December 24, 2020

Diversão Homicida

 

 

O assassinato de Jhordan
Luiz e Edson de Souza prova: matar
pobres e pretos é um esporte da PM 

VICTOR CALCAGNO

Jhordan Luiz de Oliveira Na-
tividade, 17 anos, e Edson de
Souza Arguinez, de 20, não
tinham antecedentes crimi-
nais, não portavam pistolas
ou fuzis, não carregavam drogas ou ra-
diotransmissor, não dirigiam veículo
roubado, não tinham ligação comprova-
da com tráfico ou milícia, não desacata-
ram ordens das autoridades nem de-
monstraram resistência quando foram
“abordados” por dois policiais militares
em uma rua de Belford Roxo, cidade da
Baixada Fluminense, na madrugada de
12 de dezembro. Os dois foram recebi-
dos a tiros pelos agentes quando passa-
vam de moto à uma da madrugada, alge-
mados em seguida, agredidos no chão e
colocados na viatura, movimentação fil-
mada por câmeras de segurança não
percebidas pelos policiais. Os corpos fo-
ram encontrados a 8 quilômetros de dis-
tância no dia seguinte, Jhordan com um
tiro na cabeça e Edson com duas perfu-
rações na barriga e uma nas costas.
“Dois rapazes não podem andar numa
moto só porque são pretos?”, perguntou
em desespero a mãe de Edson, Renata
Santos de Oliveira, durante o enterro
do filho. Neste ano, apesar de o Supre-
mo Tribunal Federal ter proibido ope-
rações policiais nas periferias cariocas,
a PM do Rio continua a matar inocentes,
em geral pobres e pretos. A morte cruel
e banal dos amigos soma-se ao assassi-
nato do adolescente João Pedro, abatido
em casa, em São Gonçalo, em maio, e ao
das primas Emilly Victoria, de 4 anos, e
Rebeca Beatriz, de 7, enquanto brinca-
vam na porta de casa, em Duque de Ca-
xias, no início do mês.
Silvia Ramos, cientista social e coor-
denadora da Rede de Observatórios de
Segurança Pública, acredita que a mor-
te dos dois amigos poderia passar ao lar-
go, não fossem as câmeras, uma “rarida-
de” nestes casos, lembra. As imagens fla-
graram atos totalmente diferentes da-
queles relatados por Júlio Cesar Ferrei-
ra dos Santos e Jorge Luiz Custódio, o ca-
bo e o soldado assassinos. Os dois chega-
ram a negar a autoria dos disparos. A gra-
vação mostra, porém, o clarão da pistola
de um deles, seguido da queda dos jovens
montados na motocicleta. A descoberta
dos corpos no dia seguinte por um tio das
vítimas possibilitou a prisão dos PMs, in-
terrogados na Delegacia de Homicídios
da Baixada Fluminense.
“O que aconteceu com esses dois
jovens em Belford Roxo é bastante
específico”, afirma Silvia Ramos. Por
causa das filmagens, diz, tornou-se
“impossível tratar a ação dos policiais
como abordagem, ordem de parada ou
coisa parecida”. Confirmada a culpa dos
policiais, analisa a pesquisa, estará ex-
posto o método dos agentes públicos que
tentam esconder atos de violência ou
ações malsucedidas. Se antes era mais
comum que as mortes fossem registra-
das como autos de resistência nas co-
munidades e em outras áreas domina-
das pelo crime, é cada vez mais normal,
ressalta a cientista política, a estratégia
de assassinato e posterior sumiço de cor-
pos pelos próprios PMs. Isso não só cos-
tuma eximir completamente os policiais
de qualquer envolvimento, como impe-
de que as vítimas sejam incluídas nos da-
dos de letalidade policial. Os casos mi-
gram para o quesito “mortes a esclare-
cer”. Segundo dados da Rede de Observa-
tórios de Segurança Pública, no ano pas-
sado foram registradas 5.975 mortes vio-
lentas intencionais cometidas por agen-
tes públicos, o que inclui homicídios, as-
sassinatos por policiais e outros, além de
4.334 a esclarecer. Números bem próxi-
mos e que colocam em dúvida os dados
oficiais de violência estatal.
Os homicídios dos dois jovens ainda re-
acenderam a discussão sobre a alta da le-
talidade policial no Rio e sua relação com
a criminalidade, principalmente na Bai-
xada Fluminense. Desde junho, por causa
das operações policiais suspensas nas co-
munidades, os índices de mortes em ações
da polícia naquele mês e em julho, agos-
to e setembro caíram bruscamente. Em
junho, atingiram o mínimo histórico, 34
mortes. Em outubro, o índice pulou, en-
tretanto, para 145, quase três vezes mais
dos casos registrados no mês anterior,
quando 52 morreram. As regiões que mais
contribuíram para o índice ficam na Bai-
xada Fluminense, entre elas Queimados e
Mesquita, segundo dados coletados pela
Universidade Federal Fluminense.

O aumento recente dos assassinatos 
motivou uma petição ao ministro Ed-
son Fachin, do STF, relator da Arguição
de Descumprimento de Preceito Fun-
damental 635, que questiona a políti-
ca de segurança pública no Rio duran-
te a pandemia e que motivou a suspen-
são das operações nas comunidades. De
acordo com os autores da arguição, o au-
mento exponencial dos casos e ações em
favelas a partir de outubro comprova que
as polícias não cumprem a determinação
do Supremo. “O mais interessante é que
essa diminuição expressiva de operações
e mortes decorrentes de confrontos po-
liciais não significou o aumento na cri-
minalidade, mas estabilidade no núme-
ro total de homicídios dolosos, o que fun-
cionou como um laboratório vivo para a
segurança pública no estado”, ressalta a
pesquisadora. A decisão do STF, argu-
menta, comprovou que a política de se-
gurança tem problemas estruturais re-
lacionados diretamente à violência poli-
cial constante e à repressão inócua ao trá-
fico, além do racismo.
Os policiais responsáveis pela “abor-
dagem” dos dois jovens em Belford Roxo
seguem presos e foram intimados a pres-
tar novo depoimento, uma vez que há dú-
vidas sobre a versão apresentada pelos
agentes – ambos garantiram que solta-
ram Jhordan e Edson depois de 80 me-
tros a bordo da viatura, ao se certificar
de que nenhum dos dois era suspeito de
crimes. Ao comentar sobre o caso na se-
gunda-feira 14, o porta-voz da PM, major
Ivan Blaz, classificou a ação como “extre-
mamente errada”, mas se mostrou mais
preocupado com o futuro dos colegas de
farda: “Infelizmente, esses jovens poli-
ciais colocaram suas carreiras em risco
por conta de uma ação extremamente
errada”. E o que dizer dos dois jovens que
perderam as vidas? •

CARTA CAPITAL


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