March 24, 2024

Um golpe pelo outro


A Polícia Federal finalizou a investigação sobre a falsificação das carteiras de vacinação e concluiu que o ex-presidente Jair Bolsonaro cometeu dois crimes: associação criminosa e inserção de dados falsos em um sistema público de informações. No mesmo caso, foram indiciados cinco militares do Exército: o sargento Luís Marcos dos Reis, o major Ailton Barros, o capitão Sérgio Rocha Cordeiro, o tenente-coronel Mauro César Barbosa Cid e o coronel Marcelo Costa Câmara. No quinteto, há quem tenha cometido, conforme a
PF, mais ilícitos do que Bolsonaro (Cid,
Barros e Cordeiro) e menos (Costa). O
mais grave dos delitos é comum aos seis:
a inserção de dados falsos em um siste-
ma público, punida pelo artigo 313-A do
Código Penal com até 12 anos de prisão.
Cabe agora ao procurador-geral da Re-
pública, Paulo Gonet, decidir se as con-
clusões policiais bastam para denunciar
o grupo ao Supremo Tribunal Federal.
 
Procurador-geral de 2003 a 2005,
Cláudio Fonteles vê o caso como
“seriíssimo” e aposta que Gonet denun-
ciará Bolsonaro. O atual chefe do Minis-
tério Público, diz Fonteles, tem dado, des-
de a posse em dezembro, sinais da atua-
ção que terá. Designou, por exemplo, a
subprocuradora-geral Luiza Frischeisen
para atuar no Superior Tribunal de Jus-
tiça (ela encabeçava a lista tríplice elei-
ta pela categoria que o presidente Lula
não levou em conta ao escolher Gonet)
e, também, uma equipe para atuar para-
lelamente à PF em apurações sobre atos
antidemocráticos. “Estou com a sensa-
ção de que ele vai cumprir o dever.”
 
A investigação levada adiante na
Operação Venire não é a única a com-
prometer militares. A tentativa de Bol-
sonaro de reverter na marra o resulta-
do da eleição com um decreto golpista
ganha contornos cada vez mais nítidos,
graças a outra operação da PF, a Tempus
Veritatis, que estreou nas ruas em 8 de
fevereiro. Interrogatórios policiais de
17 de fevereiro a 2 de março acabam de
se tornar públicos e encrencaram ao
menos quatro oficiais de alta patente:
os generais Augusto Heleno, ex-chefe
do GSI, Paulo Sérgio Nogueira de Oli-
veira, ex-chefe do Exército e ex-minis-
tro da Defesa, Walter Braga Netto, ex-
-ministro da Defesa e vice de Bolsona-
ro na eleição de 2022, e o almirante Al-
mir Garnier, ex-comandante da Mari-
nha. Entre os depoimentos que os com-
plicam destacam-se os dados pelos co-
legas de Garnier à frente das Forças Ar-
madas no fim do governo Bolsonaro, o
brigadeiro Carlos de Almeida Baptis-
ta Jr., da Aeronáutica, e o general Mar-
co Antônio Freire Gomes, do Exército.
 
A lama aproxima-se das fardas às
vésperas dos 60 anos do golpe contra
João Goulart. Os crimes da ditadu-
ra inaugurada em 1° de abril de 1964 e
terminada em 1985 nunca foram pu-
nidos. O governo Lula tinha planos de
lembrar, de forma acusatória, a depo-
sição de Jango. Não vai sair do papel.
 
Há sinais da existência de um acordo
entre o presidente e a cúpula militar. A
troca do silêncio sobre 1964 por puni-
ções de militares envolvidos na conspi-
ração bolsonarista. “Estou mais preo-
cupado com o golpe de 8 de janeiro de
2023 do que com 64”, declarou Lula, em
fevereiro, à Rede TV. Palavras que leva-
ram o senador Hamilton Mourão, ex-
-vice-presidente de Bolsonaro, a elogiá-
-lo: “Atitude correta”, que contribui pa-
ra “pacificar o País” e fazer com que “os
contrários voltem a conviver”.
Lula abortou um evento alu-
sivo à derrubada de Jango
imaginado pelo ministro
dos Direitos Humanos,
Silvio Almeida, o que não
significa que não haverá atos da so-
ciedade civil, caso de uma marcha do
Rio de Janeiro a Juiz de Fora, trajeto
inverso ao das tropas que depuseram
Jango. Também seguiu para a gaveta a
ideia de construir em Brasília um mu-
seu para lembrar as barbaridades do re-
gime, anunciada em setembro de 2023
pelo então ministro da Justiça, Flávio
Dino, quando estava no Chile para os
registros dos 50 anos do golpe que as-
sassinou o socialista Salvador Allende.
 
