OS PODERES REMEMORAM O 8 DE JANEIRO,
MAS AINDA NÃO FORAM CAPAZES DE
APONTAR OS GURUS DA TENTATIVA DE GOLPE
p o r A N D R É B A R R O C A L
Um ano após o quebra-quebra em Brasília e a tentativa de golpe bolsonarista, os chefes dos poderes reuniram-se em um ato público na capital.
Foi uma ideia
do presidente Lula, cuja insistência pa-
ra um evento desse tipo ser realizado le-
vou o comandante do Congresso, sena-
dor Rodrigo Pacheco, a adiar uma viagem
de férias aos Estados Unidos, onde mo-
ra o irmão. “Fui devidamente intimado
pelo presidente”, havia comentado Pa-
checo, com humor, em um café da ma-
nhã com jornalistas em 22 de dezembro.
O Congresso, a “casa do povo”, foi o pal-
co do ato, um prédio depredado em 5 mi-
lhões de reais há um ano. O estrago maior
foi no Supremo Tribunal Federal, 12 mi-
lhões. Ao inaugurar agora uma exposi-
ção na Corte sobre aquele 8 de janeiro de
2023, seu presidente, Luís Roberto Bar-
roso, declarou: “Estamos aqui para evi-
tar que aconteça de novo”.
O tribunal é a único dos Três Poderes
que, ao abrir-se a visitas guiadas para ci-
dadãos comuns, conta a história da que-
bradeira, uma constatação da Agência Pú-
blica. O Supremo, diz um de seus ex-co-
mandantes, Carlos Ayres Britto, é o guar-
dião da Constituição, e aquela de 1988 é
a guardiã da democracia no Brasil. Eis o
motivo de o ódio daqueles que o invadi-
ram ter sido maior. Democracia, recorde-
-se, é uma palavra de origem grega que sig-
nifica “governo do povo”. O 8 de Janeiro,
teoriza Britto, pretendia revogar o preâm-
bulo e o artigo 5° da Constituição, disposi-
tivos que, juntos, determinam que os po-
deres devem proporcionar melhores con-
dições de vida e direitos ao povo. “A liga
dos discursos (do evento no Congresso) foi
a democracia. A lição que fica, hoje, é que
fora dela é a barbárie”, afirma o ex-juiz.
Em seus pronunciamentos, Lula, Pa-
checo e Barroso falaram da importância
de melhorar a vida dos brasileiros, do con-
trário o risco autoritário estará no ar. Em
2022, o País tinha 67 milhões na pobreza
(31% da população), informou o IBGE em
dezembro. Viviam com até 637 reais por
mês – quem ganhava, digamos, 900 reais
não tinha uma vida muito melhor, a pe-
núria atinge mais de 31%. O salário mé-
dio dos 100 milhões de trabalhadores é
mais ou menos o mesmo desde 2013 (os-
cilou de 2,8 mil a 2,9 mil reais de lá para
cá, estava em 3 mil em novembro), corro-
ído em 86% pela inflação acumulada. A
desigualdade é obscena. Dos 38 milhões
de declarantes de Imposto de Renda em
2023, o 1% mais rico concentra 32% dos
bens e 24% da renda, conforme o Minis-
tério da Fazenda. Filho de pobre preci-
sa largar os estudos para ajudar em ca sa.
Dos 156 milhões de eleitores, 62 mi-
lhões (40%) têm, no máximo, o ensino
fundamental, informa o Tribunal Supe-
rior Eleitoral. A partir de março, o gover-
no começará a pagar uma bolsa a alunos
carentes, a fim de mantê-los na escola na
passagem do fundamental para o médio.
Além da defesa da democracia, das ins-
tituições e de melhores condições de vida,
o ato do dia 8 no Congresso tinha um ob-
jetivo nas entrelinhas. Demonstrar união
e disposição para punir quem participou
de alguma forma do quebra-quebra. Tra-
dução: responsabilizar Jair Bolsonaro e
cia. “O fortalecimento da democracia não
permite confundirmos paz e união com
impunidade, apaziguamento ou esque-
cimento”, discursou Alexandre de Mo-
raes, relator no Supremo dos processos
do 8 de Janeiro. Uma tarefa na qual o no-
vo procurador-geral da República, Pau-
lo Gonet Branco, indicado por Lula com
apoio de Moraes, será peça valiosa. Nem
com os militares o País vai apaziguar? Ti-
vesse havido castigo dos fardados por trás
do golpe de 1964 e da ditadura que durou
até 1985, o 8 de Janeiro talvez não tivesse
ocorrido, na visão de Felipe Santa Cruz,
ex-presidente da Ordem dos Advogados
do Brasil. “Erramos na transição”, afirma.
Sobre os quartéis se falará mais adiante.
