January 2, 2024

O alvo da educação: rentabilidade e punição


 Quem preside os processos educativos se coloca como garantidor do direito à educação, mas o faz convertendo-o em tecnologia de gestão da juventude, associando as bandeiras da educação integral e do acesso ao trabalho à rentabilidade e à punição

 
POR CAROLINA CATIN

 

No mundo do avesso da educação nacional, corporações militares e empresariais são educadoras e formuladoras das políticas educacionais e de juventude, em nome da democracia e do combate às desigualdades sociais. Embora os ofícios que exerçam e a posição social que ocupem sejam a pura e simples negação de tais atributos, seu poder se amplia e se espraia por toda a gama de ação social que comandam, enquanto quem possui experiência e formação na educação tem o alcance de suas práticas reduzido a pequenos espaços, quando conseguem realizar uma experiência formativa que se contrapõe à lógica dominante, criando fissuras no aparente consenso hegemônico. Quando está tudo invertido, é preciso revirar tudo do avesso, fazendo falar os efeitos da prática educativa e da ideologia que a sustenta. Quem preside os processos educativos se coloca como garantidor do direito à educação, mas o faz convertendo-o em tecnologia de gestão da juventude, associando…

 as bandeiras da educação integral e do acesso
ao trabalho à rentabilidade e à punição.

EDUCAÇÃO PELO CONFINAMENTO

Um dos pontos em que se cruzam as
práticas militarizadas e a moderniza-
ção empresarial da educação é o da
criminalização da pobreza. A educação
integral, outrora pauta de reivindica-
ção da esquerda, tornou-se presa do
empresariado e converteu-se em mais
uma forma de dominação. A imagem de
escolas periféricas sucateadas, gradea-
das e com rondas da PM combina mais
com presídio do que com ensino, ainda
mais com a reforma do ensino médio e
toda a privação de formação cultural e
intelectual que ela impõe. A educação
integral é também confinamento da ju-
ventude pobre e periférica.

 
Além disso, numa terra em que, para
sobreviver, é preciso trabalhar desde
cedo, a educação integral tende a am-
pliar a evasão escolar. Para falar com
base em “evidências”, segundo dados
reunidos a mando das próprias corpora-
ções empresariais, as taxas de evasão do
ensino médio bateram recorde em 2013,
quando quase 7% dos estudantes de pri-
meiro ano abandonaram a escola. Em
2020, com a adoção das aulas a distância,
no contexto da pandemia de Covid-19,
as taxas de evasão recuaram, mas volta-
ram a crescer de maneira alarmante em
2021 e em 2022, já nos marcos do Novo
Ensino Médio e da ampliação da rede de
ensino integral (Barros et al., 2023).

 
Essa tendência deveria assombrar os
ideólogos do domínio empresarial da
educação, que correlacionam inversa-
mente escolaridade e criminalidade, e
calculam ganhos e perdas monetárias
com base no aumento ou na diminui-
ção da escolarização. Um desses re-
centes estudos concluiu que o aumen-
to de 1% de jovens com escolaridade
completa diminuiria em 0,6% a taxa de
homicídios (Barros et al., 2021). Que se
privilegie relacionar a educação com a
diminuição da criminalidade juvenil e
nenhuma palavra seja dita sobre vio-
lência estatal e a letalidade policial nos
territórios em que a juventude pobre,
negra e em idade escolar habita apenas
demonstra o lado em que estão os eco-
nomistas da educação. Ao que tudo in-
dica, para eles a educação se equilibra
entre os negócios e os casos de polícia.

 
EDUCAÇÃO PELA VIOLÊNCIA

 
As recentes chacinas nos estados de
São Paulo, Bahia e Rio de Janeiro, sob
responsabilidades de gestões petistas
ou bolsonaristas, se inscrevem numa
cadeia de massacres perpetrados pelo
Estado. Longe de se apresentarem como
desvios da ação policial para o combate
ao crime, são métodos sistemáticos de
gestão da pobreza pela violência, que
atingem comunidades de maneira fatí-
dica e afetam a sociedade de modo ge-
ral. As chacinas também educam.

 
Em 2022, só o estado da Bahia teve
mais mortos por policiais do que os
Estados Unidos (Carta Capital, 2023).
Eram quase todos negros. Seria relevan-
te estudar as relações desse dado com
o fato de que o mesmo estado já havia
militarizado escolas antes mesmo do
Programa de Escola Cívicos-Militares
de Bolsonaro (Pereira, 2020). Com base
na formação de policiais, nessas esco-
las a lógica disciplinar é acompanhada
de rituais de humilhação cotidiana, que
se reverte em ódio e ausência de parâ-
metros para a violência.

