December 20, 2020

Sonhos Interrompidos: A influência da pandemia no fim do sonho universitário

 Alunos das universidades federais, como a do Rio, sofrem os efeitos da recessão econômica e muitos são forçados a interromper os estudos. Foto: Guito Moreto / Agência O Globo

Bruno Alfano

Alessandra Nunes Rosa da Silva, moradora de Diadema, uma das cidades que compõem a Região Metropolitana de São Paulo, sabe que 2020 vai ficar marcado para sempre em sua vida. Aos 19 anos, ela realizou o sonho de entrar no curso de ciências contábeis da Escola Superior de Administração e Gestão da Fundação Getulio Vargas, uma instituição universitária conhecida pela excelência. Mas a alegria durou pouco. Veio a pandemia, ela perdeu o emprego e, mesmo com uma bolsa de estudos de 50%, ficou impossível dar conta da mensalidade. “Meu pai até se ofereceu para continuar pagando a faculdade, mas ele teve redução salarial e a prioridade passou a ser arcar com as despesas da casa”, contou Silva. Na virada do semestre, ela decidiu trancar o curso.

Dados ainda preliminares indicam que Silva é parte de uma geração de pré-universitários e universitários envoltos na pior crise das últimas décadas. Nas 53 instituições de ensino superior pesquisadas pelo Sindicato das Mantenedoras de Ensino Superior (Semesp), houve uma queda de mais de 400 mil alunos neste ano. Nessa conta entram trancamentos, desistências e não rematrículas, num total de 173 mil alunos, e também aqueles que deixaram de ingressar no ensino superior no segundo semestre, ou 250 mil pessoas. Dados como esses fazem a consultoria Atmã Educar, especializada em ensino superior, prever uma brutal queda no número de novos universitários em instituições privadas. De janeiro a dezembro, o Brasil deverá registrar uma redução de 17% na comparação com o ano passado. Tudo somado, 2020 é candidato a ser um dos anos de maior evasão no ensino superior.

“Nas universidades privadas, a inadimplência e a evasão não param de aumentar. Nas públicas, alunos desempregados também estão desistindo de estudar”

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Nas universidades públicas, o fato de os alunos não terem de pagar para estudar não os torna imunes ao que acontece no país. Itamar Caetano, de 24 anos, precisou abrir mão neste ano do curso de ciências farmacêuticas na Universidade de São Paulo (USP) porque foi demitido do emprego num telemarketing. Antes disso, a vida já não estava fácil. Sem computador nem internet, o ensino remoto era uma dureza. “Quando fui demitido, fiquei sem conseguir pagar as contas. Tudo isso foi muito difícil, e desisti”, disse Caetano, que, por ser do primeiro período, não pode trancar e vai precisar refazer o vestibular. “Eu me iludi muito achando que o mais difícil para um pobre era entrar na USP. O mais difícil é permanecer lá e acompanhar”, completou.

Ainda não há dados consolidados sobre a evasão em todas as universidades públicas estaduais e federais, mas as perspectivas não parecem boas. Na avaliação de Ricardo Lodi Ribeiro, reitor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), algumas medidas parecem ter, por ora, ajudado a conter a saída de alunos, como a adoção de um sistema remoto que permitiu aos estudantes cursarem o número de disciplinas que se sentiam aptos a acompanhar. Ribeiro disse, porém, que se preocupa com os próximos meses. “No futuro próximo, a taxa de evasão pode aumentar com a possível diminuição de renda das famílias e da capacidade do governo do estado de manter seus compromissos financeiros com a universidade, o que é essencial para a manutenção da política de assistência estudantil”, afirmou o reitor.