OJudiciário brasileiro, diz
Santa Cruz, é historica-
mente lento, mas tem si-
do célere em relação ao
8 de Janeiro. Uma parte
dos democratas tratava o risco autoritá-
rio de Bolsonaro como folclore, até pelo
perfil do ex-presidente, mas teriam en-
tendido agora que os perigos são reais,
prossegue o advogado. Assim que os mi-
nistros voltarem das férias, em feverei-
ro, o Supremo retomará o julgamento
dos acusados. A Procuradoria denunciou
1.413 envolvidos, a grande maioria (1.156)
na condição de “instigadores” da tentati-
va de golpe. Os instigadores estavam na
porta do Exército em Brasília, mas não
saíram de lá para invadir prédios públi-
cos. Com eles, tidos como autores de cri-
me menos grave, a Procuradoria topa fa-
zer acordos que suspendam as ações pe-
nais em troca de serviços comunitários
e distância das redes sociais por um tem-
po. O Supremo concorda, homologou 38
acordos em dezembro. Os acusados de
executarem de fato o quebra-quebra fo-
ram 248, dos quais 30 foram condenados,
com penas de até 17 anos. O tribunal ini-
ciou, em dezembro, o julgamento de ou-
tros 29 executores e promete decidir até
abril o destino de mais 146.
No capítulo “financiadores” da ten-
tativa de golpe, até agora há só um acu-
sado pela Procuradoria. Trata-se de um
empresário de Londrina, Pedro Luís Ku-
runczi, que teria pago 59 mil reais pelo
frete de quatro ônibus para levar ma-
nifestantes a Brasília. No dia em que se
completava um ano do levante, a Polícia
Federal prendeu preventivamente ou-
tro suspeito de financiamento. Wagner
Ferreira Filho, empresário da Bahia, te-
ria desembolsado 24 mil para também
fretar um ônibus. Ele próprio havia ido
a Brasília engrossar a tentativa de golpe.
Havia digitais suas no Congresso.
A partir de 9 de fevereiro, o Supremo
decide se aceita a denúncia e converte em
réus sete PMs do Distrito Federal. Eles
compunham a cúpula da corporação no
dia da insurreição. São cinco coronéis
(Fábio Augusto Vieira, Klepter Rosa Gon-
çalves, José Augusto Naime, Paulo José
de Sousa, Marcelo Casimiro Rodrigues),
um major (Flávio Silvestre de Alencar) e
um tenente (Rafael Pereira Martins). Fo-
ram acusados de omissão, atitude trama-
da por eles, como se vê em mensagens de
celular obtidas pela Procuradoria. Em 20
de dezembro de 2022, o major Alencar di-
zia: “Na primeira manifestação, é só dei-
xar invadir o Congresso”. Outro: às 22h15
de 7 de janeiro, Souza, então chefe de ope-
rações da PM, escrevia a Vieira, o coman-
dante-geral da tropa na época: “Agora eu
vou falar, Paulo, eles vieram preparados
para a guerra mesmo, pelo que vi não vão
ceder de forma alguma, vão partir para
o tudo ou nada (...) As coisas tá mais sé-
ria (sic) do que muitos brasileiros estão
imaginando”. Apesar disso, a PM desta-
cou poucos homens, e inexperientes, pa-
ra trabalhar na manifestação, diz a Pro-
curadoria na denúncia.
Os sete PMs são os únicos fardados a
caminho do banco dos réus, por ora. A
Justiça Militar condenou um coronel da
reserva do Exército, Adriano Camargo
Testoni, por um crime menor, ter xingado
colegas de farda no dia do levante, do qual
participara. Os fatos de um ano atrás leva-
ram o Exército a instaurar quatro inqué-
ritos e quatro sindicâncias. Os inquéritos
foram concluídos e enviados ao Ministé-
rio Público Militar – Testoni era alvo de
um. As quatro sindicâncias deram origem
a duas punições disciplinares. O ministro
da Defesa, José Múcio, costuma dizer nos
bastidores que as Forças Armadas deve-
riam cortar na carne e punir elas próprias,
como resposta à sociedade, o que até ago-
ra não aconteceu. Segundo ele, não houve
golpe, pois os militares não quiseram. Re-
conhece, contudo, que os quartéis estão
impregnados de bolsonarismo. Ao rece-
ber, em novembro, os deputados Glauber
Braga e Fernanda Melchiona, do PSOL,
e Orlando Silva, do PCdoB, comentou, a
propósito dos militares: “Aqui todos são
bolsonaristas. A diferença é que uns são
golpistas e outros são legalistas”.
“Não concordo com o
ministro da Defesa.
