Télio Navega
Na região da Galícia, na Espanha, um vento quente e úmido sopra do Sudoeste até sua costa, no Norte do país. Seu nome é Ardalén e vem do Atlântico, especialmente da região do Caribe e da Costa Leste dos Estados Unidos. Comumente associado à mudança de tempo, ele ainda tem um sentido poético como símbolo de saudade e memória, temas centrais do quadrinho “Ardalén”, do espanhol Miguelanxo Prado, recém-lançado no Brasil pela editora Conrad.
Tudo uma pegadinha poética de seu autor, que brinca com a etimologia da
palavra para criar o título, conforme explicou em entrevista à editora
Norma, responsável pela publicação original de “Ardalén” na Espanha:
“Temos uma tonelada de ventos em todos os lugares e, surpreendentemente,
na Galícia, o vento que sopra mais e nos traz chuva, que nos define
como país, é simplesmente o vento sudoeste. Decidi que tinha de lhe dar
um nome e deparei-me com o presente da etimologia galega: ar do alén
significa ao mesmo tempo ‘ar’, ‘vento do outro lado do Atlântico’, mas
alén é também ‘o além’.”
Encontro na Galícia
No quadrinho, uma mulher viaja até uma aldeia no interior da Galícia em busca de vestígios do avô, desaparecido há décadas. Lá, ela encontra um velho marinheiro solitário que pode tê-lo conhecido, mas suas lembranças, tão intensas quanto nebulosas, tornam difícil distinguir o real da fantasia. A mulher passa então a questionar o estado mental desse homem recluso com suas memórias, que rendem páginas delirantes, numa viagem ao passado que às vezes se transforma numa fábula alucinada.
— O que eu tinha em mente ao começar a escrever eram elementos como a construção da identidade, a memória e a automanipulação das lembranças — explica Prado, por e-mail, ao GLOBO. — Com esses ingredientes, percebi logo que a atmosfera do realismo mágico era a que melhor se ajustava à história que eu queria contar.
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Além do tom fabular, com seres marinhos nadando pela sala de estar e pelo jardim do velho ermitão, o autor galego também inseriu documentos históricos fictícios ao longo da HQ, fazendo com que o leitor questione o que é real e o que é invenção em “Ardalén”. O álbum recebeu o Prêmio Nacional de Quadrinhos da Espanha em 2013 e, no mesmo ano, foi eleito Melhor Obra de Autor Espanhol no Salão Internacional do Cómic de Barcelona.
Prado afirma que os quadrinhos são uma linguagem poderosíssima, com múltiplos caminhos para transmitir informações ou sentimentos. Em “Ardalén”, o quadrinista nascido na cidade de Coruña, na Galícia, quis explorar os limites expressivos do gênero, mesmo sabendo que temas aparentemente tão comuns como o vento e a memória nem sempre são compreendidos de forma universal.
— Milhares de pessoas ao redor do mundo, de diferentes culturas e línguas, conseguiram decodificar essas representações sem dificuldade e, por consequência, se emocionaram. Mas é perfeitamente possível que uma pessoa, em particular, não sinta a mesma emoção inconsciente que outras ao ver o uso de azuis e violetas nas margens dos quadros (como se vê na imagem maior ao lado).
Prado diz que “Ardalén” tem muito a ver com outro quadrinho seu, publicado 20 anos antes:
— Essa forma “alterada” de apresentar uma suposta realidade sempre me pareceu sugestiva. “Traço de giz”, embora tenha uma história com outros elementos, também se desenvolve nesse registro.
Uma ilha fora do lugar
Publicado no Brasil pela editora Pipoca & Nanquim, este outro álbum, um dos mais celebrados do autor espanhol, conta a história de um homem que chega de barco a uma ilha remota, com um farol, e, lá, encontra uma mulher solitária. Entre silêncios, desejo e acontecimentos enigmáticos, os limites entre tempo e realidade começam a se confundir. Tanto que “Traço de giz” é um álbum conhecido por despertar leituras diversas.
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— Sim, ele está aberto a múltiplas interpretações, como está a própria realidade. Dez pessoas diferentes podem dar dez interpretações distintas aos mesmos fatos: a favor, contra ou neutras —diz Prado. — Eu, que sou quem criou essa “máquina”, sei que uma dessas interpretações é a verdadeira, mas cada leitor pode ter uma interpretação alternativa, dependendo de suas percepções. E, para esse leitor, essa interpretação será perfeitamente válida.
“Traço de giz” rendeu ao quadrinista um dos maiores prêmios de sua carreira, o de Melhor Álbum Estrangeiro de 1994 no Festival de Angoulême — mal comparando, o Festival de Cannes das HQs. Ele sabe que foi um ponto de virada em sua carreira:
— A partir dali, os editores passaram a me ver como um autor fora dos padrões. E, portanto, sem potencial para best-sellers ou séries de sucesso, mas com ótima recepção da crítica e um público muito fiel e constante.
Além de uma realidade dúbia, as histórias de Prado também possuem uma boa dose de melancolia, que se torna quase palpável no álbum “Tangências” (Conrad), com oito histórias de casais em crise.
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— De modo geral, a maioria das minhas obras gira em torno da relação do indivíduo com o seu entorno. Mas, em “Tangências”, meu interesse foi me aproximar de uma das relações mais fundamentais do ser humano: a vida a dois — explica Prado. —Foi, de certa forma, uma autobiografia sentimental de geração, embora depois tenhamos visto que muitas daquelas questões vieram para ficar.
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