March 27, 2024

Debate viciado

 

 Os parlamentares estão
prestes a consagrar na Constituição
o maior defeito da atual Lei de Droga

MARIANA SERAFINI

Em 2019, um vendedor am-
bulante de frutas em Ara-
caju foi preso em flagrante
com 22,9 gramas de maco-
nha. A quantidade equiva-
lente a um bombom foi suficiente para
o jovem negro, à época com 24 anos,
permanecer encarcerado por três anos,
acusado de tráfico de drogas. Passado
esse período, um ministro do Superior
Tribunal de Justiça analisou uma ape-
lação da defesa e decidiu alterar a tipi-
ficação penal. Em vez de enquadrá-lo
por tráfico, crime previsto no artigo 33
da Lei de Drogas, com pena de cinco a
15 anos de reclusão, entendeu que o réu
incorreu apenas no crime de posse de
entorpecente para consumo pessoal,
previsto no artigo 28 e punido com me-
didas alternativas à prisão, como adver-
tência, prestação de serviços à comuni-
dade e obrigatoriedade de comparecer
a um curso educativo.

 
Casos como esse, lamentavelmente,
são corriqueiros, dizem numerosos espe-
cialistas consultados por CartaCapital.
Pessoas detidas com a mesma quantida-
de de drogas podem ter destinos radical-
mente distintos, a depender da avalia-
ção subjetiva de delegados, promotores
e juízes. Por uma dessas incríveis coin-
cidências que se repetem à exaustão em
um país marcado por mais de três sécu-
los de escravidão, pessoas negras, po-
bres e periféricas costumam ser pro-
cessadas por tráfico mesmo quando fla-
gradas com porções ínfimas de narcóti-
cos. Já cidadãos brancos, que vivem em
bairros abastados ou de classe média,
quase sempre são considerados consu-
midores. Quando o Supremo Tribunal
Federal retomou o julgamento sobre a
descriminalização da posse de maco-
nha para consumo pessoal, esperava-se
que a Corte não apenas extinguisse as
penas impostas a quem fazia uso da er-
va, mas também criasse um critério objE
tivo para distinguir traficantes de usuá-
rios. A reação conservadora no Congres-
so pode, porém, colocar tudo a perder.

 
Apresentada pelo presidente do Sena-
do, Rodrigo Pacheco, a PEC das Drogas
foi aprovada pela Comissão de Consti-
tuição e Justiça e começou a ser deba-
tida no plenário da Casa Legislativa na
terça-feira 19. Na contramão do que está
em discussão na Suprema Corte, a pro-
posta criminaliza a posse de entorpe-
centes em qualquer quantidade. O tex-
to acrescenta que deve ser “observada
a distinção entre o traficante e o usuá-
rio pelas circunstâncias fáticas do caso

 concreto, aplicáveis ao usuário pe-
nas alternativas à prisão e tratamento
contra dependência”. Na prática, a mu-
dança em relação à atual legislação é mí-
nima. Quem for considerado traficante
continuará sendo preso, o consumidor
permanecerá sujeito a sanções em liber-
dade. A diferenciação entre um e outro
segue sob a avaliação subjetiva das au
toridades. Mas, ao incluir tal dispositi-
vo na redação da Constituição Federal,
os senadores só reforçam a atuação dis-
cricionária dos agentes da lei.

 
“O Senado está vendendo esse proje-
to para a população como uma solução
para o combate ao narcotráfico, mas não
é isso que vai acontecer. A PEC limita-
-se a reiterar que o porte de entorpecen-
tes para consumo pessoal é crime”, ob-
serva Fabiano Contarato, um dos qua-
tro senadores que votaram contra o re-
trocesso na CCJ. Na prática, acrescen-
ta o parlamentar, a mudança tende a in-
flar ainda mais as penitenciárias do Bra-
sil, que possui a terceira maior popula-
ção carcerária do mundo, atrás apenas
de EUA e China. Dos 832 mil presos no
fim de 2022, mais de dois terços (68%) 

eram negros, atesta o último anuário do
Fórum Brasileiro de Segurança Públi-
ca, divulgado em julho do ano passado.

 
“Ao pautar o debate dessa forma, o Sena-
do perdeu a oportunidade de discutir o
assunto de forma responsável, estabele-
cendo critérios de natureza objetiva pa-
ra distinguir traficantes de usuários.”
Delegado da Polícia Civil do Espíri-
to Santo por 27 anos, Contarato diz não
ter dúvida de que a falta desses critérios
claros de diferenciação contribui para o
encarceramento em massa da popula-
ção negra e também “é fruto do racismo
estrutural existente no Brasil”. Caso a
PEC seja aprovada pelo Congresso, o se-
nador petista não descarta a possibilida-
de de a emenda ser declarada inconsti-
tucional pelo STF, por alterar um artigo
da Carta Magna que trata de direitos e
garantias fundamentais dos indivíduos.
“E isso não seria ‘ativismo do Supremo’,
como muitos gostam de dizer, porque es-
se controle de constitucionalidade pas-
sa pelo Poder Judiciário.”

