July 26, 2025

O sonho americano em frangalhos

 


 MARTHA BATALHA,

Caro leitor,
Você não tem ideia de como
a coisa está braba por aqui. Eu
sei, você acompanha as notícias
e pode inclusive dizer exatamente
isso: as coisas nos Estados Unidos
estão brabas e tal. Mas braba é uma palavra
genérica, incapaz de pontuar o
quanto, o como e o para quem, o até
quando e o porquê. Os fatos, o clima, as
consequências, a rápida erosão de um
sistema de governo democrático.
Por isso escrevo esta carta. Para definir,
no melhor do meu entendimento e
da minha experiência, o que eu quero
dizer com “brabo”. Para dar forma e conteúdo
ao governo Trump.


Tem sido brutal, e o grupo ao qual pertenço
com orgulho – o dos perdedores –
se vê em constante choque. Há também
muita revolta, negação, impotência, desespero,
rancor, frustração. Mas tem algo
só meu e seu, como brasileiros, se você
estivesse aqui. É o sentimento de déjà vu.
Vem desde as conversas com meus pais,
quando eu era menina, durante os anos da
ditadura. Um casal, de 30 e poucos anos,
contando para a filha o que era fugir da
polícia na Cinelândia, não poder se manifestar
ou votar para presidente. Eu entendi
o período como ausência do que deveria
ter sido, como algo precioso roubado aos
meus pais. A injustiça feita à geração deles
se tornou a minha. Ela abriu minha percepção
para a longa cauda de consequências
de um governo autoritário: a alienação
do povo, a mediocridade dos líderes, corrupção,
violência, desigualdade.


O que está acontecendo aqui é parecido.
Trump governa ignorando a Constituição,
esvaziando o governo, aterrorizando
pessoas e atacando instituições.


Aquele “E daí?” do Bolsonaro é o mantra
diário dele. Os americanos, tão competentes
no uso da língua, tão pragmáticos
e sempre indo ao ponto, escolhem chamar
as medidas autoritárias e ilegais de
“crise constitucional”. Uma crise é temporária
e pode ser resolvida. Passa a ideia
de caos e instabilidade, mas também de
limite, movimento e esperança. Já totalitarismo,
autocracia, fascismo sugerem
algo maior em escopo e duração. Algo
que almeja o definitivo, e mesmo que
não seja para sempre é poderoso o suficiente
para transformar um país.


Esse “brabo”, se dando aqui, vai perdurar
por dois anos (até as eleições para o
Congresso), ou quatro (eleições para presidente),
ou mais. É terrível e também fascinante,
e me vejo acompanhando tudo de
um lugar estranho. Como se estivesse na
plateia de um show pirotécnico encenado
por sádicos. Vejo como queimam os mais
vulneráveis. Por enquanto nada me aconteceu,
mas esses sádicos controlam o fogo,
e se o teatro queimar eu estou dentro.
Comecei a escrever este texto em janeiro,
mentalmente, só para mim. Lendo as
notícias, eu pensava: isso não é normal,
nem aquilo, nem isso. Era o início de uma
nova era de normalização do impensável.


Em menos de seis meses, os Estados Unidos
deixaram de ser a terra da liberdade,
tolerância e democracia para se tornar um
lugar de censura, opressão, caos e terror.
Entenda, portanto, essa carta como
um fio de Ariadne: a tentativa de abarcar
o que vem acontecendo desde janeiro
até junho, quando me vi num lugar, a
grande Los Angeles, com toque de recolher
e tropas no Centro da cidade. Com
gente sendo presa em seus trabalhos de
lavadores de carro ou de vendedores
de fruta nas esquinas. Com estudantes e
familiares com medo de serem detidos
nas cerimônias de graduação.
Brabíssimo, caro leitor. E só se passaram
seis meses.


JANEIRO


Nos primeiros dias do ano, eu me
juntei a milhões de americanos e
evitei me informar – a audiência da
œžž caiu 47% depois das eleições para
presidente, em novembro passado. Ignoro
o jornal impresso e bloqueio os sites de
notícia. O povo quer esse homem? Pois
então eles se merecem. Donald Trump
ganhou no voto popular, no Colégio
Eleitoral, tem maioria no Senado, no
Congresso e na Suprema Corte.


A única menção ao governo que me é
imposta está no e-mail do diretor da escola
de meus filhos, reconhecendo a mudança
política e assegurando a proteção a estudantes
sem documentos. Nas entrelinhas:
não importa se a criança descende dos
fundadores do país ou se atravessou na semana
passada a fronteira, cruzando o deserto
a partir da cidade mexicana Tijuana.
A escola promete protegê-los e ensinar.


É um e-mail esperado, considerando
que vivo em Santa Mônica, na Califórnia,
uma das bolhas democráticas dos Estados
Unidos. Imagine o mapa americano com
duas faixas azuis: uma no litoral do Oceano
Pacífico, outra do lado oposto, ao Norte,
na costa do Atlântico. Imagine o centro
do país em vermelho, com algumas rajadas
de azul sobre os centros urbanos: Chicago,
Denver, Atlanta, Filadélfia. Eu vivo
na faixa azul (onde predomina o eleitorado
democrata). Mas bastam três horas de
viagem rumo ao interior e estou em outra
América, a vermelha (do eleitorado republicano),
menos miscigenada e mais religiosa,
com lojas de armas e cartazes
pró-Trump. Parece um estereótipo, e ali,
de fato, eu me sinto em um cenário de
exageros, a ponto da descrença. Eu me
percebo num lugar que não me absorve,
onde destoo pelo sotaque e a aparência.
Era essa outra América – e o projeto de
país que essa parte ambiciona – que eu
evitava ao ignorar as notícias.


