January 22, 2024

Batalha Naval

 

  O PALCO DO CONFLITO
NO ORIENTE MÉDIO DESLOCA-SE
PARA O MAR VERMELHO

p o r P A T R I C K W I N T O U R

 
No último verão do He-
misfério Norte, enquan-
to Washington tentava
discretamente conven-
cer a Arábia Saudita a
realizar o grande acordo
de normalização das suas
relações com Israel, os di-
plomatas em Riad estavam muito mais
concentrados em garantir um acordo de
paz diferente nas suas fronteiras meri-
dionais com uma das insurgências mais
bem-sucedidas dos tempos modernos,
aquela liderada pelos rebeldes houthis do
Iêmen, também conhecidos como Ansar
Allah, ou “Apoiadores de Deus”.

 
Com um cessar-fogo informal no
Iêmen, e após meses de conversas priva-
das mediadas principalmente em Omã,
em 14 de setembro uma delegaçãohouthi
voou para Riad, onde se encontrou com
o príncipe Khalid bin Salman, minis-
tro da Defesa e irmão do príncipe her-
deiro. Ainda havia grandes diferenças
a resolver, mas, após décadas de várias
formas de luta, parecia que a paz chega-
ria ao país, e em grande parte nos ter-
mos ditados por um grupo que não exis-
tia realmente como força política no Iê-
men até o início dos anos 2000. A Ará-
bia Saudita iria finalmente reduzir suas
perdas na desastrosa ofensiva que lan-
çou em 2015 para repelir os houthis. Vin-
te e três dias depois da reunião em Riad,
o Hamas rompeu a fronteira com Isra-
el, massacrou israelenses e desencadeou
uma série de acontecimentos que agora
deixaram o Iêmen exposto a um ataque
de dois dias por submarinos e navios de
guerra dos Estados Unidos e da Grã-Bre-
tanha, no Mar Vermelho.

Além de aumentar a tensão numa região
assolada pela violência, afastaram ain-
da mais o país da ilusória paz interna.
Num país cheio de nuances, dois fatores
ampliaram a complexidade de uma re-
gião devastada por conflitos: o apoio dos
houthis à causa palestina e a forma como
a geografia do Iêmen tende a moldar a di-
nâmica política. Como observa a escrito-
ra Iona Craig, o Iêmen é um exemplo por
excelência de geopolítica, o lugar onde a
geografia e a política se unem.

 
O próprio Iêmen pode ser rela-
tivamente pobre, mas os fru-
tos, muitas vezes desprotegi-
dos, da globalização ociden-
tal passam tentadoramente
pelas suas costas, dia e noi-
te. Quase 15% dos produtos exportados
para a Europa, Oriente Médio e Norte
da África são transportados da Ásia e do
Golfo Pérsico por via marítima. Quase
21,5% do petróleo refinado e mais de 13%
do petróleo bruto passam por essa rota.

 
As importações e exportações asiáticas
representam cerca de um quarto do co-
mércio externo total de Israel, e transi-
tam principalmente pelo Mar Vermelho.
Há muito tempo Israel teme que
a pequena largura do estreito de Bab
al-Mandab represente uma vulnerabili-
dade de segurança. Durante décadas, pro-
curou alianças com países como a atual
Eritreia para se defender, primeiro dos
esforços liderados pelo Egito e depois pe-
los iranianos, para fechar as vias navegá-
veis ao tráfego israelense. Na verdade, um
motivo para Israel assinar os “Acordos de
Abraão” com os Emirados Árabes Unidos
em 2020 foi a própria rede de segurança
marítima dos EAU, que abrange Djibuti,
Eritreia, Somalilândia e a Ilha Perim e o
arquipélago de Socotra, no Iêmen.

 
Os houthis, por sua vez, têm experi-
mentado tornar-se uma potência na-

 val. Em outubro de 2016, começaram a
usar como base o porto estratégico de
Hodeidah, recentemente capturado, na
costa oeste do Iêmen. Eles dispararam
duas vezes contra o destróier USS Ma-
son como forma de contra-ataque por-
que os Estados Unidos forneceram apoio
aéreo aos sauditas. Em janeiro de 2017, os
houthis pararam de lançar mísseis balís-
ticos e drones sobre a fronteira terrestre
em direção a Riad e, em vez disso, envia-
ram três barcos suicidas. Também ten-
taram minar as rotas marítimas. “Se os
agressores continuarem a pressionar Ho-
deidah, e se a solução política atingir um
muro, algumas opções estratégicas serão
adotadas como um ponto sem retorno, in-
cluindo o bloqueio da navegação interna-
cional no Mar Vermelho”, disse o líder do
conselho político houthi, Saleh al Samad.
“Os navios passam por nossas águas en-
quanto nossa população passa fome.”

 
Israel, por seu lado, percebeu que o Irã,
com sua marinha sofisticada, come-
çava a treinar os houthis na utiliza-
ção de barcos, drones e mísseis para
perturbar o tráfego ligado a Israel, in-
clusive fornecendo equipamento ca-
paz de detectar a origem de um navio. À
medida que os houthis obtinham mais
vitórias, o patrocínio de Teerã crescia.