Os chilenos inauguraram, em 2010, um
museu do gênero. A Argentina abriu as
portas do seu, no antigo centro de tor-
tura da Esma, em 2015. O brasileiro
aria a cargo de Almeida, que recebeu
as más notícias por meio do chefe do
gabinete presidencial, Marco Aurélio
Santana Ribeiro, em uma conversa de
35 minutos, em 7 de março, no Palácio
do Planalto. O ministro ainda acalenta
a esperança de falar diretamente com
Lula a respeito. Almeida tem há qua-
se um ano uma proposta de reativar a
Comissão de Mortos e Desaparecidos,
não autorizada. Criada por lei de 1995,
a comissão tinha a função de identifi-
car vítimas dos porões da ditadura de
1961 a 1988. Na antevéspera de deixar
o poder, Bolsonaro decretou o seu fim.
 
Os depoimentos de Baptista
Jr. e Gomes, dados à PF
na condição de teste-
munhas, não de investi-
gados, confirmam a tra-
ma urdida por Bolsonaro em novem-
bro e dezembro de 2022. Os dois afir-
maram ter participado de reuniões com
o então presidente e se negado a apoiar
um decreto golpista e a ideia de botar
tropas nas ruas via GLO, operações de
Garantia da Lei e da Ordem. Uma no-
vidade nos depoimentos foi a revela-
ção de que a PF descobriu outra reu-
nião golpista, só entre militares. Em 14
de dezembro de 2022, Nogueira, minis-
tro da Defesa, convocou os chefes das
Forças Armadas. Baptista Jr., Garnier
e Gomes foram ao Ministério e vi-
ram Oliveira apresentar outro decreto.
 
Gomes e Baptista Jr. afirmaram à PF que
ficaram contra e que Garnier silenciara.
O decreto é central na trama, embo-
ra não deva ser encarado isoladamen-
te, diz Pierpaolo Bottini, advogado cri-
minalista e professor de Direito da USP.
 
Sua existência configuraria ato “prepa-
ratório” da tentativa de golpe? Ou se-
ria ato “executório”? A resposta faz di-
ferença, pois o ilícito em questão é de
“tentativa” de golpe. Ao autorizar, em
fevereiro, prisões preventivas e buscas
policiais sobre o caso, o ministro Ale-
xandre de Moraes, do Supremo, escre-
veu que “atos executórios para um gol-
pe de Estado estavam em andamento”.
Bottini concorda. Segundo ele, todos os
que viram o decreto, participaram da
sua elaboração e incentivaram o pre-
sidente a assiná-lo são “partícipes” do
crime, nos termos do artigo 29 do Có-
digo Penal, o do chamado concurso de
pessoas: “Quem, de qualquer modo,
concorre para o crime incide nas penas
a este cominadas, na medida de sua cul-
pabilidade”. Tentativa de golpe de Esta-
do custa de quatro a 12 anos de cadeia.
 
Quem soube do decreto e nada fez
também está ao alcance da punição,
acrescenta o advogado. Por omissão. Se-
ria o caso dos dois ex-chefes militares
que agora declararam terem se oposto
à medida? “A omissão pode ser consi-
derada relevante se houver o dever le-
gal de impedir o golpe, e isso depende
do cargo e do posto”, afirma Bottini. E
aqueles coronéis e fardados de paten-
tes menores envolvidos em reuniões
e campanha difamatória contra gene-
rais que não aderiram ao golpe? “O Po-
der Judiciário vai ter de examinar caso
a caso se foi ação ou bravata.”
 
Em 28 de novembro de 2022, houve
em Brasília, conforme a PF, uma reu-
nião de coronéis das Forças Especiais
em busca de “argumentos” para con-
vencer os superiores que resistiam ao
golpe. Naquele dia, surgiu uma carta
apócrifa apoiada por 221 militares, des-
tinada a pressionar a cúpula das For-
ças Armadas. Em 14 de dezembro, da-
ta da reunião de Nogueira com os che-
fes militares, Braga Netto trocou men-
sagens escritas com o major Ailton Bar-
ros. “Infelizmente tenho que dizer que
a culpa pelo que está acontecendo e
acontecerá é do Gen Freire Gomes (sic).
Omissão e indecisão não cabem a um
combatente”. “Então vamos continuar
na pressão”, respondeu Barros. “Ofere-
ce a cabeça dele. Cagão”, devolveu Braga
Netto. No mesmo dia, houve manifes-
tação na porta da casa de Gomes, a co-
brar-lhe apoio ao golpe. No dia seguin-
te, Braga Netto trocou mensagens com
Barros sobre o outro resistente: “Senta
o pau no Batista Jr.”.
 