 
O problema, porém, não se limita às
escolas cívicos-militares. Desde o início
dos anos 1990, os programas educacio-
nais desenvolvidos pela PM no interior
das escolas, e executados por policiais
fardados e armados, espalharam-se pelo
país. É o caso de questionar o que se es-
pera ao delegar a uma das corporações
militares mais genocidas do mundo a
educação de crianças e jovens.

 
EDUCAÇÃO PELO TRABALHO

 
Para conter o abandono escolar, o em-
presariado promete elevar a “audiência”
das escolas, tornando-as mais atrativas,
com exercícios práticos, articulados com
a seleção para o trabalho em empresas
ou programas de transferência de renda
destinados a públicos-alvo da juventu-
de. Não por acaso, a oferta de recursos
para estudantes mais vulneráveis ocor-
re no contexto de grande controle em-
presarial da educação, inclusive trans-
formando o empreendedorismo em
matéria escolar, o que altera a relação
educativa de maneira ampla e profunda.
Fazer brigadeiro gourmet se tornou prá-
tica no Novo Ensino Médio, assim como
fazer bolos, sabão, tijolos, artesanatos
ou plantar hortaliças, porque tais ativi-
dades práticas transformam as escolas
em lugares de trabalho. Em muitos ca-
sos se comercializa o que é produzido,
e, mesmo quando se trata de simulação
do trabalho, como no caso da criação de
empresas fictícias nas escolas, a questão
não é apenas educar para o trabalho.

 
Educação pelo trabalho na educação
estatal já era lema da Tecnologia Em-
presarial Odebrecht, escrita nos anos
1980, que depois se transformou em
Tecnologia Socioeducativa. Estava em
jogo aí a substituição do welfare pelo
workfare, que consiste em atrelar o
acesso a serviços sociais com transfe-
rência de renda e contrapartidas à “ati-
vação” para o trabalho, o que na edu-
cação se traduziu pelo “protagonismo
juvenil”. Nos anos 2000, essa concepção
ganhou corpo nas escolas de tempo in-
tegral de Pernambuco e do Ceará, sob a
batuta do Instituto de Corresponsabili-
dade Empresarial (ICE), e nas práticas
de educação não formal do Itaú Social,
em periferias de grandes cidades.

 
Hoje, um de seus principais difuso-
res é o Itaú Educação e Trabalho, que
fala em nome de uma “educação para
a emancipação” e da “união entre edu-
cação e trabalho produtivo”. Entre inú-
meras iniciativas, fomenta a articulação
entre escola e empresa, como a oferta de
vagas de “jovens aprendizes” no próprio
banco Itaú, para estudantes que estão

em escolas de tempo regular,  ou progra-

 
mas que colocam estudantes de tempo
integral para trabalhar em empresas du-
rante o período letivo, com bolsa paga
pelo estado, como é o caso do Primeira
Chance, realizado na Paraíba.

 
Por meio dessas medidas, as empre-
sas vão transformando a escola de en-
sino médio em lugar de seleção. Assim,
a juventude que não é atingida pela
letalidade policial é acolhida pelos di-
reitos antissociais empresariais, que lhe
abrem a oportunidade de ser confina-
da, de trabalhar em troca da educação
que recebe, ou, em alguns casos, con-
cedem-lhe a dádiva de ser selecionada
para ser explorada.

 
EDUCAÇÃO COMO
ATIVO FINANCEIRO

 
As vantagens empresariais em privatizar
o direito à educação também se refe-
rem ao fim do monopólio da escola na
oferta da educação. Neste ano de 2023,
o IFood celebra os 14 mil diplomas de
ensino médio dados a jovens e adultos
entregadores. Um curso de curta dura-
ção preparatório para o Exame Nacio-
nal para Certificação de Competências
de Jovens e Adultos (Encceja) realizado
por empresas privadas substitui o ensi-
no médio dos Programas de Educação
de Jovens e Adultos estatais. Ofertado de
modo gratuito e a distância pela plata-
forma de parceria entre a IFood Decola e
a Edtech Descomplica, o Programa Meu
Diploma do Ensino Médio não esconde
a que veio: visa ofertar um objeto, e não
um processo educativo.