Não houve golpe
porque não havia
apoio externo e no
Congresso, ao contrário de 1964”, afir-
ma o ex-ministro da Justiça Eugênio
Aragão. “As Forças Armadas mandaram
sinais dúbios (no governo Bolsonaro). Em
nenhum momento, tivemos sinais claros
de que elas estavam do lado da democra-
cia.” A lição do 8 de Janeiro, avalia Aragão,
é que a “nossa democracia é frágil, sujei-
ta a solavancos”, daí a importância histó-
rica de punir os culpados, a começar pe-
la figura mais emblemática, a fim de evi-
tar repetecos. “Ao punir Bolsonaro, che-
ga-se à cadeira de comando, o caminho
fica aberto para punir militares. Foi as-
sim com os nazistas depois da Segunda
Guerra Mundial, de cima para baixo.”
O ex-presidente foi inicialmente inclu-
ído em um dos inquéritos surgidos do 8 de
Janeiro, a pedido da Procuradoria, por
causa de um vídeo que havia postado no
Facebook dois dias depois. No vídeo, um
procurador de Mato Grosso do Sul, Feli-
pe Gimenez, dizia, com outras palavras,
que a eleição havia sido roubada pelo Ju-
diciário em favor de Lula. Bolsonaro logo
apagaria a postagem. Em julho, a Procu-
radoria desistiu de usar as imagens para
associar o capitão ao 8 de Janeiro e pediu
ao Supremo uma investigação à parte so-
bre a gravação. Em dezembro, após muita
enrolação do Facebook, os investigadores
conseguiram recuperar o vídeo. A delação
do tenente-coronel do Exército Mauro Cé-
sar Barbosa Cid, chefe dos ajudantes de or-
dem de Bolsonaro na Presidência, é outra
fonte de dor de cabeça para o capitão.
Há ainda o relatório final da CPI do 8
de Janeiro, que nomeia o ex-presidente
como autor intelectual da tentativa de
golpe. O documento foi entregue à Pro-
curadoria e à Polícia Federal em outubro.
Nas duas ocasiões, seus destinatários dis-
seram que o inquérito sobre autoria inte-
lectual terminaria entre o fim de janei-
ro e o começo de fevereiro de 2024, se-
gundo o deputado Rogério Correia, do PT
de Minas Gerais, um dos integrantes da
CPI. “Atos de violência contra a democra-
cia hão de ter consequências penais, para
quem quer que a eles se dedique. Não deve
causar surpresa, mas visto como sinal de
saúde da democracia que pessoas, não im-
porta de que status social, venham a ser
responsabilizadas”, disse Gonet, o procu-
rador-geral, no ato de um ano do 8 de Ja-
neiro. Cabe ao Ministério Público, emen-
dou, ajudar a “prevenir que o passado que
se lamenta não ressurja, recrudescido, e
venha desordenar o porvir”.
Gonet, substituto de
Augusto Aras, um apa-
drinhado do ex-presi-
dente, também dará ca-
lor em certos deputa-
dos bolsonaristas? André Fernandes,
do PL do Ceará, Clarissa Tércio, do PP
de Pernambuco, e Sílvia Waiãpi, do
PL do Amapá, entraram na mira da
Procuradoria após o 8 de Janeiro de 2023.
Haviam publicado nas redes sociais men-
sagens ou vídeos alinhados à insurreição.
No ex-Twitter, Fernandes tinha dissemi-
nado a convocação para o ato (“Estaremos
lá”) e postado uma foto do armário van-
dalizado de Moraes no Supremo. Clarissa,
no Instagram, havia escrito: “Acabamos
de tomar o poder. Estamos dentro do
Congresso”. Sílvia, na mesma rede social:
“Povo toma a Esplanada dos Ministérios
nesse domingo! Tomada de poder pelo po-
vo brasileiro insatisfeito com o governo
vermelho”. Aras desistiu de investigar o
trio e pediu a Moraes para arquivar os in-
quéritos sobre eles. O juiz até hoje não de-
cidiu. Gonet mudará a posição da PGR?
O presidente da Câmara dos Deputa-
dos, Arthur Lira, do PP de Alagoas, não
compareceu ao ato pelo 8 de Janeiro. Ale-
gou motivos pessoais (problema de saú-
de na família). Será? Em 3 de janeiro, ti-
nha aberto a casa a Bolsonaro, que pas-
sara o Réveillon em Alagoas. Lira tem
apadrinhados no governo Lula, caso do
chefe da Caixa Econômica Federal, mas
defende uma lei para “cuidar melhor”
de ex-presidentes. O que seria “cuidar
melhor” ele nunca explicou. No dia que o
TSE tirou o capitão das urnas por 8 anos,
em junho passado, um deputado do PL
gaúcho, Sanderson, propôs uma lei para
anistiar políticos condenados desde 2016.