 
Além de consagrar na Constituição
um dos maiores vícios da atual legisla-
ção de drogas, a PEC agrava o estigma
social dos dependentes químicos, afas-
tando-os de uma série de políticas pú-
blicas que poderiam reabilitá-los, ob-
serva a advogada Carolina Diniz, co-
ordenadora do Programa de Enfren-
tamento à Violência Institucional da
ONG Conectas. “Por temor de enfren-
tar processos criminais e sofrer conde-
nações, eles podem ficar ainda mais re-
fratários a procurar assistência médica,
programas de redução de danos e ou-
tros serviços”, alerta. “É uma má téc-
nica legislativa, que tende a reforçar a
abordagem repressiva das instituições
de segurança pública, além de contri-
buir para a consolidação do racismo es-
trutural que nós já enfrentamos.”

 
Na avaliação de Janine Salles de Car-
valho, secretária-executiva da Rede Jus-
tiça Criminal, o debate no Supremo bus-
ca aperfeiçoar a Lei de Drogas. “Ao pautar
esse tema tão delicado, em ano eleitoral e
a toque de caixa, o Legislativo parece em-
penhado em anular o mínimo de avanço
proposto pelo STF e fazer a lei retroagir
como era no período da ditadura, qu

do usuários e traficantes eram tratados
da mesma forma, sem distinção alguma”,
diz. A especialista ressalta ainda que, ca-
so a proposta avance, o Brasil estará na
contramão do movimento mundial de
revisão da fracassada política de Guerra
às Drogas. “Quando a nova Lei de Dro-
gas foi aprovada, em 2006, vivíamos um
contexto de reconhecimento da impor-
tância de tratar o usuário sob a perspec-
tiva da saúde pública, e não criminal. Is-
so estava acontecendo em diversos países
ao mesmo tempo, como Canadá e Uru-
guai. O Brasil seguiu essa onda”, observa,
acrescentando que os legisladores só fa-
lharam em deixar a diferenciação de uns
e outros sob a análise subjetiva dos agen-
tes da lei. “Hoje, o contexto é muito di-
ferente. A atual composição do Senado
é extremamente conservadora, não re-
conhece a esfera terapêutica da lei.”

 
Embora a atual legislação aplique 

penas diferentes para usuários e trafican-
tes, existe um “vazio” que dá margem
para decisões arbitrárias, afirma Car-
valho. “Muitas vezes, o policial respon-
sável pela prisão em flagrante é quem
decide a tipificação penal.” O relatório
Suspeita Fundada na Cor, elaborado com
base em uma pesquisa do Núcleo de Jus-
tiça Racial e Direito da FGV, confirma a
percepção da especialista. Segundo o es-
tudo, que analisou 1.837 decisões de se-
gunda instância em sete estados brasi-
leiros, 69% das testemunhas em proces-
sos por tráfico de drogas são policiais

A socióloga Nathalia Oliveira, cofun-
dadora da Iniciativa Negra por uma No-
va Política sobre Drogas vê a discussão
no Senado como uma “queda de braço
com o STF” desnecessária. “Claramen-
te, os senadores estão jogando uma cor-
tina de fumaça na pauta que realmen-
te importa, que é o avanço da descri-
minalização da maconha.” O debate no
STF começou há oito anos, e só foi re-
tomado no ano passado pela ex-minis-
tra Rosa Weber. Em 6 de março, ele vol-
tou a ser suspenso, devido a um pedido
de vista do ministro Dias Toffoli, que
tem 90 dias para devolver o processo ao
plenário da Corte. Entre as possibilida-
des aventadas pelos magistrados figura
a ideia de considerar usuário quem por-
tar até 60 gramas de maconha.

 
Para ser aprovada, uma Proposta
de Emenda Constitucional precisa ter
os votos favoráveis de três quintos dos
parlamentares, em dois turnos de vota-
ção, nas duas Casas Legislativas. Ou se-
ja, a redação ainda pode sofrer modifi-
cações nos plenários do Senado e da Câ-
mara, antes de seguir para a sanção pre-
sidencial. Lula pode exercer o seu poder
de veto, mas as organizações da socie-
dade civil envolvidas nesse debate te-
mem que o líder petista não comprará
briga com sua frágil base de apoio, tam-
bém composta de grupos reacionários.

 
“Nós, da Iniciativa Negra, em parceria
com outras entidades e movimentos
sociais, estamos fazendo um trabalho
de corpo a corpo em Brasília, apelando
para os senadores e deputados debate-
rem essa questão com responsabilida-
de e serenidade”, diz Oliveira. “Não há
motivo para tanto açodamento. O ideal,
em um tema complexo como esse, é am-
pliar o debate com a sociedade e decidir
de forma mais democrática.

CARTA CAPITAL   

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