Durou menos de uma semana. No dia
7 de janeiro, minha filha ligou da escola
para me contar sobre um incêndio próximo.
A Santa Monica High School fica a
seis quadras da praia, num planalto, em
uma área de prédios baixos. A vista do terceiro
andar do colégio alcança até a cadeia
de montanhas por onde sobem as construções
de Malibu, Pacific Palisades e
Brentwood. À uma da tarde daquela terçafeira,
os alunos trocaram as mesas de estudo
pela vista privilegiada de um incêndio
histórico. Pelos próximos dias, cerca de
230 milhões de mª, uma área equivalente
à de Washington ¬.œ. queimaria na Região
Metropolitana de Los Angeles.


Peguei meus dois filhos na escola e nos
trancamos em casa, acompanhando a situação
pela internet e a tevê. Ventos de até
160 km/h alimentavam as chamas. No site
da prefeitura, um mapa estendia a área de
evacuação até poucas quadras de onde
moramos. Fizemos e desfizemos as malas
várias vezes, conforme o vento soprava,
com mais ou menos força. Foram dias de
medo e expectativa, noites de sono inquieto,
madrugadas em que soavam os alarmes
públicos nos celulares, alertando para
a evacuação. Sirenes de bombeiros, polícia
e ambulância, o cheiro denso das coisas
queimadas, residências próximas
saqueadas, notícias de amigos que perderam
tudo no fogo, informações sobre
mortes. Quando o incêndio foi contido,
metade da área em que eu circulo – os
parques, as trilhas nas montanhas, cafés e
restaurantes em Malibu, Pacific Palisades
e Brentwood – tinha deixado de existir.


Em meio à tragédia coletiva, Trump
toma posse. Em questão de dias, são
apagadas 8 mil páginas de sites do governo
com programas educativos, benefícios
para veteranos, pesquisas científicas e
informações sobre vacinas. São cancelados
programas de empréstimos e bolsas de
estudos. Trump culpa os democratas pelos
incêndios na Califórnia e ameaça cortar a
ajuda financeira. Perdoa os envolvidos no
ataque ao Capitólio em 6 de janeiro de
2021. Cancela o programa de retirada das
bombas inativas no solo de países como
Iraque e Ucrânia. Também cancela voos
para refugiados aprovados pelo governo
anterior, de Joe Biden. Sugere realocar a
população de Gaza no Egito e na Jordânia.
Começa a prender imigrantes e fala em
retomar o controle do Canal do Panamá.
Sugere comprar a Groenlândia (que nunca
esteve à venda) e decide mudar o nome
do Golfo do México (que não pertence
aos Estados Unidos) para Golfo da América.
Exige a transferência de mulheres trans
para prisões de homens e dá ao grupo de
Elon Musk acesso ao sistema de pagamentos
do governo. Sugere que vai lutar por
um terceiro mandato (o que não é possível
nos termos atuais da lei americana).
Trump surpreendeu pela rapidez das
mudanças, a crueldade das medidas e o
desprezo pelas instituições. O início de
seu governo foi ainda mais traumático
para os californianos democratas, afetados
pelos incêndios.


Steve Bannon, um dos ideólogos do
primeiro governo Trump e ainda influente
na atual administração, afirmou
que o papel de Trump é desconstruir o
governo. Ou como ensinou Maquiavel:
todo o mal deve ser feito de uma só vez.
A sensação é de caos, mas existe método
na destruição.


Caro leitor, talvez você tenha ouvido
falar do Mandato para liderança – A promessa
conservadora – Projeto 2025: um
documento de mais de novecentas páginas
feito por cerca de 54 organizações
de direita e 304 conservadores. Foi publicado
em 2023 com o intuito de guiar
as medidas do novo governo de Trump.
O projeto propõe a total reconstrução
ideológica dos Estados Unidos, baseada
na moral conservadora cristã.


Algumas recomendações: reduzir
drasticamente o número de servidores
públicos federais, incluindo a demissão
em massa daqueles que não se alinham
com o governo; concentrar mais poder
no presidente; cancelar programas que
garantam mais diversidade no governo
(seja de raça, gênero ou sexualidade);
impedir que as escolas ensinem que o
racismo é parte da base histórica dos Estados
Unidos; usar fundos públicos para
financiar escolas privadas cristãs; restringir
o acesso a certos contraceptivos
como a pílula do dia seguinte; reformar
e cortar pessoal do ¸¹º (a principal agência
que investiga crimes financeiros, de
corrupção, de ódio e de terrorismo).
Dezenas de colaboradores do Projeto
2025 estão agora na administração
do Estado. Dois terços das primeiras
ordens de Trump se assemelham a essas
recomendações.


FEVEREIRO


Trump anunciou a venda de centenas
de prédios do governo. Cancelou
83% dos programas da Usaid, a
agência americana que presta ajuda
humanitária em vários países. Se opôs
a uma resolução das Nações Unidas
exigindo a retirada de tropas russas da
Ucrânia e culpou Zelensky pela guerra.
Demitiu milhares de funcionários públicos
do Pentágono, da receita federal, do
Usaid e outros órgãos. Impediu repórteres
da agência de notícias Associated
Press de acompanhar eventos na Casa
Branca. Anunciou cortes de 900 milhões
de dólares do Departamento de
Educação. O próprio perfil oficial da
Casa Branca postou no X uma imagem
de Trump com uma coroa e os dizeres
Long live the king (vida longa ao rei).
“A verdadeira oposição é a mídia”,
disse Bannon, durante o primeiro mandato
de Trump. “A forma de lidar com
ela é entupindo a zona de merda.”


