July 31, 2009

A macaca tá certa!


Autobiografia da chimpanzé Chita é finalista do prestigiado Booker Prize

Fernando Duarte Correspondente • Londres


Obviamente, o fato de uma autobiografia da macaca Chita, a inseparável companheira de Tarzan, ter aparecido na lista inicial de 13 indicados ao Booker Prize, o mais prestigiado prêmio literário do Reino Unido, ao lado de nomes habituais em disputas de honrarias, como o sul-africano J.M. Coetzee, foi uma piada por demais tentadora nas manchetes de jornais. No entanto, mais que um engenhoso trabalho do escritor James Lever, que bancou o ghost-writer, o livro “Mim, Chita”, lançado em Londres em outubro do ano passado, vai muito além de um mero exercício de imaginação sobre a vida de um dos animais, na verdade um macho, que interpretaram o papel nas várias encarnações das aventuras em celulóide do homem-macaco. Afinal, assim como uma infinidade de colegas humanos de ofício, o chimpanzé mais famoso do cinema também experimentou a montanha-russa da vida de celebridade, incluindo as batalhas contra excessos — como o consumo de cigarros e álcool, no caso da Chita retratada por Lever.

Rex Harrison vira “odioso bêbado impotente”

Concentrando-se na história do animal mais clássico a interpretar Chita, que ainda está vivo (ao contrário, por exemplo, dos Tarzan e Jane mais conhecidos, Johnny Weissmüller e Maureen O’Sullivan, mortos em 1982 e 1998, respectivamente) e mora na cidade californiana de Palm Springs, Lever aglutina as histórias do macaco. A começar pelo fato de que o mesmo importador de animais responsável por sua captura na selva liberiana, em 1932, mais tarde ficaria famoso como fornecedor de primatas para as primeiras experiências do programa espacial americano.

Há bastante licença poética, claro, pois o livro é uma autobiografia com declarações e fofocas do chimpanzé, incluindo sarcásticas descrições de colegas famosos, como o ator Rex Harrison (Chita o chama de “odioso bêbado impotente”).
Charles Chaplin, por exemplo, ganha a alcunha de “superestimado”.


Tudo escrito como se o chimpanzé tivesse incorporado uma combinação transdisciplinar em termos de meios artísticos: à verve de John Cleese, do grupo cômico Monty Python, junta-se o sarcasmo seco de Charles Bukowski.


Há, ainda, situações fictícias, mas não inverossímeis, como as elaboradas orgias envolvendo alguns dos galãs mais famosos de Hollywood, e cenas capazes de fazer o mais libidinoso dos senadores da Roma Antiga corar. Porém, as cutucadas de Lever/Chita ao chamado culto à celebridade e ao comportamento pueril e afetado das primas-donas de Hollywood, assunto não apenas real como atual, também ajudaram a cativar a comissão julgadora do Booker.

— Fiquei feliz em ver os jurados reconhecendo o valor da proposta do livro — disse Lever ao jornal “Daily Telegraph”, antes de fazer uma graça afirmando que Chita, atualmente com 77 anos e lutando contra as complicações do diabetes, “’não quis comentar a notícia”.


O livro também emociona, sobretudo quando o chimpanzé fala de sua devoção a Johnny Weismuller, o campeão olímpico de natação que se tornou o mais famoso Tarzan. De uma mera oportunidade para um tabloide sensacionalista, o encontro entre Chita e seu ex-mestre, então confinado a uma cadeira de rodas por uma série de derrames, ganhou uma força dramática pela qual vários críticos britânicos confessaram ter sucumbido. E o fato de que, ao contrário de outros animais famosos, da cadela Lassie ao sapo artificial Caco, Chita até hoje não ter uma estrela na Calçada da Fama de Hollywood, reforça o lado mais triste da história do primata, sobretudo pelas entrelinhas em que Lever aborda o tratamento pouquíssimo nobre dispensado por Hollywood a seus atores animais, numa época de rara vigilância de autoridades.

Macaco diz fingir atuar, como Robert de Niro

Surras e choques elétricos, por exemplo, eram procedimento comuns nos treinamento de primatas, que ao menos não sofriam tanto quanto os cavalos — estes eram vítimas fatais constantes em filmes épicos ou de faroeste, por exemplo.

Assim, “Mim, Chita” surgiu como um tocante e bem-humorado tributo a uma rara testemunha da história oficial e oficiosa do cinema. Os momentos de lágrimas se equilibram com as gargalhadas, em tiradas como a confissão primata de que durante anos ele “apenas fingiu estar atuando, assim como aconteceu com Robert de Niro”. A publicidade gerada pela indicação ao Booker Prize já poderá ser de bom tamanho para que mais gente vá às livrarias e conheça a história de Chita.

“ESTE ERA O LIVRO QUE EU queria escrever. Não importa o quão obscuro o tema ou quão dolorosas as lembranças, não importa o quão estarrecedor e estúpido o comportamento de algumas pessoas — como Esther Williams, Errol Flynn, "Red" Skelton, "Duke" Wayne, Maureen O’Sullivan, Brenda Joyce —, meu desejo era escrever sem amargura, estereótipos ou acerto de contas. Era celebrar o que tem sido uma vida de sorte, muita sorte, e tentar procurar as coisas boas em todos as pessoas incríveis que eu tive o privilégio de conhecer. Este livro foi escrito com gratidão e amor para toda a sua espécie e por tudo o que vocês fizeram para os animais e para mim. Um obrigado. Um livro de amor.”
Trecho de “Mim, Chita”,
ainda inédito no Brasil




O Globo, 31 de julho de 2009

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