 
Era evidente aos olhos israelenses que,
em 2019, Abdul-Malik al-Houthi, o líder
houthi, dirigia cada vez mais sua retórica
contra Israel e negava as alegações do pri-
meiro-ministro Benjamin Netanyahu de
que o Irã tinha começado a fornecer mís-
seis de precisão ao Iêmen. “Nosso povo
não hesitará em declarar a jihad contra
o inimigo israelense e desferir os golpes
mais severos contra os alvos sensíveis do
inimigo, se ele se envolver em atos estú-
pidos contra o nosso povo. Nossa posição
hostil contra Israel é por princípios huma-
nos, morais e religiosos”, afirmou à época.
Maysaa Shuja al-Deen, do Centro de
Estudos Estratégicos de Sanaa, avalia:

 
“As ameaças houthis à navegação israe-
lense não são uma desculpa ou uma ten-
tativa de desviar atenção de suas próprias
falhas. Estão profundamente enraizadas
em sua ideologia. Eles falam em amaldi-
çoar os judeus e em morte à América. Seu
fundador, Hussein al-Houthi, começou
suas palestras por volta da época do 11
de Setembro e da invasão do Iraque pe-
los Estados Unidos, e elas tratavam mui-
to de um choque de civilizações. É entre
muçulmanos e cristãos, um conflito reli-
gioso, não é sobre o nacionalismo árabe”.

 
Assim que a crise de Gaza explodiu, os
houthis dispararam inicialmente mísseis
ineficazes contra a cidade portuária israe-
lense de Eilat, insistindo que só desisti-
riam quando Israel permitisse a entra-
da de ajuda humanitária em Gaza. Mas,
ao tirar partido do território que tinham
capturado desde 2014, suas táticas evoluí-
ram rapidamente para uma campanha de
ataques de surpresa aos navios, que espa-
lharam o caos pelas cadeias de abasteci-
mento mundiais. Desde ao menos 12 de
novembro, de acordo com o Centro de
Sanaa, “as forças houthis têm treinado
recrutas para equipes de assalto anfíbio,
com exercícios que incluem simulações
de lançamento de mísseis visando
navios e de ataques aéreos. Eles também
ampliaram gradualmente seus alvos,
de navios com bandeira israelense para
navios que comercializam com Israel”.

 
Al-Deen argumenta que a resposta
interna positiva apenas encorajará os
houthis: “Os iemenitas são pró-pales-
tinos, e esse sentimento tem crescido a
níveis sem precedentes nos últimos três
meses”. Onde outros grupos hesitaram,
os houthis mostraram-se ousados, ao
mesmo tempo que produziam vídeos de
propaganda, como um helicóptero enfei-
tado com a bandeira palestina pousa
no convés do navio de carga Galaxy Lea-
der, que navega no Mar Vermelho.

 
Os houthis ficaram particularmen-
te orgulhosos quando um entrevista-
dor da BBC perguntou a Mohammed
Ali al-Houthi, integrante do Conselho
Supremo Houthi, por que razão consi-
deravam adequado interferir na Pales-
tina, “a tantos quilômetros de distância”.
Ele respondeu: “Quanto a Biden, ele é vi-
zinho de Netanyahu? Vivem no mesmo
apartamento, e o presidente francês vive
no mesmo andar e o primeiro-ministro
britânico no mesmo edifício?”

 
Abdulghani al-Iryani, também do
Centro de Sanaa, afirma: “O campo
anti-houthi no Iêmen está pasmo. As
poucas declarações feitas contra os
houthis desde o início de sua operação
de apoio à Palestina foram severamente
criticadas pelo público iemenita. O sen-
timento é expresso numa frase comum:
‘Meu irmão e eu estamos contra o nosso
primo, e meu primo e eu estamos contra
o estranho’. Cidadãos de todos os matizes
exigiram que os porta-vozes dos grupos
anti-houthi ‘calassem a boca’”. Na verda-
de, alguns líderes houthis contataram
seus adversários políticos de longa data
no partido Islah, para ver se farão causa
comum contra Israel.

 
Al-Deen insiste que os houthis
não serão dissuadidos pelos ataques
ocidentais, mas os verão como um
presente, até mesmo como um sargento
de recrutamento. “Eles passaram anos
na luta contra os sauditas, absorvendo
perdas. Não são um exército clássico com]

ases militares estáticas. As milícias mu-
dam as regras da guerra e, com o apoio
do Irã, têm agora capacidade e experiên-
cia para fabricar drones no país. Os Esta-
dos Unidos e o Reino Unido deram avisos
muito extensos de que isto estava pres-
tes a acontecer, por isso não houve ele-
mento-surpresa.” Os últimos dias, afir-
ma, “farão os houthis acreditarem que
já não são atores locais, mas atores re-
gionais legitimados por direito próprio
a confrontar diretamente a América”.

 
Os houthis podem até disparar mísseis
contra o Bahrein, único país árabe que
apoiou os ataques aéreos em defesa da li-
berdade de navegação.
Farea al-Muslimi, do programa pa-
ra o Oriente Médio da Chatham
House, alerta: “Os houthis
são muito mais experientes,
preparados e bem equipados
do que muitos comentaristas
ocidentais imaginam. Sua audácia e a dis-
posição para escalar a atividade diante de
um desafio são sempre subestimadas”. O
grupo também sabe que a aliança naval
militar que apoia os Estados Unidos é tê-
nue. O Egito, apesar de obter receitas pro-
venientes do Canal de Suez, recusou-se a
apoiar os ataques aéreos norte-america-
nos. Nenhum país árabe, exceto possivel-
mente os Emirados Árabes Unidos, tem a
coragem de contestar a visão houthi dos
corajosos iemenitas que enfrentam o po-
derio dos EUA. A Arábia Saudita teme que
sua passagem de saída do Iêmen esteja em
vias de ser rasgada.

 
O ataque com mísseis pode ser vis-
to pelo Ocidente como a única opção,
mas não é gratuito. Os drones houthis
são baratos. Em contraste, os franceses
gastam perto de 1 milhão de euros em
cada míssil Aster 15 usado pelos france-
ses e pelos britânicos para afastar os dro-
nes houthis. Esta guerra tem o potencial
de ser longa e dispendiosa, talvez trava-
da em diferentes níveis de intensidade.

CARTA CAPITAL    


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