Lira carimbou como “prioridade” e man-
dou à Comissão de Constituição e Justiça.
O petista Rui Falcão, presidente da comis-
são, deixou a proposta na gaveta.
No Senado, também há tentativa de
ressuscitar Bolsonaro. Neste caso, com
mudança na Constituição, ideia de de-
zembro de Márcio Bittar, do MDB do
Acre. Ex-vice de Bolsonaro e hoje sena-
dor, o gaúcho Hamilton Mourão, do Re-
publicanos, apresentou, em outubro, um
projeto para perdoar condenações nas-
cidas do 8 de Janeiro baseadas nos cri-
mes de “tentativa de golpe de Estado” e de
“abolição violenta do Estado Democráti-
co de Direito”. Ambos os ilícitos constam
do artigo 359 da lei que revogou a legisla-
ção da ditadura sobre “segurança nacio-
nal”. Lei, aliás, aprovada de vez pelos se-
nadores em agosto de 2021, no dia em que
tanques da Marinha desfilaram em Bra-
sília para, sem sutileza, mostrar apoio ao
então presidente Bolsonaro. Os deputa-
dos também decidiriam naquela data so-
bre o voto impresso (não aprovaram). O
chefe da Marinha era o almirante Almir
Garnier, que se negou a passar o cargo ao
sucessor escolhido por Lula. E que, na de-
lação de Mauro Cid, aparece como apoia-
dor do plano de Bolsonaro de reverter na
marra o resultado da eleição.
Em seu hábitat preferido, as redes so-
ciais, os bolsonaristas combatem a ideia
de que tenha havido tentativa de golpe
em 8 de janeiro de 2023. O senador Flá-
vio Bolsonaro, filho de Jair, disseminou
dados de uma recente pesquisa do insti
tuto Atlas: só 18% dos brasileiros acham
que houve tentativa de golpe (34% apon-
taram fanatismo como motivação, 20%
viram um protesto contra suposta frau-
de eleitoral e 12%, manipulação de tercei-
ros). Contestar o fato de que havia a amea-
ça de uma intentona é uma das bandeiras
de uma associação de familiares de presos
pelo 8 de Janeiro. A entidade foi criada em
abril de 2023. À frente está a filha de um
advogado réu pelo quebra-quebra, Miguel
Fernando Ritter, de 60 anos. Ele foi preso
em flagrante há um ano e, desde agosto,
responde ao processo em liberdade.
Além de negarem o “golpe”, a associa-
ção e o bolsonarismo em geral alardeiam
que haveria violações aos direitos huma-
nos dos presos e acusados. Curioso.
E a mesma turma costuma dizer por aí
que a defesa dos direitos humanos é coi-
sa de bandido. Em 20 de novembro, um
dos réus morreu num presídio em Bra-
sília onde estava preso preventivamen-
te. Era Cleriston Cunha, de 46 anos, pe-
queno agricultor que apresentava pro-
blemas de saúde. “Clezão”, como é cha-
mado no bolsonarismo, virou símbolo de
grupos de extrema-direita. Há outro per-
sonagem que tenta sair da cadeia com ba-
se em razões de saúde. É o agricultor pa-
ranaense Jorginho Cardoso de Azevedo,
de 62 anos, participante e financiador do
levante. Foi condenado, em novembro, a
16 anos, mas ainda não cumpre pena, es-
tá em cana em caráter preventivo. O mi-
nistro Moraes tem negado a sua soltura
provisória. “Os presos são de classe mé-
dia, principalmente do interior, e acham
que a prisão é só para os pobres. A Justiça
tem de ser igual para todos”, disse o juiz
ao jornal O Globo do dia 4.
Em um diário norte-ameri-
cano, o Washington Post,
Lula publicou um artigo no
dia 8, no qual diz que “go-
verno que melhora vidas é
a melhor resposta que nós temos para ex-
tremistas que atacam a democracia”. No
texto, comparou os episódios em Brasília
à invasão do “Capitólio”, o Congresso dos
EUA, em 6 de janeiro de 2020 por par-
tidários de Donald Trump, novamente
pré-candidato.
Os norte-americanos vão às urnas em
novembro e Trump tem chances reais de
vencer, a julgar pelo que se vê nas pesqui-
sas de intenção de voto e de avaliação do
governo Joe Biden, que tentará a reelei-
ção. O republicano precisa de aval da Su-
prema Corte para concorrer, pois alguns
tribunais estaduais têm proibido sua can-
didatura exatamente em razão da inva-
são do Capitólio (reportagem à página
40). Um cientista político dos EUA, Ian
Bremmer, prevê um cenário caótico por
lá, com aumento da divisão política e so-
cial. Este ano promete por lá e por aqui .
CARTA CAPITAL
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