Sem dinheiro, a paulista Alessandra Nunes Rosa da Silva foi obrigada a abandonar o curso de ciências contábeis da Escola Superior de Administração e Gestão da Fundação Getulio Vargas. Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
Sem dinheiro, a paulista Alessandra Nunes Rosa da Silva foi obrigada a abandonar o curso de ciências contábeis da Escola Superior de Administração e Gestão da Fundação Getulio Vargas. Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

Edward Madureira Brasil, presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), é outro que chama a atenção para os programas de assistência de alunos carentes, que serão reduzidos. O valor para a concessão de bolsa-permanência no ensino superior cairá de R$ 199 milhões, em 2019, para R$ 138 milhões, em 2021, uma queda de 30%. Já a assistência ao estudante de ensino superior, cujo orçamento era de R$ 1,096 bilhão em 2019, será de R$ 874 milhões em 2021, um decréscimo de 30%. “Com os cortes, nem todos que precisam vão continuar recebendo o auxílio-moradia, alimentação e a bolsa, o que coloca em risco a permanência dos alunos mais pobres”, disse Madureira Brasil.

Para uma parte desses jovens, a crise econômica provocada pela pandemia e a impossibilidade de entrar numa faculdade ou de continuar estudando serão uma espécie de pausa, algo temporário que só vai atrasar os planos, não inviabilizá-los. O problema é que, cada vez que a evasão cresce, muitos acabam abandonando a ideia de um dia ter um diploma universitário. “Com base em nossa experiência, a desistência é alta entre aqueles que decidem trancar a mensalidade. Essas pessoas tiram a meta de estudar do radar, e a vida vai tomando outro rumo”, disse Rodrigo Capelato, diretor executivo do Semesp.

Esse quadro tem, obviamente, vários reflexos negativos, que vão de aptidões não desenvolvidas a limitações de renda no futuro. No Brasil, o teto salarial daqueles que acabam uma faculdade é muito mais alto. Pelos cálculos da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), com sede em Paris, um brasileiro com educação superior ganha, na média, o dobro do valor pago a quem tem apenas o ensino médio completo. Isso explica, em parte, o poder de atração das universidades, que acabam funcionando como um trampolim social. Pelos dados do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade), de cada dez universitários que concluem seus cursos, três são os primeiros de suas famílias a chegar lá.

Na Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Na Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Para o país as desistências também são uma péssima notícia. Na corrida global para ter trabalhadores com mais anos de estudo e produtivos, o Brasil está no pelotão de trás. Por aqui, apenas 21% dos adultos de 25 a 34 anos têm ensino superior. Na Coreia do Sul, o percentual é de 70%. Mesmo na comparação com a América Latina, o Brasil faz feio. No Chile, o número é 33%, na Colômbia 30%, e no México 23%, segundo dados do respeitado relatório sobre educação em diferentes regiões do mundo Education at a glance, da OCDE.

Em termos quantitativos, as universidades privadas são, de longe, as mais importantes. Quase 80% dos 6,5 milhões de universitários brasileiros estudam em uma delas. Nessas instituições, a evasão não é a única grande dor de cabeça. Edgard Larry, presidente Associação Brasileira das Mantenedoras das Faculdades Individuais (Abrafi), cujos associados são instituições majoritariamente pequenas, afirma que é alta a inadimplência entre aqueles alunos que ficaram. “Parte do esforço é fazer adaptações para manter os estudantes ainda matriculados”, disse.

“Devido a cortes no orçamento, a penúria financeira é sentida nas universidades públicas, tanto as federais como muitas estaduais. E não existe solução fácil para esse problema”

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Mesmo antes do coronavírus, a situação das privadas já não era tranquila. Em 2017, houve 33 requisições junto ao Ministério da Educação (MEC) para encerramento das atividades. No ano seguinte, esse número subiu para 62. No ano passado, foi para 91, e de janeiro a setembro de 2020 já eram 149, revelam dados da Associação Nacional das Universidades Particulares (Anup). “A economia e a queda do financiamento estudantil já eram uma realidade com que as universidades precisavam lidar. O que a pandemia fez foi bater o último prego no caixão”, disse Elizabeth Guedes, vice-presidente da Anup.