Não é bom viver num lugar em que a
ideologia de Bannon se realiza, caro leitor.
Onde acontece tanta coisa de anormal
que fica impossível elaborar o raciocínio.
Comecei a ler as notícias em busca de pistas.
Quando e como um sistema democrático
se desfaz? Se há um golpe de Estado,
com tanques na rua, prisões e mortes, temos
claro que algo aconteceu. Mas como
saber da ruína da democracia quando o
cotidiano continua intocado e a violência
não nos atinge diretamente? Quando ninguém
nos priva dos confortos da classe
média ou da possibilidade de criticar o
governo nas redes sociais?


Ouço os primeiros rumores de prisões
de imigrantes em seus locais de trabalho.
Vou à Home Depot, loja de material
de construção próxima de onde eu
moro, e percebo a ausência de homens
no estacionamento. Era comum vê-los
sentados no meio-fio ou encostados na
porta de caminhões velhos, à espera de
quem lhes oferecesse um dia de trabalho.


Também desapareceram as mulheres latinas
que vendiam fruta nas esquinas da
cidade. Era uma imagem típica de Los
Angeles: dobrar uma rua e deparar com
o carrinho cheio de fatias de abacaxi,
manga, laranja e melancia para serem
vendidas em um copo. Ao lado do carrinho,
a mulher de origem mexicana, com
longos cabelos negros sentada em um
banco, à espera de clientes.


Essas pessoas são agora inimigas do
Estado. O site da Casa Branca afirma estar
protegendo o país de uma invasão e
define imigrantes sem documentos como
“forasteiros”. Diz o site que esses imigrantes
apresentam “ameaças significativ

contra a segurança nacional e a estabilidade
pública, cometendo atos vis contra
americanos inocentes. Outros se engajam
em atividades hostis, incluindo espionagem,
espionagem econômica e preparação
para atividades de terrorismo”.


Eu moro nos Estados Unidos há dezessete
anos. Vim por questões pessoais
e me mantive legal no país primeiro com
o visto de estudante e depois pelo trabalho
em uma editora em Manhattan. As
babás que permitiram que eu trabalhasse
eram brasileiras. Pequenos consertos na
casa eram feitos por latinos. Os médicos
que me atenderam eram judeus, coreanos,
chineses e do Leste Europeu. As
enfermeiras, na maioria, das Filipinas.


Ao sair para jantar com meu marido (de
família cubana), falávamos espanhol
com garçons mexicanos. Taxistas e motoristas
de Uber poderiam ser do Afeganistão,
Iraque, Colômbia, Índia, Congo,
Bangladesh. Aluguei o apartamento de
um italiano, tive vizinhos do Japão, da
Espanha e do Laos, fiz a capa para o sofá
com um vietnamita. Dezenas de vezes,
falando com estranhos e percebendo o
sotaque, perguntávamos um ao outro de
onde vínhamos. Mais de uma vez descobri
estar falando com um brasileiro.


Em 2017, eu me tornei cidadã junto
com outras 6,3 mil pessoas de 130 países
no Centro de Convenções de Los Angeles.
Foi uma grande festa, com algumas
mulheres de vestido longo carregando
buquê de flores, homens de terno e gravata,
famílias reunidas para assistir e celebrar.
Nunca estive em um lugar tão
diverso e cheio de otimismo e esperança.
Nunca ouvi tantas línguas e percebi tantas
cores de pele. Para muitos a cidadania
era como uma certidão de renascimento.
Um novo começo, oficial, longe de seus
países destruídos por guerras, miséria,
ditaduras, extremismo religioso.


Entendi naquele dia que ser americana
é habitar um lugar de todos. Que
eu jamais deixaria de ser brasileira tornando-
me americana porque esse não
é um país que se faz por exclusão, mas
por inclusão e tolerância. A cerimônia
foi, para a maioria, a realização dos versos
de Emma Lazarus, impressos no
pedestal da Estátua da Liberdade:
Dá-me os teus cansados,
os teus pobres,
as tuas massas aglomeradas que
anseiam por respirar livres,
os rejeitados miseráveis da tua costa
fervilhante.
Envia-me estes, os sem-teto sacudidos
pela tempestade.
Levanto minha lâmpada ao lado da
porta dourada!


Emma Lazarus, por sinal, era americana
de origem judaica sefardita, descendente
de imigrantes de Portugal que
viveram no Brasil. A família foi para
Manhattan fugindo da perseguição religiosa
no Recife.


Deportações sempre existiram. O governo
George W. Bush expulsou cerca de
10 milhões de imigrantes ilegais, entre
deportações e retornos voluntários (quando
a pessoa é detida na fronteira, por exemplo,
e volta dali). O governo Bill Clinton:
12,3 milhões. O governo Barack Obama:
5,2 milhões. Mas nenhum governo antes
definiu o imigrante ilegal como criminoso,
separou famílias ou impediu julgamento
antes da deportação. Todos respeitaram
o “jeitinho americano” de usar mão de
obra barata e ilegal para mover a economia.


Os imigrantes são, sobretudo, mãos:
lavando, passando, cozinhando, cuidando,
consertando, plantando, dirigindo,
embrulhando, entregando, limpando,
construindo. Não existe um americano
que não tenha se beneficiado desse arranjo.
Se o imigrante for ativo e desembaraçado,

se trabalhar de dia e de noite, se
jamais ficar doente ou sofrer acidente, ele
vai tocando a vida na clandestinidade até
conseguir documentos.


O que o governo Trump está fazendo
não é proteger as bordas ou deportar criminosos.
Não é retirar uma camada de
forasteiros do país, mas retirar do país
uma parte dele próprio. É ameaçar a
identidade e a economia americana.