Eram dias dramáticos, embora a
nação não se desse conta. Em 16 de
dezembro de 2022, o então comandan-
te da FAB estava na cidade de São José
dos Campos para a formatura anual do
ITA, o Instituto Tecnológico da Aero-
náutica. Heleno também, seu neto  
ormando, e pediu a Baptista Jr. carona
aérea para voltar a Brasília, pois teria
reunião urgente com Bolsonaro no dia
seguinte, um sábado. À PF, Baptista Jr.
afirmou ter dito “de forma categórica”
ao general, em uma sala reservada, que
a FAB “não anuiria com qualquer movi-
mento de ruptura democrática”. O re-
cado deveria chegar a Bolsonaro. Hele-
no teria ficado “atônito”. A reunião de
urgência seria na véspera da planeja-
da prisão de Alexandre de Moraes pe-
los golpistas. Mensagens trocadas em
15 de dezembro de 2022 pelo coronel
Costa Câmara com o tenente-coronel
Mauro Cid mostram que os passos do
juiz eram monitorados.
 
Cid foi chefe dos ajudantes de ordem
da Presidência de Bolsonaro, por indica-
ção do comando do Exército. Converteu-
-se em delator em setembro de 2023, após
quatro meses de prisão preventiva no ca-
so das carteiras fajutas de vacinação. Seu
cárcere ficava em um quartel a 100 me-
tros do QG do Exército em Brasília. Re-
cebeu muitas visitas, inclusive de gene-
rais. Teria havido nesse período algum
acordo com a cúpula militar para entre-
gar Bolsonaro e tentar salvar a pele das
Forças Armadas enquanto instituição?
 
Organizador do livro
Os Militares e a Crise
Brasileira, o cientista
político João Roberto
Martins Filho acredita
que Gomes e Baptista Jr. não tomaram
sozinhos a decisão de falar o que fala-
ram à PF. Pelo modo como funcionam
os militares, uma família, a dupla com-
binou com suas corporações, acredita.
 
“Quem chega a comandante das Forças
Armadas não chega sozinho e, quando
sai, não sai fazendo coisas da própria
cabeça.” É de se notar, prossegue, que
a dupla implicou não só Bolsonaro, mas
também Braga Netto, Nogueira, Heleno
e Garnier. “Acabou a impunidade para
alguns para continuar a impunidade da
instituição. As Forças Armadas vão sair
como salvadoras da pátria. E o engraça-
do é que durante o governo Bolsonaro
ninguém o enfrentou.”
 
Não enfrentou, pois se tra-
tava de um “governo de
militares, e de altas pa-
tentes”, na visão de um
coronel da reserva do
Exército, Marcelo Pimentel de Souza.
 
“Quem chegou ao poder foi uma gera-
ção de militares dos anos 1970, a mesma
de Bolsonaro. Os mais antigos são todos
bolsonaristas, sou exceção.” A ascensão
da farda, acrescenta, começou pelos idos
de 2013, com atos na porta de um quartel
do Exército na capital paulista e avan-
çou em 2014 no embalo da Comissão
Nacional da Verdade, da Operação Lava
Jato e do lançamento da candidatura
presidencial de Bolsonaro na Academia
Militar das Agulhas Negras. Em novem-
bro de 2014, menos de dois meses após
a reeleição de Dilma Rousseff, o capitão
foi à formatura anual da Aman e decla-
rou: “Eu estou disposto em 2018, seja o
que Deus quiser, a tentar jogar para a
direita esse País”. Ato de caráter elei-
toral é proibido em quartéis. O chefe
da Aman à época era o general Tomas
Miguel Ribeiro Paiva, atual comandan-
te do Exército. CartaCapital questionou
Paiva, via assessoria de imprensa, em 18
de março, sobre o episódio de 2014 e so-
bre atuais investigações em curso na PF
a envolver militares. Até a conclusão
desta reportagem, na manhã da quin-
ta-feira 21, não houve resposta.
 
Duas semanas após Bolsonaro ir à
Aman, ficou pronto o relatório da Co-
missão Nacional da Verdade, que in-
vestigou violações de direitos humanos
pelo regime. O documento listava 434
mortos e desaparecidos, número con-
siderado subestimado, lembra Carla
Osmo, uma das pesquisadoras que tra-
balharam na CNV e atualmente é pro-
fessora de Direito da Unifesp. Diferen-
temente de outras comissões do gênero
na América Latina, compara, a brasilei-
ra saiu do papel mais de 25 anos após o
fim da ditadura. “O principal obstáculo
para o avanço dos trabalhos foi a falta de
colaboração das Forças Armadas. Cons-
ta do relatório que, dos ofícios enviados
ao Ministério da Defesa com pedidos de
informações, somente uma parcela pe-
quena foi atendida e, ainda assim, com
poucos resultados objetivos para a ativi-
dade investigativa.” A acadêmica ressal-
ta: criar um museu da memória da dita-
dura, aquele de que falava Flávio Dino,
era uma das recomendações da comis-
são, juntamente com o prosseguimento
da Comissão de Mortos e Desaparecidos.
 
