May 4, 2009

Geisel fez cerco à imprensa nanica

Papéis mostram que presidente autorizou ministro da Justiça a promover ação fiscal contra jornais alternativos

Wilson Tosta, RIO

Uma operação secreta de uso da Receita Federal para exterminar a imprensa alternativa foi desencadeada entre 1976 e 1978 pelo governo Ernesto Geisel (1974-1979), mostram documentos sigilosos da extinta Divisão de Segurança e Informações do Ministério da Justiça (DSI-MJ) obtidos pelo Estado.

Embora notabilizado pela suspensão da censura a jornais, pelo fim da tortura de presos políticos e pela distensão "lenta, segura e gradual", o general, penúltimo ditador do ciclo militar de 1964, autorizou a ofensiva contra os pequenos veículos em despachos com o então ministro da Justiça, Armando Falcão. O ministro da Fazenda, Mário Henrique Simonsen, concordou com a ação, proposta pelo II Exército - hoje Comando Militar do Sudeste, de São Paulo.

A autorização de Geisel para um ataque fiscal ao jornal Versus está documentada em ofício de 1º de setembro de 1978. Nele, o chefe de gabinete do Ministério da Justiça, Walter Costa Porto, transmite pedido da Polícia Federal para liberar a ação. A resposta vem manuscrita. "Confidencial. Conversei, no despacho de hoje, com o Exmo. Sr Presidente da República, que aprovou a medida", escreve Falcão. "Prepare-se, assim, o competente expediente ao Sr. Ministro de Estado da Fazenda. Em 11.9.1978. A. Falcão." Uma lista com Versus e outras 41 publicações que deveriam sofrer o mesmo processo da Receita, entre elas O Pasquim e Movimento, integra o dossiê.

Nos documentos, a operação secreta é tratada com naturalidade pelos ministros e por integrantes de órgãos de repressão, em correspondências oficiais de 1976 a 1978. Simonsen, por exemplo, em ofício de 1º de abril de 1977, solicita que "as indicações das empresas a serem auditadas sejam acompanhadas de todas as informações disponíveis no Ministério da Justiça e nos órgãos integrantes do Sistema Nacional de Informações, bem como sejam instruídos os órgãos regionais e sub-regionais do Departamento de Polícia Federal (...)." E expõe o objetivo: "Subsidiar a aplicação de providências legais (...) no sentido de promover, se for o caso, o encerramento de atividades desse tipo de empresa".

Em outro ofício, de 26 de abril de 1978, Costa Porto encaminha informação do "senhor ministro-chefe do SNI" - João Figueiredo, posteriormente presidente da República. Ele reproduz o texto de Figueiredo: "Considerando que a imprensa nanica continua proliferando, conclui-se que a operação dos Ministérios da Fazenda e Justiça, visando a retirar de circulação esses jornais cuja viabilidade econômica é questionável, está resultando infrutífera".

O mesmo Costa Porto, em documento de 1º de setembro de 1978, mostra que Geisel acompanhou a operação contra os alternativos por muito tempo. Ele lembra a Falcão que, em 1º de agosto de 1977, o ministro da Justiça levara o assunto ao presidente, que "decidira, verbalmente, aguardar".

Humberto Barreto, ex-secretário de Imprensa do presidente, nega ter sabido dela. "Por mim, não passou", diz. O ex-senador e ex-ministro Jarbas Passarinho também diz desconhecer a articulação. "O que eu ouvia dos líderes do presidente é que ele tinha aberto a liberdade de imprensa, exceto para a imprensa nanica", explica. "Ela era muito violenta." Falcão foi procurado, por intermédio de familiares, mas não deu entrevista. Em seu livro Tudo a Declarar, não menciona o ataque fiscal, mas reconhece que centralizou a censura. Geisel morreu em 1996, e Simonsen, em 1997.

ARTICULAÇÃO

O processo "de caráter sigiloso" foi iniciado no Ministério da Justiça pelo Ofício 341/Sec/Gab, de 9 de setembro de 1976. No texto, o diretor-geral da PF, Moacyr Coelho, envia a Falcão documentação do II Exército "contendo sugestão de emprego dos órgãos fazendários, dentro da área de esfera de suas atribuições, na fiscalização de publicação de influência ou orientação esquerdista".

A Informação número 1.343/76-CB, de 23 de agosto de 1976, da 2ª Seção do Comando da Força em São Paulo, alertava que a ação policial da censura vinha criando uma série de incidentes que desgastavam o governo e serviam de "bandeira para as esquerdas mobilizarem a classe jornalística". Acrescenta, ainda, ser "mais eficaz a censura fiscal", que poderia determinar "o fechamento de tais publicações pela atividade de fiscalização".

Simonsen endossou operação

Em ofício de 1º de abril de 1977, o então ministro da Fazenda, Mário Henrique Simonsen, afirmou que a ação fiscal contra jornais de oposição sugerida pelo II Exército poderia ser uma "providência auxiliar às medidas de preservação da Segurança Nacional" - termo da época para designar iniciativas de repressão. No texto, o economista reconhece explicitamente qual seria o objetivo: fechar, pela fiscalização do recolhimento de impostos, os jornais alternativos.

"Creio que, através de auditoria contábil-fiscal nas empresas referidas e, quando necessário, nas pessoas físicas de sócios e diretores (...) poderá ser possível a obtenção de evidências ou provas documentais suficientes não só para a instauração (...) de processo judicial por crime contra a Fazenda Nacional, mas, também, para subsidiar a aplicação de providências legais (...) no sentido de promover, se for o caso, o encerramento das atividades desse tipo de empresa", escreve Simonsen.

ROTEIRO

Foi o comando do II Exército, contudo, que traçou o roteiro a ser seguido pela Receita Federal e outros órgãos fiscais no ataque fiscal à imprensa alternativa, no documento "Imprensa ?Independente?", assinado por Francisco Guimarães do Nascimento.

Depois de afirmar que as publicações alternativas eram "inviáveis economicamente", o autor lista o que deveria ser apurado por "fiscais da União, dos Estados e dos Municípios" sobre a imprensa alternativa. "1-Qual o Capital? 2-Qual a forma da sociedade? 3-Quais os acionistas? 3-1 -O imposto de renda destes comporta a condição de acionista, isto é, apresentam saldo a empregar? 3-2-Conta de lucros e perdas? 3-3 - Distribuição de dividendos? 3-4-Se houve prejuízo, como foi coberto, por quem e por quê? 4- Qual o corpo redatorial? (...)"

"A censura saiu dos grandes veículos no começo de 75, mas de Movimento, O São Paulo e Tribuna da Imprensa só saiu em junho de 1978", diz o jornalista Raimundo Rodrigues Pereira, ex-diretor de Movimento. "Acho que, como suspenderam a censura, resolveram atacar pelo outro lado."

Francisco Marsiglia, ex-diretor-administrativo do jornal, diz que, no início da publicação, em 1975, as ações fiscais eram normais, mas, no fim dos anos 70, a situação mudou, com ofensivas agressivas dos auditores. "Houve mesmo", diz. "Eu acompanhei de fora, porque já estava apenas como assessor, não era mais diretor. Os fiscais ameaçavam fechar o jornal."

O semanário, porém, morreu no início dos 80, alvo, como Versus e outros, de campanha terrorista e vítima das mudanças do País.


Estadão, 4 de maio de 2009

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