MARÇO


No início do mês, o governo define
as palavras e expressões que devem
ser banidas, evitadas e limitadas
por agências federais, documentos,
sites, programas de saúde pública e pedidos
de bolsa de pesquisa. São mais de
350 palavras, como: antirracismo, ativismo,
aborto, negro, energia limpa, crise
climática, apropriação cultural, deficiências,
discriminação, diversidade,
igualdade, feminismo, inclusão, diversidade
de gênero, discurso de ódio, minoria
hispânica, desigualdades, injustiça,
ÀÁ¹ÂúÄÅž+, marginalizado, saúde
mental, minorias, multicultural, político,
poluição, prostituta, racismo, segregação,
preferências sexuais, justiça
social, transgênero, vacinas, vítima, populações
vulneráveis, mulher, mulheres.


A compilação é praticamente um serviço
público, ao produzir pelo negativo
o perfil do governo: não se pode falar de
imigrantes, latinos, negros e mulheres,
mas se pode falar de homens brancos.
Não se pode mencionar energia limpa,
mas petróleo pode. Não se pode falar de
justiça social, mas de armamentos pode.
É como se todas as palavras da língua
inglesa formassem um grande bloco de
mármore. O bloco está sendo esculpido
por uma elite com rígida visão do produto
final. A cada investida no mármore as
palavras que divergem dessa ideia se desprendem.
No fim do projeto, e rodeado
por lascas caídas ao chão, surgirá a escultura
do Homem Branco Hétero. Então
alguém chega, varre a sala, e o que foi
eliminado desaparece.


Palavras dão sentido ao mundo, acrescentam
nuances, são a base de pensamentos
complexos. Quando limitadas, o
próprio entendimento do entorno se limita,
e o debate público empobrece.
A palavra que melhor define o mês é
“expurgar”. Descubro que o Pentágono
deletou de seu site o perfil de funcionárias
notáveis. O cemitério militar de
Arlington apagou as páginas sobre mulheres
veteranas. Remover estes perfis é
afirmar que mulheres profissionais brilhantes
nunca existiram. Nas palavras
da escritora Anna Funder: “O milagre
do homem e suas obras-primas se dá
fazendo as mulheres desaparecerem.”


O salário mínimo dos servidores públicos
federais foi reduzido de 17,75 dólares
para 13,30 dólares a hora. O número
de funcionários públicos demitidos chegou
a 25 mil (quase a totalidade foi recontratada,
por ordem judicial). Como
punição ao que define como manifestações
antissemitas, o governo cancelou
400 milhões de dólares que seriam destinados
à Universidade Columbia e prendeu
os primeiros estudantes estrangeiros
por manifestações pró-Palestina.


Um dos programas mais degradantes
da tevê americana é Neighbourhood wars
(Guerra entre vizinhos, transmitido por
Hulu e outras plataformas de streaming).
Nele pessoas se estapeiam, furam pneus
e quebram os vidros dos carros, se atacam
com mangueiras, são apartadas
pela polícia e ameaçam matar uns aos
outros. Vi um menino se aproximar de
uma casa e chicotear a porta. O dono da
casa (negro) vai reclamar com o vizinho
e pai do menino (branco). Os dois trocam
ameaças de morte. Corta para outro
caso e a imagem de uma cerca sendo
erguida entre duas casas. A vizinha que
não pagou pela cerca acusa os trabalhadores
de fazerem sujeira. Chega a outra
vizinha e diz que tem o direito de fazer
a cerca. A que reclama acusa os trabalhadores
de olharem para ela quando tomava
Sol de biquíni. “Você não deve falar
assim”, diz uma. “Eu falo como bem
entendo”, diz a outra. “Baixe a voz”, grita
uma. “Não baixo”, afirma a outra. “Esta
é a porra da América! E eu sou branca!”


Descobri o programa por acaso, zapeando
canais. Fiquei fascinada pela
baixaria, esperando o pior.
Algo semelhante está acontecendo
quando acompanho as notícias do governo.


Eu me vejo ansiando pela próxima
manchete que irá me chocar. O desejo
vem de um lugar em mim que se acostumou
com o espetáculo e anseia para
que seja intenso. Eu me percebo incrédula
e provocativa, com a voz do que há
de pior em mim procurando o pior dos
fatos. “Eu quero ver se você é capaz de
me chocar”, diz a voz.
Da tevê trash à alta literatura. O escritor
tcheco Bohumil Hrabal (1914-1997)
descreveu um sentimento parecido no
livro Eu servi o rei da Inglaterra. O protagonista,
passando por uma área destruída
pela Segunda Guerra Mundial, se
vê admirando as ruínas:


Eu estava fascinado em observar uma
destruição que também me aterrorizava.
Quando a desgraça ocorre, quem pode
se aproxima e olha fixo para o machado
no crânio, para o corpo da mulher sob o
bonde. Eu não tentei fugir, e estava inclusive
satisfeito, e percebi que a desgraça,
o sofrimento e as atrocidades não
eram suficientes para mim. Eu poderia
ter mais, não apenas eu, mas o mundo.


Trump não desaponta. Para mim, a
imagem representativa do que houve de
mais baixo até agora é a de imigrantes sendo
extraditados para uma prisão de segurança
máxima em El Salvador. Acusados
de pertencer a uma gangue, os 238 homens
foram enviados para lá pelo governo.
Não se sabe muito sobre eles, nem
mesmo se todos são criminosos. Alguns
estavam no país sem documentação. Outros
tinham dado entrada ao pedido de
asilo político. A prisão para onde foram
em El Salvador é, segundo autoridades
locais, um lugar de onde as pessoas não
saem mais. Presos dormem em camas comunitárias
sem lençol nem travesseiro, as
luzes das celas ficam acesas dia e noite e a
entrada de ativistas de direitos humanos é
proibida. Juízes pediram a volta dos presos
aos Estados Unidos, para que fossem julgados
conforme as leis americanas. O governo
Trump ignorou. Os juízes insistiram.
O governo Trump: e daí? A imprensa: estamos
vivendo uma crise constitucional.