Entre as instituições que estão fechando as portas, várias não deverão deixar muitas saudades. Ano após ano, há um número alto de privadas com desempenho pífio nas provas de avaliação de qualidade. Dados do último Enade mostram que somente 14% dos cursos das privadas tiveram conceitos 4 e 5, os dois melhores. Quarenta e dois por cento tiveram os conceitos 1 e 2, os piores. São as faculdades “reprovadas”. O problema do momento atual, porém, é que a crise pode levar junto para a lata do lixo instituições acima da média. A Universidade Candido Mendes (Ucam) pediu recuperação judicial alegando que já vinha perdendo alunos e a pandemia deixou o cenário insustentável. Já as Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha) anunciaram o encerramento de um dos dois campi que tinham no Rio de Janeiro.

Protestos em favor da educação não sensibilizam um governo que enfrenta uma crise fiscal. Foto: Fabio Vieira / FotoRua / NurPhoto via Getty Images
Protestos em favor da educação não sensibilizam um governo que enfrenta uma crise fiscal. Foto: Fabio Vieira / FotoRua / NurPhoto via Getty Images

Nas universidades públicas federais, o cenário é o inverso do que acontece nas privadas — pelo menos do ponto de vista de qualidade. Só 5% dos cursos foram reprovados no Enade e 69% tiveram as notas mais altas. Em termos de aperto financeiro, no entanto, a situação é bastante parecida. O orçamento destinado às federais, que já foi de R$ 11,3 bilhões em 2016, cairá para R$ 7 bilhões em 2021. Com reduções desse tamanho no orçamento, a gestão das universidades virou um enorme desafio até para os reitores mais eficientes. “Acredito que a queda de recursos vai congelar a contratação de professores e fechar cursos”, disse Tássia Cruz, economista especializada em financiamento da educação e professora da Escola de Políticas Públicas e Governo da Fundação Getulio Vargas.

Os cortes têm efeitos negativos tanto no chamado “custeio” — pagamento de contas como água, luz, internet, segurança, limpeza — como em termos de investimentos — compra de equipamentos e reformas. “Na prática, o que acontece é uma deterioração do ambiente universitário. Os laboratórios ficam sem atualização, os recursos ficam escassos. Em outras palavras, a qualidade da universidade cai, e a formação das pessoas fica pior”, resumiu Nelson Cardoso do Amaral, professor da Universidade Federal de Goiás (UFG) e especialista em financiamento do ensino superior.

­ Foto: Miguel Schincariol / AFP
­ Foto: Miguel Schincariol / AFP

Neste ano, uma das mais importantes pesquisas do país — a que acompanhava a incidência da Covid-19 na população, realizada pela Universidade Federal de Pelotas (Ufpel) — ficou três meses parada por falta de financiamento estatal. O problema só foi resolvido depois que a organização Todos pela Saúde e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) decidiram dividir os custos. “A interrupção prejudicou muito. Deixamos de acompanhar a pandemia no período mais crítico”, afirmou Pedro Hallal, o coordenador da pesquisa.

Nas universidades públicas estaduais de São Paulo, a expectativa também é de queda de receita. “Fecharemos no vermelho”, disse Marcelo Knobel, reitor da Universidade de Campinas (Unicamp), que, assim como a USP, tem seu orçamento vinculado à arrecadação de ICMS no estado. Com a desaceleração da atividade econômica neste ano, houve redução de pagamento de impostos. A Unicamp conseguiu enxugar R$ 72 milhões, mas não conseguirá equilibrar as contas. “Infelizmente, prevejo um 2021 ainda pior. Vai haver ainda muita gente quebrando”, disse Knobel.