 
Não é só o controle sobre a popula-
ção trabalhadora e a apropriação de
trabalho sub-remunerado, gratuito
ou de recursos estatais que movem
essas empresas. Como diz uma posta-
gem do Senac (2023), “acolher jovens
aprendizes vai muito além de um cum-
primento da legislação, é questão de
responsabilidade social das empresas
se atentar ao S da sigla em inglês ESG
(Environmental, Social and Gover-
nance), sobre a qual tanto se fala hoje.

 
Pois é pelo Social que se estabelecem
ações de combate à pobreza”. A ado-
ção desses parâmetros, que se difun-
diram nos mercados financeiros e nas
corporações empresariais que estão
colonizando a educação, revela que a
financeirização não é mais somente o
contexto econômico no qual se insere
a educação, mas também passa a or-
ganizá-la. Com ou sem a mediação da
escola, a prática permite que empresas
cumpram regras do mercado financei-
ro e atraiam investimentos, garantindo
“os objetivos de desenvolvimento sus-
tentável”. Estes estão intimamente li-
gados à rentabilidade da empresa que
cumpre seu “papel social”.

 
IDEIAS EDUCACIONAIS
FORA DO LUGAR

 
Quando a educação se fecha aos con-
dicionantes de seu tempo, ela é presa
da situação existente, não podendo
projetar nada para fora das determi-
nações sociais. Se circunscreve o hori-
zonte de vida ao trabalho, limitando as
expectativas de existência pela interdi-
ção do acesso a referências da cultura e
da história, ela amplia a reverência ao
capital e afunda em suas contradições.

 
Além de transformarem toda ação da
juventude em trabalho, que é o que a
empresa sabe gerenciar, essas grandes
corporações educam jovens como se
não passassem de um “capital huma-
no”, ensinando desde cedo que é pre-
ciso angariar investimentos para seu
empreendedorismo ou mesmo atuar
como investidores, pela ênfase nos
programas de educação financeira.

 
Um bom exemplo é o estado do Para-
ná, que produziu material escolar para
combater a mentalidade pobre, que
“culpa os outros e o governo” por sua
condição e “trabalha pelo dinheiro”, e
fomentar a mentalidade rica, uma vez
que quem pensa assim, mesmo sem ter
recursos, “assume os próprios erros”,
“fala de patrimônio e negócios” e “faz
o dinheiro trabalhar” (APP Sindicato,
2023). A formação pelo trabalho é conju-
gada com o individualismo, com o culto
aos patrimônios e aos negócios e com o
endeusamento do dinheiro.

 
Nesse contexto, não é possível se sur-
preender com o fato de estudantes do
ensino médio paulista terem anuncia-
do em suas aulas de projeto de vida o
desejo de se tornarem agiotas. E isso
antes mesmo da Secretaria Estadual de
Educação de São Paulo decretar a subs-
tituição da variedade de disciplinas ele-
tivas do ensino médio pela disciplina de
Educação Financeira, em agosto deste
ano. Em condições de vida precárias,
como as que dominam nas periferias de
todo o país, as raízes violentas da ideo-
logia do empreendedorismo e da con-
corrência desenfreada ficam expostas e
são facilmente traduzidas numa guerra
pela sobrevivência, em sentido literal.
Aqui, o tiro do empresariado tem tudo
para sair pela culatra...

 
*Carolina Catini é professora associada da
Faculdade de Educação da Unicamp e coor-
denadora do Grupo de Estudos e Pesquisas
“Educação e Crítica Social” (Gepecs).

 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
• APP SINDICATO. Críticas da APP viralizam e
Seed retira material de apoio para aulas de Educa-
ção Financeira. Sindicato dos Trabalhadores em
Educação Pública do Paraná, 2023.
• BARROS, R. P. et al.
Consequências da violação do
direito à educação. Rio de Janeiro: Autografia, 2021.
• BARROS, R. P. et.al.
Diagnóstico da evasão esco-
lar Brasil. Insper, jul. 2023.
• CARTA CAPITAL. Polícia da Bahia matou 1.464
pessoas em operações em 2022.
Carta Capital,
14 ago. 2023.
• PEREIRA, Roger. Fora do programa federal, esta-
do governado pelo PT chega a 100 escolas milita-
rizadas.
Gazeta do Povo, 8 jan. 2020.
• SENAC. Aprendizagem profissional: um caminho
para jovens trilharem carreiras sustentá

 LE MONDE DIPLOMATIQUE   

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