Kristi Noem, secretária de Segurança
Interna, visitou a prisão em El Salvador.
Em uma imagem, ela aparece na
frente de uma cela onde estão apinhados
dezenas de homens de pele escura
e cabeça raspada, cabisbaixos. Noem
tem os cabelos castanhos e soltos, veste
boné azul e uma camiseta branca colada
ao corpo. No pulso esquerdo, um
relógio Rolex dourado.


Roupas passam mensagens. A mensagem
que Noem escolheu passar naquele
dia foi: peitos. Rosto esteticamente impecável
e sem expressão, maquiagem
pesada, acentuando a boca e os olhos, a
roupa exaltando as partes do corpo que
alimentam o desejo masculino. É uma
imagem com dois pontos focais destoantes,
e eu me percebo alternando o olhar
entre os presos ao fundo e a Barbie à
frente. O feminino de Noem é uma traição
ao feminismo, que por conceito significa
justiça, empatia e igualdade.


*
Em Santa Mônica, o céu agora está
azul, as palmeiras se exibem exuberantes,
e não se agitam como caniços pardos,
como nos dias de vento e fogo. Praia com
gente caminhando, correndo e andando
de bicicleta. Turistas no píer, lojas e bares
cheios. As flores brancas dos pés de jasmim
indicam que a primavera está próxima.
Uma vez por ano, as escolas públicas
abrem as portas para a visita dos pais. Vamos
de sala em sala, para conversar com
os professores e nos inteirarmos sobre o
currículo. Atravesso o gramado e entro
no prédio retangular da escola de ensino
médio. No corredor, passo por um painel
de 2 metros de largura, intitulado Escola
Segura, com informações sobre escolhas
sexuais, indicações de livros de conteúdo
ÀÁ¹ÂúÄÅž+ e números para os estudantes
ligarem se precisarem conversar sobre
sua saúde mental. O painel seguinte tem
o título Mulheres Fenomenais e traz fotos
e biografias de Frida Kahlo, da excandidata
presidencial Kamala Harris,
da juíza da Suprema Corte Sonia Sotomayor,
da astronauta Crista McAuliffe.


Entro na sala onde meu filho de 13 anos
tem aulas de história e inglês. Todas as
paredes estão cobertas por cartazes e postits.
Um dos cartazes é sobre microempréstimos
para empreendedores de países
pobres. Vejo a foto de uma mulher,
Aishakul, do Cazaquistão, que precisa de
um empréstimo de 25 dólares para melhorar
as condições de vida de suas quinze
vacas. E a foto de Hassan, de Uganda,
que pede 25 dólares para comprar fertilizantes
para sua plantação de café.


Em outra parede, em pequenos retângulos,
estão escritos os nomes de pessoas
que fazem ou fizeram a diferença (upstanders)
em suas comunidades. O destaque
daquela semana é Patsy Mink (1927-2002),
a primeira mulher de origem asiática a ser
eleita para o Congresso, conhecida por
fazer avançar os direitos das mulheres. Em
torno do nome dela, as perguntas: O que
ela tentou conquistar? Como agiu? Que
palavras poderosas e ideias divulgou? Ainda
precisamos de ativismo nessa área? Em
um quadro, há o desenho de letras e mosaicos
árabes feitos pelos alunos, além de
fotos da ativista afro-americana Rosa
Parks (1913-2005), da ativista paquistanesa
Malala Yousafzai (nascida em 1997),
do líder indiano Mahatma Gandhi (1869-
1948) e do promotor Benjamin Ferencz
(1920-2023), procurador dos Estados Unidos
em um dos processos de Nuremberg
que julgaram os crimes nazistas.


Sobre as mesas de cada aluno estava
o poema que fizeram, De onde eu sou,
inspirado em trabalho homônimo da
poeta George Ella Lyon. Alguns versos
feitos pelas crianças:
Eu sou da Califórnia e do México
Eu sou da Alemanha e França
Eu sou do Brasil e Porto Rico
Eu venho da minha avó, ainda conosco,
sobrevivente do Holocausto
Eu sou feita de tortilhas e tamales
Eu venho do meu avô no Egito
Eu sou da Croácia e do Chile
Eu sou do Japão e de Nova York
Eu venho da Itália, do Colorado e da
Argentina
Eu venho de mi abuelita, do México
e de Seattle.


Eu visito a escola todo ano. Mas nunca
o conteúdo me pareceu tão nítido,
tão bem delineado, pelo contraste que
cria com o que está acontecendo no
país. Pela primeira vez, percebi a escola
como um lugar de resistência, onde se
constrói o que o governo quer apagar.
Se por um lado o contraste é bem-vindo,
por outro indica que aquilo que eu
considerava natural (conhecimento, direitos
humanos e civis, pensamento crítico,
diversidade) é agora subversivo.


ABRIL


A mulher de origem mexicana que
limpa nossa casa uma vez ao mês
conta que seu vizinho foi deportado.
Amigos com green card evitam postar
sobre política, por medo de deportação.
Na revista The New Yorker, um texto explica
sobre como se proteger em regimes
totalitários e como resistir a eles. Dedicada
ao jornalismo, à alta literatura e
aos cartuns sofisticados, a revista sugere
aos leitores usar mensagens criptografadas
e apagar o conteúdo das redes sociais.