As receitas da USP, assim como as da Unicamp, dependem da arrecadação de ICMS em São Paulo, que sofreu com a desaceleração da economia. Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
As receitas da USP, assim como as da Unicamp, dependem da arrecadação de ICMS em São Paulo, que sofreu com a desaceleração da economia. Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

Diante da crise nas universidades, a grande pergunta é como tentar solucionar essa situação ou, pelo menos, mitigar seus efeitos mais nefastos. Infelizmente, não existem saídas fáceis. No mundo ideal, o governo federal aumentaria o orçamento das universidades públicas e elevaria o Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies) para ajudar as privadas. Do ponto de vista econômico, faria todo o sentido combater a evasão com mais verbas. A medida aumentaria a capacidade da mão de obra lá na frente, no momento da retomada da economia. Seria uma espécie de preparação de pré-temporada para entrar forte quando o campeonato recomeçar. O problema é que não há dinheiro. O governo não consegue nem manter o auxílio destinado a ajudar os mais pobres. “É muito difícil encontrar uma solução definitiva neste momento com recessão e problema fiscal tão grande”, disse Paulo Meyer Nascimento, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), órgão de pesquisa ligado ao Ministério da Economia.

Até mesmo quem defende que as universidades federais devem buscar fontes de recursos na iniciativa privada, como acontece em outras partes do mundo, reconhece que o momento é complicado. Com a recessão, a situação da maioria das empresas também piorou. A opção que parece restar às universidades públicas é lutar o que der contra os cortes e, ao mesmo tempo, fazer o dever de casa em termos de melhoria de gestão e busca de alternativas. Uma das saídas apontadas por Nascimento é taxar ex-alunos de universidades públicas no Imposto de Renda. Aqueles com determinado patamar de ganho pagariam com alíquotas progressivas pelo estudo bancado pelo poder público. “Esse sistema poderia ajudar as universidades com seus custos”, disse o pesquisador do Ipea.

Mesmo na comparação com países da América Latina, o Brasil tem um percentual baixo de pessoas com educação universitária. Foto: Pedro Vilela / Getty Images
Mesmo na comparação com países da América Latina, o Brasil tem um percentual baixo de pessoas com educação universitária. Foto: Pedro Vilela / Getty Images

No caso das privadas, não ajuda em nada que a “farra do Fies” ainda esteja fresca na memória. Segundo o Portal da Transparência, em 2014 foram assinados 731 mil contratos. Na época, o governo federal não exigia muito de quem tomava o empréstimo. Não era preciso fiador nem uma nota mínima no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). “Entre 2010 e 2015, explodiu o número de matrículas por causa do financiamento fácil, mas pessoas pegaram empréstimos que não podem pagar hoje”, disse Bruna Cataldo, pesquisadora especialista em ensino superior do Centro de Estudos sobre Desigualdade e Desenvolvimento da Universidade Federal Fluminense (UFF). Segundo o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, a taxa de inadimplência do Fies tem subido progressivamente desde 2014, quando era de 29%. Esse patamar chegou a 50% em 2019 e cresceu para 54% neste ano. Atualmente são 2,87 milhões de contratos de financiamento abertos. “O Fies era desproporcionalmente benéfico para um setor só, o das universidades particulares”, disse Cataldo.

Na avaliação de Samuel Pessôa, um dos economistas mais respeitados do país, o Brasil deveria se inspirar no modelo da Austrália, que condiciona o pagamento do empréstimo ao sucesso profissional. Quando a pessoa que tomou empréstimo e se formou tem trabalho, paga a dívida. Caso seja demitida, o débito é congelado. Pessôa explica que, nesse modelo, quem se dá muito bem e fica muito rico paga mais rápido. Já aquele que não consegue acessar o mercado de trabalho, demora mais. Depois de 20 anos, a dívida caduca. “Esse é um instrumento híbrido. Uma operação de crédito e um seguro, no sentido de que os melhores pagadores subsidiam os que vão pior. E isso é ótimo, porque ninguém sabe, quando vai estudar, qual vai ser seu desempenho na vida profissional”, disse Pessôa. Pelo menos por enquanto, representantes do setor veem com pessimismo qualquer perspectiva de grande mudança no Fies. A briga com o governo é por desburocratizar processos de credenciamento para facilitar a abertura de novos cursos. No país de poucas pessoas com formação universitária, ter um diploma deve demorar a se tornar um sonho mais fácil.

ÉPOCA

 

 

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