XICO SÁ
Quem tem medo de palavrão?
Ele é uma bênção no futebol, na literatura, na topada, no desafogo, no pânico, no trânsito de SP. E na cama
O TORCEDOR , amigo secador, em uma ida ao campo de futebol o homem diz mais palavrões do que nos gritos e sussurros de alcova durante a sua vida inteira. Não é diferente no sofá de casa, e o mesmo acontece com os técnicos, os digníssimos professores, e com os boleiros, mesmo os santinhos do pau oco e os sonsos atletas de Cristo.
Em uma pelada, mesmo de criança, fala-se mais palavrões do que na última casa de tolerância da Vila Mimosa. Como me disse uma noite a Tia Olga, madame responsável pela iniciação sexual de muitos garotos de São Paulo, todo homem ao chegar ao baixo meretrício ganha ar solene, circunspecto, grave, respeitoso. É no futebol que a criatura, antes da chamada fase oral canibalística, manifesta-se um marquês de Sade.
As histórias em quadrinhos do livro "Dez na Área, Um na Banheira e Ninguém no Gol" (ed. Via Lettera) são fichinhas, café pequeno, Zibia Gasparetto, padre Zezinho, uma Bíblia diante de um menino de nove anos e sua turma atrás da bola. Cito o tal livro devido à sua adoção seguida de banimento em escolas estaduais paulistas, como vimos nesta Folha. Não julgo quem o acolheu nem quem o demonizou. Não tenho ciência pedagógica para a valiosa tarefa, mas duvido de que o referido conteúdo fosse espantar alguém que já bateu uma pelada.
Sim, pode ser inadequado, no sentido moral e cívico, para a faixa etária do ensino básico, mas a gurizada iria se divertir e se interessar mais pela leitura do que sob a palmatória da chatice bilaquiana ou alencarina. "Última flor do Lácio, inculta e bela,/ És, a um tempo, esplendor e sepultura;/ Ouro nativo, que na ganga impura/ A bruta mina entre os cascalhos vela..." E dá-lhe Bilac na rapaziada.
Aqui em casa eu prefiro o time que contou as inocentes historinhas do "Dez na Área": Allan Sieber, Caco Galhardo, Custódio, Fábio Moon e Gabriel Ba, Fabio Zimbres, Lelis, Leonardo, Maringoni, Osvaldo Pavanelli e Emílio, Samuel Casal e Spacca. Tem ainda o Karmo, na posição de gandula.
Noves fora o quiprocó pedagógico, é mesmo um belo livro sobre futebol. Como diz o genial Tostão no prefácio: "Faltava uma obra como essa para crianças e adultos". A maldade do palavrão está na cabeça de quem o condena. O palavrão é bênção divina no futebol, na literatura, no desafogo, na topada, no pânico, no trânsito. E na cama.
Agora lembrei de uma fala de Ronaldo na sabatina da Folha. "Ele [Ronald] é uma criança doce, que não fala palavrão, é educado. É praticamente um europeu", disse ele, sobre o filho que vive na Europa. Mal sabe o Fenômeno que o acervo de palavras cabeludas de muitos países de lá é infinitamente mais rico do que o nosso, como lembra o sociólogo Gilberto Freyre no prefácio do "Dicionário do Palavrão", obra do pernambucano Mário Souto Maior (ed. Record).
A versão alemã de livro do gênero, que inspirou a edição brasileira, tem 9.000 verbetes. O volume nacional ficou em um terço dessa maçaroca. Na França e na Espanha, puta madre, nem se fala. Coisa de botar no chinelo a "Mesa-redonda sexo-futebol debate!", a sensacional história narrada pelo Caco Galhardo que fecha o "Dez na Área...".
Folha, 23 de maio de 2009
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