“O Exército acredita que deu um con-
tragolpe em 1964 e sempre buscou dar
uma aparência institucional à ditadura.
A Constituição de 1967 tratorou aquela
de 1946. O AI-5 de 1968 foi incorporado
à Constituição de 1969”, recorda o coro-
nel Souza. Com o AI-5, o regime permi-
tiu-se fechar o Congresso, cassar parla-
mentares e juízes do Supremo. “A Lei de
Anistia foi um equívoco e Lula também
comete um, ao proibir manifestações so-
bre os 60 anos do golpe. Ele fez um ato
para lembrar um ano do 8 de Janeiro.”
 
Vale lembrar: haverá um almoço no Clu-
be Militar nos próximos dias para ce
brar a tomada de poder 60 anos atrás.
A ditadura inaugurada em 1964 foi um
“retrocesso” e seu “saldo não é bom, diz
o historiador Manuel Domingos Neto,
especialista em Forças Armadas. O au-
tor do livro O Que Fazer Com o Militar?,
de 2023, defende refundar a caserna.
 
“Os militares se sentem os pais-funda-
dores do Brasil, se sentem melhores do
que os civis.” A visão fundacional vem
da propaganda de que o Exército nasceu
em 1648, em guerras de expulsão de ho-
landeses do Nordeste. O motor da união
das Forças Armadas com Bolsonaro, an-
tes mesmo da eleição de 2018, foi social
e geopolítico, na visão de Domingos Ne-
to. “Elas têm tradição de luta contra os
brasileiros, vide o massacre de Canudos,
não contra as potências interessadas nas
riquezas do Brasil. E não admitem que o
Brasil mude o alinhamento com o Oci-
dente e os Estados Unidos. Bolsonaro
foi joguete das Forças Armadas”, acre-
dita o historiador. A ausência de punição
aos participantes do regime, prossegue,
contribuiu para o golpismo de parte dos
quartéis na era Bolsonaro. “Deixaram o
poder convictos de que fizeram o certo,
está na medula deles.”

Vivemos num país
que nunca respon-
sabilizou as Forças
Armadas por autori-
tarismo. O discurso
punitivista da direita sobre crimes co-
mo sequestro e roubo é de que há mui-
ta impunidade. Essa mesma lógica não
se aplica aos militares. Aí há uma im-
punidade virtuosa”, alfineta o advoga-
do criminalista Davi Tangerino, profes-
sor de Direito da Universidade Estadual
do Rio de Janeiro, que acredita em pu-
nições agora, limitadas a alguns gene-
rais (Braga Netto, Heleno) e um almi-
rante (Garnier). Quanto a coronéis, ele
é cético. “É difícil separar golpismo de
ideologia. Pegue o caso do Silvinei.”
Silvinei Vasques era o diretor da Polícia
Rodoviária Federal e está preso em ca-
ráter preventivo pela tentativa de difi-
cultar a votação no segundo turno da
eleição em rincões onde Lula era favo-
rito. É o único da corporação.
 
Para Tangerino, ex-chefes militares
que agora deduram Bolsonaro e alguns
colegas não tinham muito o que fazer na
época dos acontecimentos, além de re-
sistir. “O general Freire Gomes iria pro-
curar quem? Lira? Aras? Ora, ele sabia
que não ia dar em nada, que seria en-
golido pela máquina. E dar uma de he-
rói na mídia é impensável para um mi-
litar.” Arthur Lira era e é o presidente
da Câmara dos Deputados, a quem ca-
be aceitar ou não abrir um processo de
impeachment contra o chefe da nação.
Augusto Aras era o procurador-geral,
única autoridade com poder para pro-
cessar o presidente por crime comum.
“Isso tudo não impede que haja uma con-
denação da História aos militares por
causa do governo Bolsonaro”, observa.
 
Fonteles tem uma leitura parecida em
relação à postura do general Gomes e do
brigadeiro Baptista Jr. no fim de 2022,
quando ocorreram as reuniões. O ou-
tro momento relevante da trama viria
a ser o 8 de Janeiro de 2023, espécie de
grand finale de uma história mais lon-
ga, na avaliação do ex-chefe da PGR. “O
procurador-geral vai precisar fazer uma
denúncia forte e sólida, acredito que se-
rá uma só sobre tentativa de golpe.” E
militares, serão punidos? “Na medida
em que está clara a participação de al-
guns de alta patente, sim. E também no
âmbito administrativo (pelas próprias
Forças Armadas).” O senhor não tem ne-
nhum receio de que as Forças Armadas
não aceitem as punições? “Não".
 
CARTA CAPITAL    
 
 
 

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