December 26, 2008

Vidas Blindadas

Moradores de favelas violentas reforçam paredes, vedam janelas e adotam estratégias para se proteger de tiroteios

Vera Araújo

Pode chover balas no bar do alagoano Luiz Figueiredo Rocha, de 77 anos, localizado na entrada principal da Favela de Manguinhos, em Bonsucesso, que tiros de fuzil não perfuram o paredão de concreto. Quem garante é o próprio comerciante, morador há mais de 30 anos do local, que construiu seu bunker para proteger os clientes e a si mesmo. A parede passoupor sua prova de fogo no último dia 26, durante um tiroteio entre equipes da Delegacia de Roubos e Furtos de Automóveis (DRFA) e traficantes.

Na ocasião, seis policiais foram feridos e vários carros ficaram perfurados.

Apesar das marcas deixadas no concreto do bar, nenhum projétil passou.

O exemplo do comerciante vem sendo seguido por moradores de áreas de risco, como a dona de um centro espírita de uma favela da Zona Norte, que pediu para não ser identificada.

Apesar da ajuda dos santos, ela resolveu dar uma mãozinha a seus protetores espirituais e também construiu muros altos de concreto. Até a caixa d’água foi protegida.

Até caixas d’água são reforçadas com aço Aliás, os reservatórios de água são alvos freqüentes durante os tiroteios. Vizinho do bar de Luiz Figueiredo em Manguinhos, um fabricante de carrinhos de mão resolveu blindar sua caixa d’água — utilizando o mesmo aço com que produz seus equipamentos —, depois de perder dois recipientes perfurados por balas.

O conjunto de favelas de Manguinhos faz parte da Faixa de Gaza carioca. Entre a pobreza quase absoluta e a situação financeira que possibilita abandonar as comunidades, há o estágio daqueles que lutam para sobreviver, ampliando seus meios de proteção, como é o caso do comerciante alagoano.

— Desde que cheguei ao Rio em 1977, com meus oito filhos, tento sobreviver aqui (em Manguinhos). Com a minha experiência de pedreiro no Nordeste, construí o paredão com meu filho. Usei mais de dez sacos de cimento. Só me arrependo de não ter fechado até em cima, onde coloquei grade de ferro — conta Luiz.

Perguntado se agora se sente seguro — a obra foi feita há dois anos —, ele diz: — Quando eu estou lá, pode chover bala. Nessa última confusão (o tiroteio de 26 de novembro), eu estava lá dentro.

Nunca ninguém foi ferido.

A parede já passou por vários testes, até o caveirão mandou bala para cima: não fez um buraco. Acho que só metralhadora .30 pode furar.

Na Cidade de Deus, a donadecasa Irani de Oliveira, de 59 anos, moradora há 25 da favela, abriu mão da luz do sol e do ar fresco. Em vez de vidros, pôs chapas de aço nas janelas. A princípio, Irani contou que a idéia foi escurecer o quarto.
Mas depois acabou revelando que foi por motivos de segurança.
A chapa de aço não lhe custou muito, pois um vizinho que trabalha com esse tipo de material fez um preço camarada.

— Foi bem barato, mas não me lembro quanto. De uma bala perdida ninguém está livre, né? Seguro morreu de velho.
Dentro de casa eu me sinto segura.
Nunca entrou bala perdida aqui dentro — conta ela.

A criatividade dos moradores de áreas conflagradas não termina aí. Famílias chegam a fechar janelas com paredes, a construir quartos dentro de outros cômodos, sem contato externo, e até a manter um refúgio fora da favela, caso não consigam entrar em casa.

O casal Fábio Lindesay e Roseni de Barros, ambos de 28 anos, tem a estratégia de fugir para a casa de uma parente. No último tiroteio em Manguinhos, eles estavam numa aula do supletivo numa escola na vizinha Avenida dos Democráticos, quando perceberam que tinham de adotar o plano de fuga. Precavidos, já estavam com os filhos Matheus, de 6 anos, e David, de 7 meses, no colégio.

— Ficamos no corredor da escola, local mais seguro, esperando os tiros cessarem. Fomos para a casa da minha irmã, na Pavuna, quase de madrugada, com duas crianças, só com a roupa do corpo — diz Roseni.

‘Sob cerco da polícia, do tráfico e da indiferença’ Um dos autores do livro “Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro”, o sociólogo Luis Carlos Fridman diz que um enorme contingente de cariocas vive no que ele denomina “contigüidade inescapável”. Na pesquisa, foram ouvidas mais de 120 moradores de favelas.

— Uma parcela enorme da população pobre ou favelada é vista como bandido ou quase bandido. Ela vive sob cerco da polícia, do tráfico e da indiferença ou do preconceito. A gente pode ser atingido por uma bala perdida, mas Imagina essas pessoas que vivem em favelas? O esforço que as pessoas fazem para preservar a própria vida é maior do que o feito por aquelas que vivem fora das favelas — analisa o professor.

Também autora do livro, a socióloga Wania Amélia Belchior Mesquita ressalta o estresse emocional de quem vive em comunidade conflagrada: — Por mais que as pessoas tentem se proteger de forma individual, isso fica aquém da possibilidade de elas terem uma vida tranqüila, com segurança.

Para a coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec), a cientista social Silvia Ramos, a proteção a mais retrata o desespero: — É uma atitude desesperada dos moradores para atingir um mínimo de segurança. Eles não têm como bancar um lugar seguro e estão criando estratégias para sobreviver.



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