May 8, 2016

De boca na mortadela



Marcio Tavares D’Amaral

Dois países não podem conviver no mesmo território

“Nós” e “eles” prevaleceu. O tempo vai passar, haveremos de nos lembrar do tempo em que nos fazíamos boa companhia, e há de se restaurar um “nós” hoje (provisoriamente?) posto na geladeira. Preservado no frio da cordialidade suspensa. Apesar de tudo, melhor a geladeira. Ou dá bicho, e temos de nos jogar fora. No lixo de um ódio que, então, terá se tornado nosso novo modo de ser povo. Essa, sim, seria uma derrota. Uma para chorar. Se é que o ódio encontra motivos para chorar.

Hoje, tudo que se diga que vise ao estabelecimento de algum frangalhozinho de verdade encontra inevitavelmente a cantilena enjoada das crianças que precisam justificar junto à mãe os sopapos que meteram no irmão: “Foi ele que começou!”. Ainda vamos assistir a isso por muito tempo. Aliás, quem começou o quê? De que estamos falando quando a presidente da República e seu partido são acusados de terem “começado”? Lembro-me sempre do mapa de saída das eleições de 2014: o azul do Brasil e o vermelho da Nova Cuba. O impeachment começou ali. Dois países não podem conviver no mesmo território. Um deles fatalmente é invasor. E aos invasores, a guerra. Fez-se a guerra. O começo mais recente foi ali.

Já muito se disse, mas repito: num regime presidencialista a eliminação de um presidente é uma violência constitucional. Constitucional, mas violência. No parlamentarismo, o primeiro ministro, chefe do governo, não é eleito. Seu partido saiu das eleições em condições de governar, e o primeiro ministro será aquele ou aquela que tiver a sorte, ou o azar, de estar na posição eventual de líder da maioria. Primeiro ministro não tem mandato. Pode ser convidado a ir para casa por qualquer motivo, o mais tolo que seja, desde que a favor desse motivo se forme uma maioria eventual. De ocasião. O motivo pode ser tão bobo quanto não gostar de mortadela.

“Não gostar”, no regime presidencialista, não serve. Não tem nada a ver. A violência constitucional de jogar no chão uma pessoa eleita por prazo determinado precisa de fundamentos tão firmes que mesmo quem seja cego para eles possa ver. Fundamentos, nesse caso, significa: fatos gravíssimos, crimes inequívocos, vinculáveis direta e pessoalmente ao, ou à, presidente. É preciso haver um nexo gritante de causalidade. Dito de maneira simples: o fato não precisa só ser criminoso — ele precisa ser prévio. Já estar lá. Ser descoberto. E aí, porque há fato e possível atribuição de autoria, instaurar-se um processo.

Essa estrutura necessária é uma das formas que restaram do antigo amor que tivemos à verdade, e, parece, está em extinção junto com as baleias e os micos-leão dourados. Em falta de nome melhor, proponho chamá-la de “modelo judiciário da verdade”. Funciona assim. Dá-se um fato estranho. Ele não é natural, como uma tsunami, nem casual, como um pé torcido na travessia de uma rua movimentada. Alguém o produziu. É preciso saber com certeza quem. E estabelecer um certíssimo vínculo causal entre o fato e o feito. E então, sim, avaliá-lo. Conhecer sua verdade. Nutrir-se do gosto bom da verdade.

Quando esse fato pode ser considerado um crime, instaura-se um processo. É no processo que se verifica o objeto e se demonstra, ou não, a autoria. Isso quer dizer: se estamos falando da verdade, o objeto precede o processo. Se não é do desejo de verdade que se trata, a vontade de processo antecede. Fica no ar, equilibrando-se em nada, à procura do que possa morder. E como o equilíbrio em nada é muito desconfortável, morde na primeira aparência de objeto que venha ao seu campo de visão. O desejo de processo, quando é prévio, não está interessado na verdade, tem gosto de sangue. Há quem goste. Quando se trata de política, é uma perversão. Já muito se disse que na guerra a primeira vítima é a verdade. Quando a guerra é política, a primeira vítima é a democracia. E a democracia é só o que se interpõe entre a convivência, desejada ou tolerada, não importa, e a incivilidade. Entre a legitimidade, que pode até ser contestada, e a usurpação inconteste. Quando o processo antecede o objeto, o resultado é sempre uma violência. E não há Constituição que a cubra e legitime.

Há muitíssimas coisas que vão mal no Brasil. Crimes a rodo, lançados na roda todos os dias. São fatos. Antecedem os processos que precisam ser abertos para apurá-los. Justificam esses processos. E as sanções que decorrem deles. Que são necessárias e bem-vindas. Mas o que temos visto é um processo babando à busca de um objeto qualquer. Encontrou um, pulou sobre ele. Era do passado, não servia. Pegou outro. A fome era grande, e o desejo de verdade, nenhum. Montou-se um processo retardado, frágil, que só passaria mesmo movido por uma maioria eventual. Como no parlamentarismo. E deu-se o bote.

Caiu-se de boca na mortadela. Francamente.

 
O GLOBO, 23 DE ABRIL DE 2016 

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