July 12, 2010
Ezequiel Neves, produtor musical, 74 anos
foto de Ana Branco
O ano era 1976. Um foca chega à precária redação da revista “Rock: A história e a glória”, da qual Ezequiel Neves era um dos editores, ao lado de Ana Maria Bahiana e Tárik de Souza, e pergunta ao então já lendário crítico musical se ele também fazia literatura.
Com o habitual raciocínio veloz e sarcástico, e o tom de voz sempre alguns decibéis acima do normal, Zeca Jagger (um dos pseudônimos que costumava usar na época) responde: “Garoto, tudo o que eu escrevo é ficção!” Personagem fundamental para a cultura brasileira das últimas quatro décadas, Ezequiel Neves morreu no início da tarde de ontem, aos 74 anos, no mesmo dia em que, há 20 anos, também partiu seu maior parceiro e amigo, o cantor Cazuza. O produtor estava internado desde janeiro na Clínica São Vicente, na Gávea, lutando contra um tumor no cérebro, e seu corpo será cremado, provavelmente, amanhã.
Com seu humor ferino e sua fértil imaginação, Ezequiel fez “novo jornalismo” muito antes de o gênero ser reconhecido. E em quase duas décadas de atuação no setor, passando pela grande imprensa (revistas “Playboy” e “Pop” na Editora Abril, “Jornal da Tarde”, de São Paulo) e pela alternativa (a edição pirata da “Rolling Stone”, que circulou no início dos anos 70, as revistas “Som Três” e “Música do Planeta Terra”, o “Jornal da Música”), fez escola, inspirando dezenas de jovens a ingressarem no jornalismo cultural. Carreira que o próprio tratou de abandonar, trocando-a pela de produtor musical (e eventual letrista) a partir do início dos anos 80, quando apostou no talento bruto do Barão Vermelho. Foi devido à insistência de Ezequiel que João Araújo, então presidente da gravadora Som Livre, concordou em lançar o grupo que tinha como cantor e letrista seu filho, Cazuza, ao lado de Roberto Frejat (guitarra), Guto Goffi (bateria), Dé Palmeira (baixo) e Maurício Barros (teclados).
Além de ter coproduzido os discos do Barão e os da carreira solo de Cazuza, Ezequiel foi o coautor de clássicos do rock brasileiro como “Por que a gente é assim?”, “Codinome beija-flor” e “Exagerado”.
No período em que atuou como produtor da Som Livre, também trabalhou com ícones da MPB como Elizeth Cardoso e Cauby Peixoto. Ele ainda colaborou em programas musicais da Rede Globo e foi corroteirista do filme “Rio Babilônia”, dirigido por Neville de Almeida, de quem era amigo desde a juventude, em Belo Horizonte.
Uma figura fascinante — e também incômoda para muitos, o verdadeiro “Exagerado” de sua parceria com Cazuza e Leoni —, José Ezequiel Moreira Neves viveu intensamente.
Nascido em Belo Horizonte, em 30 de novembro de 1935, filho de um cientista e parente de Tancredo Neves, cedo se envolveu na vida cultural da capital mineira. O escritor Silviano Santiago, contemporâneo de Ezequiel em Belo Horizonte, conta que, na adolescência, o amigo sonhava uma carreira literária: —Encontrei Ezequiel quando tínhamos 15 anos, ele conhecia literatura muito mais do que todos em nosso grupo. Era afilhado espiritual de uma musa dos escritores dos anos 1940, Vanessa Neto.
Uma contista, sobrinha de Lúcio Cardoso, linda e carismática, que mostrou muita coisa a ele. Andávamos tateando, e Ezequiel já desfilava a sua cultura literária.
Seus contos traziam influências de Clarice Lispector e Jean Cocteau.
Entre 1956 e 58, Ezequiel publicou alguns desses contos na revista literária “Complemento”, que co-editou junto a Silviano Santiago e o escritor Ivan Ângelo. Ele também frequentava assiduamente o Clube de Cinema; o Teatro Experimental, dirigido por Carlos Kroeber; e o grupo de dança de Klaus Vianna e Angel Vianna. Entre os jovens artistas e intelectuais de Belo Horizonte circulavam ainda o escritor Affonso Romano de Sant’Anna, os atores Jonas Bloch e Rodrigo Santiago e o hoje deputado federal Fernando Gabeira.
Graças ao teatro, em 1965, Ezequiel Neves trocou Belo Horizonte por São Paulo, após atuar com seu grupo mineiro numa montagem de “Sonhos de uma noite de verão”, de Shakespeare. Em seguida, integrado ao elenco do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), trabalhou com Cacilda Becker e participou de uma montagem de “Zoo story”, de Edward Albee. Ainda em São Paulo, foi para o grupo de Antunes Filho, em “A megera domada”, e, depois, atuou em “Julio Cesar” ao lado de Jardel Filho.
Apesar do talento para o teatro, a paixão pela música bateu mais alto. Em fins dos anos 60, o disco de estreia do grupo The Doors converteu-o ao rock — até então, ele só ouvia jazz, de Billie Holiday e Frank Sinatra a Miles Davis, e artistas brasileiros como Elizeth Cardoso e João Gilberto, paixões que a acompanharam até o fim — e, aos poucos, Ezequiel trocou o palco pelas redações, virando crítico de música do recém-criado “Jornal da Tarde” (então o veículo vespertino do “Estado de São Paulo”). Em entrevista ao GLOBO, ao completar 60 anos, Ezequiel Neves relembrou, com sua habitual sinceridade, essa passagem: — Tomei um ácido lisérgico e descobri que, se eu não conseguia ser eu mesmo, não tinha porquê tentar ser outros personagens. A experiência aconteceu em 1969, ainda tentei ficar no palco até 1970, quando fui para Londres fazer teatro. Foram três meses de desbunde. Na volta, ainda fiz “A última peça”, de José Vicente. Um espetáculo totalmente anárquico, todo mundo fumava maconha e tomava ácido. Para mim, foi realmente a última peça.
Em 1971, nova mudança.
Ezequiel aceitou o convite de Luiz Carlos Maciel e veio para o Rio com a missão de co-editar a versão brasileira, e pirata (sem licença dos donos nos Estados Unidos) da revista “Rolling Stone”, que durou um ano. Em seguida, ao lado de Ana Maria Bahiana e Tárik de Souza, criou a revista “Rock: A história e a glória” (que, em 1976, daria lugar ao “Jornal de Música”). É desse período os pseudônimos Zeca Jagger (homenagem ao seu maior ídolo, Mick Jagger, dos Rolling Stones), Zeca Zimmerman (este, o sobrenome de batismo de Bob Dylan) e Angela Dust.
Incansável festeiro, sempre a mil por hora, Ezequiel conviveu nos últimos cinco anos com um tumor benigno no cérebro, enfisema e cirrose.
Sem filhos, deixa duas irmãs em Belo Horizonte, sobrinhos e sobrinhos netos. E muitos órfãos entre os amantes do rock no Brasil.
O Globo, 8 de julho de 2010
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