Vivo agora em um país onde estudantes
estrangeiros são detidos e têm medo
de se manifestar, onde imigrantes são presos
enquanto procuram trabalho, onde
pessoas acusadas de pertencer a uma gangue
podem desaparecer, sem julgamento,

numa prisão na América Central. Onde
o presidente ameaça escritórios de advocacia,
universidades e empresas que
mantêm programas que promovem a
igualdade de oportunidades. Onde cientistas
perdem recursos para pesquisa e
planejam se mudar para outros países.
Onde o presidente processa veículos de
imprensa, exigindo bilhões. Onde os preços
variam conforme a tarifa imposta –
ou não – pelo governo. Onde legisladores
trabalham para cortar serviços de saúde
da população mais pobre e de pessoas
acima de 65 anos, para que milionários
paguem menos impostos. Onde a demissão
de fiscais, o fechamento de órgãos
reguladores e a escolha de aliados para
altos cargos públicos possibilitam a manutenção
do governo mais corrupto da história
americana – a fortuna da família de
Trump aumentou 3 bilhões de dólares
desde janeiro, faturando em acordos internacionais
e criptomoedas. Vivo em um
país onde o secretário de Saúde, Robert
Kennedy Jr., acredita que vacinas causam
autismo, que produtos químicos na água
podem alterar o sexo das crianças e que a
Aids não é causada pelo vírus ɺÊ, mas
por poppers, droga usada para aumentar
o prazer sexual. Onde se discute a possibilidade
de anular o habeas corpus.


É esse o “brabo” a que me referia, leitor.


*
No feriado da Páscoa, viajei para Nova
York. É a terra de Trump. Foi das escadas
da Trump Tower, na Quinta Avenida, que
ele desceu em 2015 para a primeira aparição
como candidato a presidente. Em
abril passado, em uma manhã de sextafeira,
o prédio estava protegido por grades
e cercado por seguranças. Um homem de
terno com uma máscara de Trump andava
de um lado para o outro em frente à
entrada, movimentando-se com gestos
histriônicos. Turistas passavam perto, sem
dar bola. A poucos metros, em mesas improvisadas
na calçada, imigrantes africanos
vendiam bonés com o slogan dos
trumpistas: Make America Great Again.
Lojas de suvenires exibiam camisas com
a famosa foto feita durante o atentado a
Trump, em que ele aparece com o sangue
escorrendo pela orelha ferida. Na Union
Square, uma senhora vestida de rosa empunhava
solitária um cartaz em favor da
democracia. As bancas e lojas de conveniência
que restam na cidade ofereciam
jornais com manchetes sobre as tarifas do
presidente e a queda alarmante do mercado
de ações. Os muros do East Village
estavam cobertos por cartazes com a foto
de Mahmoud Khalil, estudante da Universidade
Columbia preso pela polícia
migratória devido a protestos pró-Palestina.
Junto à foto, estava a carta que ele escreveu
da prisão. Um trecho diz:


Escrevo para você de uma unidade de
detenção na Louisiana, onde acordo em
manhãs frias e passo longos dias testemunhando
as injustiças silenciosas conem

tra pessoas privadas das proteções da lei.
[...] O governo Trump está me perseguindo
como parte de uma estratégia mais
ampla para suprimir a dissidência. Pessoas
com visto, residentes permanentes e
até cidadãos serão perseguidos por suas
crenças políticas. [...] O que está em jogo
não são apenas nossas vozes, mas as liberdades
civis fundamentais de todos.
Para onde quer que eu olhasse em
Nova York, via política. E entendi que
essa atitude não seria passageira, mas
uma nova forma, atenta e apreensiva de
viver no país.


MAIO


É preciso coragem para dar nome ao
irreversível. Morte, divórcio, câncer,
partida, ditadura, fascismo. A palavra
esclarece e define, dá forma e sentido
ao que antes era conveniente e seguro
ignorar, demanda entendimento e ação.


Agora se está falando menos em “crise
constitucional”. A palavra usada mais
abertamente é “fascismo”. O New York
Times publica um vídeo com Marci
Shore, Timothy Snyder e Jason Stanley,
todos ex-professores da Universidade
Yale (hoje na Universidade de Toronto),
associando o momento atual dos Estados
Unidos à Alemanha de Hitler e à
repressão na União Soviética. Eles sugerem
estabelecer centros de resistência
e organizar a população. Comparam
os Estados Unidos com o Titanic, o transatlântico
que todos asseguravam jamais
naufragar. Usam palavras exóticas aos
americanos e agora relevantes. Uma delas
é “expurgo” (de imigrantes e estudantes
estrangeiros). Outra é proizvol (do
russo): o governo pode fazer o que quiser
com você, e não há formas de se defender.
Em um momento, Jason Stanley diz:
“Você sabe que está vivendo numa sociedade
fascista quando pensa constantemente
nas razões pelas quais está seguro.”
Escrever este artigo me ameaça?
Posts no Instagram me comprometem?
Se eu viajar para o exterior terei permissão
para voltar?


A erosão da democracia prossegue.
O prefeito de Newark, em Nova Jersey, é
preso em um protesto contra a polícia
migratória. A bibliotecária do Congresso,
uma mulher negra, é demitida, acusada
de dar “livros inapropriados para crianças”.
Oklahoma muda o currículo de
história do ensino médio, exigindo que
se ensine uma fake news: a de que o Partido
Democrata roubou as eleições de
2020. Trump aceita um jato de luxo do
Catar, presente avaliado em 400 milhões
de dólares, para usar durante o período
na Presidência e depois transferir para
seu uso particular. O envio de 32 imigrantes
para a prisão em Guantánamo,
cheio de simbolismo, custa aos cofres
públicos 21 milhões de dólares. A canção
Heil Hitler, de Kanye West, é lançada no
80° aniversário da derrota dos alemães
na Segunda Guerra e ouvida milhões
de vezes nas plataformas X e YouTube.
Trump quer literalmente tirar os brinquedos
das crianças, ameaçando impor
à indústria Mattel, fabricante da Barbie,
uma tarifa de 100%. Kristi Noem, a secretária
de Segurança Interna, planeja
um reality show com imigrantes competindo
pela cidadania americana. Quando
é indagada sobre o que é habeas
corpus, ela responde que se trata do direito
constitucional do presidente de
remover pessoas do país.


