De Arnaldo Bloch
Na era da pós-verdade, os heróis de hoje podem ser os vilões de amanhã e vice-versa
Estava
no supermercado quinta-feira de manhã e uma moça baixinha, com um
crachá, usando um walkie-talkie (ou um celular com antena fazendo esta
função), comentava, quase aos gritos, enquanto fazia compras, os fatos
do dia.
— Não, não! Hoje ele está em Brasília.
Acho que está em Brasília. E você viu o Eike? Ah! Agora é que eles vão
roubar mais ainda! — festejou a moça com rádio e crachá.
Não deu para saber quem era o sujeito em Brasília, mas a menção só dava
sabor ao diálogo, 100% real, em meio aos morangos, às lichias e à goji
berry na prateleira do supermercado. Pois, ao mencionar Eike, os olhos
dela brilhavam, como se torcesse por Ronald Biggs em fuga para o Brasil
após escapar da prisão pelo assalto ao trem pagador: um herói.
Não
que Eike já não tivesse vivido esse papel. No caso, portanto, um novo
herói, aos olhos de quem, como a mulher no supermercado, vê a suposta
perpetuação do roubo como uma virtude glamourosa. Ou, num viés
ideológico ultraliberal, uma vitória da rebeldia do indivíduo contra o
estado.
O mesmo estado que, não faz muito tempo,
alçou Eike Batista a grande herói nacional: tudo passava pelo Eike,
espécie de superministro privado das viabilizações mágicas. Um herói por
cujo caixa quase tudo transitava e era drenado para o limbo da
catástrofe futura
.
No tempo em que era um herói, e
que a admiração por ele transcendia as esferas oficiais e se espalhava
pelo público, pelas redes, pelos sites de celebridades, era difícil
dar-se ao trabalho de o questionar: Eike era uma verdade estabelecida.
Eike resolvia. Era aquele fascínio pelo homem de iniciativa, pouco
importando os meios, os fins ou as justificativas.
Parecido com a precoce heroicização de Donald Trump, que começa a
transpor a barreira de seus partidários fanáticos e criar mosquitos de
dúvida em mentes mais moderadas, inclusive de esquerda, com argumentos
do tipo “Esse cara pelo menos faz o que promete, não é como o indeciso
Obama, herói retórico de pouco pulso”.
Ou não é
que Dow Jones foi às alturas assim que Donald deu sinal verde para
oleodutos e virtualizou e viralizou o muro mexicano? Paralelamente,
anuncia-se o esquenta para tocar o horror em Guantánamo de novo, com a
eventualidade de as técnicas de falso afogamento em interrogatórios
voltarem a bombar.
Além de tudo, pelos primeiros
movimentos no comércio internacional, a política de Trump vai ser boa
para China e Mercosul. “De preferência sem cogumelos”, reflito, ao olhar
as prateleiras do supermercado e encarar umas cepas gordas de shitake.
Enquanto Eike, caçado, vilão para uns, herói para outros, já negocia
sua volta (de acordo com as notícias de quinta-feira, quando fecho a
crônica), e devidamente encanados Sérgio Cabral e Eduardo Cunha,
procuram-se preservar, aqui, heróis que ainda têm maioria na percepção
geral.
Rodrigo Janot, denominado xerife, tenta
continuar no posto, ao passo que, tendo como pano de fundo o luto pela
morte de Teori Zavascki, procura-se um herói que salve a Lava-Jato, e
ergue-se o temor de que, a depender de seu substituto na condução da
operação no STF, vá tudo por água abaixo.
O que
traz uma sombra sobre a noção que temos, hoje, do mais alto tribunal da
nação: uma espécie de esquadrão de guardiões das leis e da ética. Pois a
sensação, agora, é de que a Lava-Jato depende do resultado de uma
roleta-russa, dublê de sorteio. Se cair nas mãos de um herói em
potencial, Gotham City está salva. Se cair nas mãos do vilão, instala-se
uma distopia, e todas as quadrilhas de todos os partidos, investigadas
ou sob suspeita, vão dominar o carnaval de 2017, com ou sem máscara do
Moro.
Conclusão: na era da pós-verdade, do retorno
aos nacionalismos, do nivelamento por baixo da média do pensamento, da
impossibilidade de troca de ideias, da descontextualização, do indivíduo
se confundindo com o coletivo, os heróis de hoje podem ser os vilões de
amanhã e vice-versa, e mais: o herói pode ser herói e vilão ao mesmo
tempo, dependendo de se ele é Fla ou Flu, coxinha ou petralha, delator
ou túmulo.
Para ilustrar: outro dia, um amigo
judeu veio me dizer que Marine Le Pen pode até ser uma boa opção para a
França. “Mas não quero entrar em detalhes”, ele avisou, e eu aceitei
prontamente, ou teríamos uma guerra fratricida.
É
difícil, para o outro judeu aqui, embora sempre aberto à troca de
ideias, ouvir de um patrício o argumento de que a comandante do
neofascista Front National deu um tempo no antissemitismo e aposta todas
as fichas no ódio ao Islã.
Preferi o silêncio de
um Fla-Flu, daqueles modorrentos, que terminam em zero a zero, a
encarar o pragmatismo cínico capaz de alçar a herói um negacionista
pós-moderno.
De resto, saudações alvinegras. Tóquio vem aí.
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