Apesar do evidente paradoxo, nenhum artista capturou tão bem a fluidez do tempo, das pessoas, dos seres
Na
noite de 18 de abril do ano passado, quando Lou Reed entrou para o Rock
and Roll Hall of Fame, sua viúva, Laurie Anderson, contou que ele
acreditava que uma pessoa morria, por assim dizer, três vezes. Primeiro,
seu coração parava de bater. Depois, ela era enterrada ou cremada. Por
fim, seu nome deixava de ser pronunciado. Ato contínuo, Laurie puxou um
coro gutural: “Lou! Lou! Lou!” Claro, Reed morreu apenas duas vezes, em
outubro de 2013. Antes, foi ídolo e protegido de David Bowie.
Na
manhã de 11 de janeiro, a da última segunda-feira, na qual foi
anunciada a morte de Bowie, ocorrida na véspera, em Nova York, cruzei em
Laranjeiras com uma garota carregando sacolas de supermercado e
vestindo uma camiseta com a face de Aladdin Sane, persona do álbum de
1973. Aquela homenagem imediata proporcionou-me o único meio sorriso
daquela manhã. Sucessor de Ziggy Stardust, seu alter ego mais famoso,
Aladdin Sane era um trocadilho com “a lad insane” (um rapaz insano).
Na
tarde da última segunda-feira, depois de enviar para o jornal um
primeiro artigo sobre Bowie, isolei-me no escritório com uma pilha de
CDs para pronunciar o seu nome. Chorei um pouco. Por Bowie, pelos três
amigos que perdi em 2015, pela minha gata querida, por todos os que
vamos passar. Apesar do evidente paradoxo, nenhum artista capturou tão
bem a fluidez do tempo, das pessoas, dos seres — rumo ao fim,
individual, ou ao Fim, coletivo. Sua troca de personas e estilos foi a
dramatização disso.
Pulei de CD em CD, de faixa em
faixa, sem cronologia ou critério. Percebi, porém, que do meio de
tantas belezas emergiam as minhas “dez mais” de Bowie agora, na hora da
sua morte; só estavam excluídas faixas do sublime último disco,
“Blackstar”, por terem sido ouvidas quase todas as vezes sob comoção.
Ei-las:
“Time”, do álbum “Aladdin Sane”. Tal qual Reed, Bowie tinha uma queda por música de cabaré, à la Weill
& Brecht. Esse é um lindo exemplo. Na letra, o toque de sacanagem é
dado pelos versos “Time — He flexes like a whore/ Falls wanking to the
floor” (Tempo — Ele se flexiona como uma puta/ Cai no chão tocando
punheta).
“Life on Mars?”, do álbum “Hunky dory”
(1971). A balada sobre inadequação. Garota vai ao cinema contra a
vontade da mãe, mas com a bênção do pai, se desencontra da amiga e
assiste sozinha a um filme chatooo. O piano é tocado por Rick Wakeman, então em vias de se tornar tecladista do Yes. Inspirou uma série policial da BBC.
“Changes”,
também de “Hunky dory”. No obituário que escreveu no “New York Times”,
Jon Pareles disse que, se Bowie tinha um hino, era esse. O homem das mil
mutações louva as mudanças. Ouvir aquela gaguejada teatral em
“ch-ch-ch-ch-changes” ainda me causa taquicardia 40 anos depois de tê-la
ouvido pela primeira vez.
“I would be your
slave”, do álbum “Heathen” (2002). Nick Hornby ensinou que toda boa
lista — ou fita K7 — deve ter um toque de obscuridade. O meu vem de um
CD gravado sob o impacto do Onze de Setembro. Triste, triste, com um
quarteto de cordas e uma letra romântica: “Eu vou te dar todo o meu
amor/ Nada mais é de graça”.
“Absolute begginers”,
da trilha do filme homônimo, de Julien Temple (1986). O ator Bowie
trabalhou no musical ambientado na Londres de 1958. Uma das frases de
publicidade dizia “alarmante elegância, tumultos, romance e be-bop”. A
música-tema é um baladão com toques jazzísticos. Gil Evans arranjou
sopros em outras faixas.
“Warszawa”, do álbum
“Low” (1977). Parceria com o tecladista e produtor Brian Eno. É uma peça
minimalista, sombria, quase toda instrumental. “Falava” da visita de
Bowie à capital da Polônia, então sob o regime comunista, mas evocava,
também, o massacre do gueto judeu pelos nazistas, durante a Segunda
Guerra Mundial.
“Heroes”, do álbum homônimo
(1977). Um pouco de bravata, outro tanto de desespero: “Não somos nada/ e
nada vai nos salvar.” Philip Glass se inspirou no álbum inteiro para
compor a sua quarta sinfonia. Gosto muito da versão cantada em inglês e
em alemão por Bowie, incluída na trilha de “Christiane F.”, de Ulrich
Edel (1981).
“Look back in anger”, do álbum
“Lodger” (1979). A aceleração desse rock incluído no disco final da
chamada “Trilogia de Berlim” — com “Low” e “‘Heroes’” — sempre me
pareceu o Bowie quintessencial: urgente. Além disso, a música destaca
uma faceta tão importante em sua arte vocal quanto o falsete andrógino: o
crooner viril.
“The stars (are out
tonight)”, do álbum “The next day” (2013). Bowie estava sem gravar havia
dez anos quando — mais uma vez — surpreendeu-nos com um trabalho que
mostrava que o rock podia se tornar sessentão sem perder dignidade e
ousadia. Essa é a minha faixa favorita. Trata da (dis)função das
celebridades em nosso planeta.
“Moonage daydream”,
do álbum “The rise and fall of Ziggy Stardust and the Spiders from
Mars” (1972). Difícil escolher uma só faixa deste que provavelmente é o
melhor disco de um cara que nunca — nunca — lançou nada menos que bom. A
guitarra de Mick Ronson, o coro “de boca fechada”, os crescendos
arrebatadores...
Obrigado, Bowie, viva em paz.
Arthur Dapieve
O GLOBO, 15 DE JANEIRO DE 2016
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