*
Faço outra viagem, agora com minha
filha de 15 anos, para o Parque Nacional
da Sequoia, no centro da Califórnia e
ao Sul da Sierra Nevada. Sequoias são

as maiores árvores do mundo, com até
85 metros de altura e 10 metros de diâmetro,
o equivalente a um prédio de
28 andares, e cuja circunferência tem o
tamanho de um pequeno estúdio. São
criaturas maciças, resilientes e anciãs.


Chegam a ter mais de 3 mil anos e exibem
as marcas da permanência nos troncos
corroídos e calcificados por incêndios.
Perto de uma sequoia, somos como
bonequinhos de Lego. Nossos problemas
e nossa estada na Terra se tornam
pequenos. É o desafio da vida inteira: o
balanço entre a consciência de ser bem
pouco e a urgência de, com este pouco,
ser relevante para nossa insignificante e
extraordinária comunidade de legos.


Cai neve no primeiro dia, deixando
o entorno bem quieto e em paz. Há pássaros
e corças, cachoeiras e riachos, o
verde-escuro do musgo cobrindo pedras,
variações de negro, marrom e cinza
em árvores e troncos tombados e
escurecidos por incêndios. Ao menos
ali e por alguns dias eu pensei que a
política seria tão insignificante para
mim quanto eu sou para uma sequoia.
No segundo dia, vamos a uma cidade
próxima encher o tanque do carro. Vejo
o anúncio de uma feira de antiguidades
no pátio de uma igreja e decido parar.


As mesas enfileiradas exibem ferramentas
e eletrodomésticos usados, montes
de roupas surradas e pilhas de livros, a
maioria de temas religiosos. Num estande
ao canto, dois homens de pele e olhos
claros, vestidos de jeans e camisa xadrez,
abordam os passantes. Um deles
entrega algo para minha filha.
É um feto.


Eu me aproximo. A mesa do estande
está coberta de fetos de borracha maleável,
com 2 cm de altura, a cabeça proporcionalmente
maior que o tronco e em
posição fetal, todos dentro de saquinhos
plásticos. É uma imagem sinistra. “É assim
que se parece um bebê de oito semanas”,
afirma um dos homens. “Já está todo
formado. É um ser humano como nós.”
Eu estava na outra América. Mais
branca, religiosa e conservadora. Visível
na aparência dos homens e na audácia
de usar a autoridade masculina para
influenciar a escolha reprodutiva de
uma adolescente.


Permanecemos alguns segundos em
silêncio. Eu e minha filha segurando o
feto de borracha de um lado, e os homens
em seu estande, do outro. Não havia diálogo,
não havia empatia ou entendimento.
Eu pertenço a um mundo em que o assédio
antiaborto de dois homens a uma adolescente
é uma violência. Eles pertencem
a um mundo onde ensinar a uma jovem
sobre métodos contraceptivos e direito
universal ao aborto significa violência.
Colocamos o feto no porta-luvas e
voltamos para casa. Aquela coisa macabra
dentro do saco plástico me incomodava.


Para tantas mulheres, o feto
representa uma vida mais preciosa que
a delas. Para mim, aquele objeto era o
símbolo do retrocesso, da misoginia e
do machismo, do controle alheio sobre
o corpo feminino, da coerção por meio
da ignorância, do medo e da culpa.
Junto ao feto havia um cartão da ОÁ
Heritage House ’76, descrevendo a evolução
do “bebê” (e não embrião), desde o
primeiro dia de concepção. Em seu site a
entidade diz que tem como missão “salvar
e transformar vidas, oferecendo ferramentas
e recursos essenciais para orientar os
indivíduos a fazer escolhas certas e conforme
a vontade de Deus”, além de promover
“uma mistura harmoniosa de verdade e
amor, moldando interações internas e externas,
enquanto nos esforçamos para causar
um impacto positivo no mundo”.


A escolha de palavras é vaga, os clichês
abundam, a mensagem é imprecisa e propositadamente
enfraquecida por generalizações.Como diz George Orwell, no
ensaio A política e a língua inglesa, pensar
e escrever com clareza é o primeiro passo
para um maior entendimento político:


A mistura do que é vago com a incompetência
é a marca mais evidente da [...]
escrita política. Assim que certos temas são
abordados, o concreto se dissolve no abstrato
e ninguém parece conseguir pensar em
expressões que não sejam clichês. A prosa
passa a ser composta menos por palavras
escolhidas em função de seu significado, e
mais por frases prontas encaixadas como
partes de um galinheiro pré-fabricado.


JUNHO

 
Viajo a trabalho por quinze dias para
a Europa. Quando volto, o país é
outro. Há mais militares no Centro
de Los Angeles do que os Estados
Unidos mantêm no Iraque e na Síria.
Trump enviou as tropas como resposta
à resistência de civis contra a prisão de
trabalhadores numa confecção de roupas.


A maior parte da manifestação foi
pacífica, mas houve também saques e
queima de carros. Imagens de destruição
são transmitidas a milhões nas redes,
servindo ao governo para justificar
o uso da força militar contra civis e dizer
que o caos reina na Califórnia.


Protestos e conflitos concentraramse
em cinco quarteirões da cidade, e
não impediram que a ópera Rigoletto
fosse apresentada a poucas quadras do
epicentro das manifestações ou que as
pessoas que trabalham no Centro mantivessem
sua rotina. No geral a cidade
permanece em paz, embora resistente
às investidas do Serviço de Imigração e
Alfândega (ºœÓ, na sigla em inglês).


