Na semana passada houve uma cerimônia estranha no Maracanã; Contrariando a crença atual de que adversários são inimigos a serem trucidades, e que só importa vencer, Ghiggia, o algoz do Brasil na pior derrota de sua história, foi homenageado e teve seus pés moldados na calçada da fama do nosso maior estádio. Foi uma ocasião em que pudemos demonstrar o quanto ainda não perdemos totalmente os vínculos com a civilização que, aliás, nos permitiu, na época, perder em nossa própria casa sem que os adversários se sentissem ameaçados ou desrespeitados.
A atitude do povo brasileiro na derrota para o Uruguai em 1950 fez mais para o prestígio internacional do Brasil que algumas vitórias que conseguiríamos depois. De qualquer forma foi tocante ver o velho Ghiggia emocionado ao constatar que o País de quem tirou a Copa lhe rendia homenagem. Aos 83 anos o velho ponta direita compreendeu perfeitamente o alcance do que se estava fazendo. Ghiggia é o único sobrevivente dos 22 jogadores que estavam em campo naquela tarde de 1950, talvez por isso a homenagem tenha sido tão significativa. E o destino, tecendo uma de suas caprochosas teias, nos deixou para receber as homenagens como único sobrevivento justamente o homem que decretou nossa derrota.
Sobrou a ele nos dizer, com um simbolismo irônico, que o herói daquela partida ainda está vivo, que nos fins de tarde de tempo ameno se senta em algum banco em Montevidéu olhando o Rio da Prata e talvez lembrando de seu gol decisivo.
Dos 22 sobrou um. O homem que decidiu o jogo. Fico pensando o que sei desse jogador do qual ouço falar desde 1950. Do qual conheço apenas um lance de que participou: o gol. De resto, nada. Terá sido um grande ponta? Driblava? Chutava forte? O que fez naquela Copa, além do segundo gol contra o Brasil? Não sei sequer em que time Ghiggia jogava no Uruguai. Dele ficou apenas um lance, milagrosamente preservado, daquela partida. Um lance rápido repetido um milhão de vezes desde aquele dia. Vê-se um jogador,.que para os padrões de hoje me parece um pouco gordinho, entrar com a bola dominada e desferir um chute com convicção, com toda a força que tinha, a ponto de levantar um pouco de poeira. Depois ve-se a bola no fundo das redes e Barbosa desconsolado se erguendo lentamente. É isso. Nada mais resta de Ghiggia.
Aliás, cada vez mais se sabe menos sobre aquela partida, porque quem realmente saberia o que verdadeiramente se passou dentro de campo já não existe: morreram todos. Mas é possível que o único que sobrou tenha os segredos do que aconteceu naquela tarde no Maracanã e esse talvez seja o lado bom da falta de documentação. Poucos filmaram aquela Copa, a primeira depois da Segunda Guerra, quando ainda havia países que recompunham as suas ruinas, e a falta de registro filmado aumenta a importância do testemunho de quem estava lá. Penso que só os jogadores sabem como foi uma partida. O resto de nós, torcedores, imprensa, etc., vemos o que é possível ver de fora, de longe. Vemos um outro jogo e, às vezes, nem isso. Em cada partida há um lado oculto que só quem joga vê.
Frequentemente é a parte mais importante. Por isso o que ocorreu naquela distante partida da decisão do Mundial de 50 quando o Brasil perdeu a Copa só Ghiggia sabe. Ele é o último dos que estavam lá, onde as coisas aconteceram.
Estadão. 3 de dezembro de 2009
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