June 11, 2018

Fino observador da condição humana


Dorrit Harazim

Quatro anos atrás, o júri do Peabody Award, prêmio máximo da indústria da TV, rádio e mídia on-line dos Estados Unidos, justificou assim a honraria concedida ao chef, escritor e apresentador Anthony Bourdain, encontrado morto na sexta-feira:

“Ele expandiu nossos paladares e horizontes em porções iguais. É irreverente, honesto, curioso, sem soberba nem obsequiosidade. Ao conversar com ele, pessoas revelam mais sobre suas cidades ou países do que um repórter convencional consegue captar”.

Na mosca. Seria pouco qualificar Bourdain apenas como o carismático “bad boy” do universo da culinária, de humor aguçado, estilo renegado e um viver sem freios. Ele foi um explorador voraz — da cultura, da culinária e da condição humana, tudo junto e misturado. Encarou sem preconceito receitas que não conhecia, fosse o prato um globo ocular de foca no Ártico, um ânus de javali na Ásia (detestou) ou testículos de carneiro no Marrocos.

Mas não foi a busca do exótico que moveu Bourdain e tornou universais seus livros e programas de TV — foi sua honestidade em relação à própria vida.

Bourdain só não concluiu a aventura maior do gênero humano, que é viver. Suicidou-se aos 61 anos num quarto de hotel de Estrasburgo, França, onde preparava novo aclamado programa “Parts Unknown”, e o mundo perdeu um admirável narrador de histórias sobre nós mesmos. Conseguiu inspirar zilhões de bípedes a se interessar e compreender melhor seus pares distantes. O segredo? Fazendo perguntas simples às gentes de terras estrangeiras, do tipo “O que te faz feliz?”, “O que você come?”, “O que você gosta de cozinhar?”. Fosse no Laos, na África, ou na Faixa de Gaza, as respostas formavam elos, abriam mais portas, permitiam sentar-se à mesa e começar a conversar. Explorou história e política com franqueza e real interesse.

Bourdain nasceu para conhecer o gênero humano através da culinária e conheceu todas as vilezas e belezas do ofício. Ao longo de décadas, trabalhou em turnos de mais de 12 horas diárias em cozinhas pouco nobres de Nova York, e por oito anos foi chef da Brasserie Les Halles de Manhattan. Viveu nas franjas da ruína. Aos 44 anos, contou em entrevista, ele não sabia mais o que era dormir sem se sentir aterrorizado: estava endividado até a alma, não tinha plano médico, não conseguia pagar impostos nem aluguel.

Num belo dia de 1999, teve a audácia de submeter à cultuada revista “New Yorker” um texto sobre a sórdida realidade por trás da vida nas cozinhas da cidade. O artigo foi publicado sob o título de “Não Coma Antes de Ler Isto”, transformado no livro best-seller “Cozinha Confidencial”, e Anthony Bourdain viu-se catapultado para o estrelato e a carreira televisiva.

Mas o chef agora celebridade não deixou de se reexaminar. Tampouco escapulia do tema drogas, nas quais mergulhara de ponta-cabeça nos anos 1980 e delas conseguira emergir. “É simples: eu gosto de heroína, me faz sentir bem. Apenas não posso mais fazê-lo”, explicava. “Amigos meus também a largaram cinco, seis, 10 anos atrás e somos os que deram sorte. Estamos vivos. Ficávamos chapados o tempo todo. Qualquer decisão era tomada sob efeito de drogas — maconha, quaaludes, cocaína, LSD, Seconal, Tuinal, codeína, e sempre mais heroína..”

Bourdain sabia o valor de viver.

Orgulhava-se de ter tido como companheiros de mesa desde simpatizantes do Hezbollah, funcionários comunistas, ativistas anti-Putin, caubóis, drogados, milicianos, feministas, palestinos, colonos israelenses. Nas suas incursões pelo mundo, sentava-se com quem gosta de comida e fosse hospitaleiro. “Racho um pedaço de pão com qualquer um”, dizia. Indagado pela revista “The Nation” se cogitava sentar-se à mesa com Donald Trump, já que fora filmado rachando petiscos em Hanói com o então ainda presidente Barack Obama, Bourdain respondeu: “Não renderia nada, ele só fala dele mesmo, só se interessa por ele. De mais a mais ele come bife bem passado. Isso o elimina de vez”.

Suas posições e comentários políticos sempre se mantiveram na contramão da narrativa convencional. “Basta ir uma só vez ao Camboja para ter vontade de esganar Henry Kissinger com as próprias mãos”, escreveu em “A cooks tour: in search of a perfect meal”, de 2001. “Você nunca mais conseguirá abrir um jornal e ler sobre esse ser desprezível, traiçoeiro, prevaricador, assassino... Enquanto Henry continua a beliscar rolinhos nori e remake em festas vip, o Camboja, nação neutra que ele mandou bombardear em segredo e depois abandonou aos cães, até hoje tenta se reerguer numa única perna”.

Bourdain foi uma voz masculina permanente contra o assédio e abuso sexual, e não poupou o ex-amigo Mario Batali, estrelado chef nova-iorquino atualmente investigado por acusações múltiplas. “O admirava muito, o tinha lá no alto na minha conta, mas não perdoo, simplesmente não consigo fechar os olhos. Sou assim”, explicava. Sua última companheira, Asia Argento, foi uma das primeiras atrizes a denunciar o todo-poderoso predador sexual de Hollywood, Harvey Weinstein. Poucas semanas atrás, Bourdain orgulhou-se de público com a namorada pelo discurso-choque feito por Asia no salão nobre do Festival de Cinema de Cannes, que começava assim: “Em 1997 eu fui estuprada por Harvey Weinstein em Cannes. Eu tinha 21 anos. O festival foi sua área de caça...”.

A morte do intenso observador da vida acontece três dias após o suicídio da estilista Kate Spade, em Nova York. Bourdain carregou uma dor que só a ele pertenceu. Vez por outra transparecia algum cansaço diante da intransigência geral. “Infelizmente vivemos num mundo em que se torna praticamente impossível sequer descrever a realidade, muito menos lidar com ela. É desolador”, escreveu. A morte desse intenso observador da vida deixa o mundo mais insosso.


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