por Renata Mariz, Enviada especial
Na terra indígena Krenak, que abriga cerca de 400 pessoas em quatro mil hectares, na margem esquerda do Rio Doce, cercas foram colocadas recentemente, parte do plano de redução de danos das empresas envolvidas no rompimento da barragem do Fundão, em Mariana (MG). A medida visa evitar que animais criados pelos indígenas, especialmente bois, bebam água do rio. Com os olhos úmidos, Irani Felix aponta incrédula para o obstáculo:
— Nunca pensei ter uma cerca impedindo a gente de chegar no rio — comenta.
O pequeno Naktã, de 5 anos, filho mais novo de Irani, reclama de não ter mais onde aprender a nadar. Apesar do chinelo do Capitão América e joguinhos no celular da mãe, que o deixam tão semelhante a qualquer garoto de fora da aldeia, a criança mostra uma relação diferente com o Rio Doce. Fala com pesar sobre o “montão de peixe” que morreu perto da casa da família. E lista córregos e riachos próximos onde ele talvez possa encontrar lambari.
Pescar e beber água é a preocupação de José Cecílio Damasceno, ou Takruko, como se apresenta logo depois de usar o nome de “branco”. O indígena fala com desespero da sujeira que tomou conta do leito do rio, chamando-o de “rio do amargor”. Além da renda obtida com o trabalho de barqueiro pela prefeitura, ele recorria ao Doce para reforçar o orçamento:
— O rio dava tudo para nós. Se eu precisava de um pacote de açúcar, pescava e vendia para os restaurantes. Agora está tudo morto.
A água mineral que vem sendo distribuída pelas empresas, segundo ele, não “mata a sede da gente”. Em todas as casas da terra indígena, há caixas azuis que armazenam a água distribuída por carros-pipa, destinada aos animais e afazeres domésticos. Na última semana, porém, as chuvas que atingiram a região têm dificultado a chegada do recurso.
— Choveu demais e, em muitas estradas, os carros-pipa não passam. Teve queda de barreira, está muito difícil — diz Douglas Krenak, líder jovem da etnia.
Barbicha, roupas esportivas, internet em casa, Douglas representa as mudanças pelas quais o povo Krenak passou ao longo do tempo. As seis aldeias que formam a terra indígena guardam pouca semelhança com o que era na década de 1960 e 1970, quando os militares passaram a comandar o local. A mata diminuiu, deu lugar a pastos, que alimentam os bois criados pelos indígenas. A comunidade se engajou num projeto de produção de leite para cooperativas, que hoje representa boa parte da renda dos moradores.
Carros, motos e antenas parabólicas são itens quase obrigatórios na porta das casas de alvenaria, bem modestas, onde os indígenas moram. O casamento com “brancos” é outra prática comum da geração jovem das aldeias. O cabelo geralmente escorrido e escuro deixou de ser regra entre a criançada que corre na frente das casas. Nem por isso, defende o procurador Edmundo Antônio Dias, perdem a condição de indígenas:
— Segundo a Convenção 169 (da OIT), povo indígena é o que se reconhece como tal, esteja ele onde estiver. Não é porque as condições mudaram, que o jovem passou a estudar, fazer faculdade, que se perdem os valores próprios deles.
O povo Krenak pede à Funai uma revisão territorial da terra indígena já demarcada. Eles reivindicam a área de Sete Salões, que fica do outro lado do rio e é parte de um parque estadual, muito visitado por turistas. Segundo a Funai, o grupo de trabalho que fará os estudos necessários à identificação e à eventual nova delimitação deverá ser retomado no primeiro semestre deste ano. Os indígenas alegam que se trata de um local sagrado, onde os antepassados viviam.
Atualmente, há no Brasil 37 terras indígenas delimitadas, 66 declaradas, oito homologadas e 434 regularizadas, fase final do procedimento, segundo a Funai. No total, são 545 áreas nas mais diferentes fases de reconhecimento.
O GLOBO, 24 DE JANEIRO DE 2016
foto Michel Filho
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