato de ‘cancelar’ ganhou especial destaque no final de outubro do ano passado, quando foi criticado por Barack Obama, que, de forma elegante, mas incisiva, acusou a pretensão de pureza que embasa a nova cultura jovem”
Na imprensa americana e inglesa, aliás, artigos de opinião sobre as declarações de Obama tentaram minimizar os efeitos da cancel culture. Ora, são apenas jovens exercendo o direito de criticar celebridades racistas, misóginas, homofóbicas. Quem, afora os reacionários da Fox News, seria contra isso? Mas há problemas mais profundos nessa nova cultura política, muito bem examinados pelo psicólogo Jonathan Haidt e pelo advogado Greg Lukianoff em The coddling of the American mind (algo como A inteligência americana mimada), livro de 2018 ainda inédito no Brasil. A dupla de autores qualifica de “destrutiva” a atual cultura política. Sem qualquer traço da retórica inflamatória ou proselitismo ideológico, Haidt e Lukianoff demonstram o caráter perverso da call-out culture com rigor e serenidade.
Em seu trabalho à frente da Fire, organização que defende a liberdade de expressão nos campi americanos, Lukianoff notou uma tendência alarmante: se antes a maioria dos casos com que lidava eram de censura exercida pela administração da universidade, em torno de 2013 começaram a avultar os episódios em que eram os estudantes que pediam a remoção de material potencialmente “ofensivo” de certos cursos. Haidt tinha uma percepção semelhante, e por isso os dois se reuniram para compor o livro a quatro mãos. The coddling of the American mind é um retrato desalentador de universidades que renegaram o senso crítico e o livre pensamento em favor de códigos autoritários de conduta e linguagem — códigos que são referendados e reforçados pelos alunos. Firmou-se, nas comunidades acadêmicas, a ideia de que uma faculdade deve oferecer ao corpo discente um “espaço seguro”. O sentido da palavra “segurança”, como bem observam os autores, expandiu-se para além de qualquer medida razoável: ideias ou palavras incorretas são vistas como ameaças efetivas à segurança dos estudantes, em particular àqueles pertencentes a minorias. Como resultado, instaura-se uma ortodoxia policialesca, na qual ideias divergentes são silenciadas. Eis dois dos vários casos de cerceamento à liberdade acadêmica narrados no livro:
1. Um professor da Universidade de Northern Colorado pediu a leitura de um artigo que se opunha ao direito de transgêneros usarem o banheiro que desejam. Ele explicou que não esperava que os alunos concordassem com o texto, mas que era necessário conhecer e discutir pontos de vista diversos. Um estudante o denunciou à administração da universidade por preconceito; o professor foi repreendido, aconselhado a não falar mais sobre transexualidade, e seu contrato não foi renovado no semestre seguinte.
2. Na Universidade Yale, uma professora escreveu à administração sugerindo que não se instaurassem regras ditando que fantasias seriam apropriadas ou inapropriadas no Halloween, pois não era preciso tratar os alunos como criaturas vulneráveis, incapazes de negociar entre si o que é ou não aceitável. Esse e-mail tão razoável sobre tema tão trivial foi fatalmente interpretado como uma defesa de fantasias racistas. Protestos de estudantes intimidaram a professora e seu marido, que também tinha um posto em Yale; a administração da universidade não lhes prestou apoio, e eles acabaram renunciando aos cargos que ocupavam.
A cancel culture universitária exercita-se também na prática de vetar, em eventos no campus, convidados cujas ideias são tidas como agressivas. Com frequência, a universidade cede à pressão e “desconvida” o palestrante incômodo — geralmente algum acadêmico identificado com a direita, embora os “desconvidados” em anos recentes também incluam o comediante Bill Maher e Madeleine Albright, secretária de Estado do governo Clinton. Quando o evento é mantido, em geral, protestos estudantis tentam impedi-lo, barrando a entrada de pessoas no local da conferência ou fazendo barulho para que não se possa ouvir o indesejado. Especialmente brutal foi o protesto que impediu o inglês Milo Yiannopoulos, jovem agitador da direita, de falar na Universidade da Califórnia em Berkeley, em 2017. Manifestantes mascarados do Antifa, grupo que diz combater o fascismo, espancaram dezenas de pessoas, e a destruição na universidade e nos arredores foi estimada em US$ 0,5 milhão. Na lógica tribal dos manifestantes, violência ainda maior seria o que Yiannopoulos teria a dizer. Outros protestos violentos se seguiram naquele ano, exacerbando a polarização da política americana. A radicalização é, aliás, uma consequência do ambiente de intimidação física e verbal que se estabeleceu em muitos campi: os moderados, avessos à beligerância gratuita, tendem a se calar, e só as vozes mais extremas têm vez.
“Essa onda censória emergiu com a chegada à universidade da Geração Z, ou iGen — i de internet. Nascidos em torno de 1995, os jovens de classe média dessa geração viveram em lares superprotetores, com menos tempo de brincadeira livre nas ruas e de vida social ativa”
Haidt e Lukianoff não são direitistas rábidos à caça de espectros como a ideologia de gênero ou a correção política. Eles se apresentam como progressistas e eleitores do Partido Democrata, mas acreditam que a diversidade de pontos de vista e a livre discussão de visões de mundo são essenciais para a educação. Preocupam-se também com o bem-estar psicológico dos jovens hoje engajados na call-out culture. Essa onda censória emergiu, segundo os autores, com a chegada à universidade da chamada Geração Z, ou iGen — i de internet. Nascidos em torno de 1995, os jovens de classe média dessa geração viveram em lares superprotetores, com menos tempo de brincadeira livre nas ruas e de vida social ativa. Cresceram com smartphones na mão, ligados às redes sociais que então começavam a conquistar o mundo. São, segundo estatísticas americanas de saúde mental, mais propensos à ansiedade e à depressão. Formados em uma cultura política que enfatiza versões não muito matizadas de identidade étnica e justiça social, em geral encontraram faculdades que não os desafiaram intelectualmente — ao contrário, incentivaram sua santimônia.
Haidt e Lukianoff transmitem, no livro, a esperança de que as distorções emocionais com que essa geração observa e julga o mundo possam ser corrigidas, e deixam, nos capítulos finais, recomendações para que escolas, pais e alunos alterem os rumos. É de esperar, pelo menos, que as próximas gerações arrumem o estrago.
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