Os protestos não acontecem apenas
em Los Angeles. Nas redes sociais, há
centenas de vídeos de civis tentando proteger
imigrantes em todo o país. Alguns
chegam a ser cômicos: moradores de uma
comunidade em San Diego, na Califórnia,
enfrentam as forças da repressão gritando
“Vergonha!” e vemos os policiais,
fardados ao estilo Robocop, voltarem
acuados para seus carros. Outros revelam
crueldade e covardia: homens armados
perseguem e capturam trabalhadores de
uma extensa plantação de morangos. Há

também os que se aproximam do terror
político: um candidato a prefeito de
Nova York é detido tentando proteger
um imigrante em um tribunal de Justiça;
o senador democrata Alex Padilla
(de pais mexicanos) é detido e algemado
apenas por fazer uma pergunta a Kristi
Noem, a secretária de Segurança Interna,
em uma coletiva de imprensa. É a erosão
da democracia, ele disse depois. “Se
um senador pode ser silenciado e detido
dessa forma, cidadãos comuns correm
um risco ainda maior.” O ex-presidente
Barack Obama se manifesta. “O que
estamos vendo agora não é compatível
com a democracia americana”, ele disse.
“É compatível com autocracias.”


Há muito mais resistência, caos, violência,
prisões. Muito mais medo e incerteza.
Quando passo por trabalhadores
num prédio em construção, pelos jardineiros
latinos nas suas picapes com ferramentas
enferrujadas na caçamba,
pelas faxineiras entrando em seus carros
velhos com vassouras e baldes, eu sei
que estão todos em perigo.


O governo Trump determinou que o
ºœÓ deve prender 3 mil pessoas por dia.
Imigrantes são detidos em clínicas de
saúde, pontos de ônibus, tribunais e escolas.
“Há famílias que pela primeira vez
têm algum de seus membros se formando
em uma high school [equivalente ao
ensino médio] e estão com medo de assistir
à cerimônia de formatura e serem
deportadas. Que país estamos nos tornando?”,
afirmou o superintendente das
escolas públicas de Los Angeles, Alberto
Carvalho, americano de origem portuguesa.


No jantar, minha filha comenta
que um carro com agentes do ºœÓ estava
rondando a sua escola. Meu marido e eu
nos olhamos, sem ideia de como reagir.


Chega um e-mail do diretor da escola,
explicando que a informação sobre o ºœÓ
não foi confirmada. Ele reconhece que
algumas famílias estão com medo de
participar da cerimônia de formatura e
tenta tranquilizá-las, afirmando que
agentes federais precisam de uma ordem
judicial para entrar na escola.


A lei garante que qualquer criança nos
Estados Unidos tem direito à educação,
independentemente de ser cidadã americana
ou não. A matrícula nas escolas
públicas é feita mediante o comprovante
de residência – se a criança mora na área
da escola, tem o direito de estudar ali.
Ao longo dos anos, meus filhos (que são
cidadãos americanos) estudaram com
crianças sem cidadania. Nunca foi um
problema para mim ou outros pais.
No dia seguinte, meu filho também
fala de policiais rondando a sua escola.


Comento com os pais de outras crianças
e ninguém sabe dizer se são agentes da
polícia migratória ou policiais municipais
(que estariam ali para proteger a escola
das investidas da polícia migratória).
É tudo confuso, imprevisível, ameaçador
e, principalmente, novo. Estudantes
de sete escolas públicas de Los Angeles
foram presos e deportados com suas famílias.
No parque perto de minha casa, babás
entram em pânico e fogem quando
percebem um homem filmando o local.


A cidade de Pasadena cancela as atividades
em praças públicas durante o verão,
temendo a presença do ºœÓ. Torcedores
brasileiros venderam seus ingressos para
o Mundial de Clubes (que acontece em
vários estádios americanos) por medo da
polícia migratória. O ºœÓ tentou entrar no
estacionamento do estádio de baseball do
Dodgers, em Los Angeles, e foi impedido.
Comunidades se organizam pelas
redes, com pessoas se oferecendo para
fazer compras para trabalhadores sem
documentos com medo de sair às ruas.


Uma plataforma colaborativa na internet,
chamada People over papers (Pessoas
em primeiro lugar), é alimentado
diariamente com informações de civis
sobre aparições do ºœÓ no país. Também
existe agora um aplicativo – ºœÓ
Block, que serve para avisar sobre onde
policiais são vistos. Mas não é fácil.
Agentes podem estar à paisana ou disfarçados
como policiais municipais.


Em Los Angeles, junho é o mês dos
jacarandás. Cinquenta mil pés florescem,
decorando a cidade com suas copas lilases.


Em um domingo, vou com meu filho
ao campus da Universidade da Califórnia
em Los Angeles (Ucla) para ver as árvores.
É um dos meus lugares preferidos na
cidade. Gramados extensos, prédios modernistas,
um parque de esculturas a
céu aberto pontuado por jacarandás.
Calhou de ser um dia de formatura e,
para chegar ao campus, passei por dezenas
de carros de polícia, que estavam ali
para proteger estudantes e familiares,
caso a polícia migratória aparecesse.
Esse é outro país. Ele não está nas
notícias, mas no que experimento.


*
Sábado, 14 de junho. Em Washington,
Trump se prepara para acompanhar
a parada militar que mandou fazer em
comemoração aos 250 anos do Exército
americano e de seu aniversário de 79 anos.


Pego um pedaço de cartolina dos trabalhos
escolares das crianças, me arranjo
com os pincéis e tintas e faço um cartaz,
preso a um pedaço de madeira, onde está
escrito: “Pense, Leia, Resista.” Às onze
da manhã, sigo para o Parque Palisades,
em frente à Praia de Santa Mônica,
onde acontece um dos 2 mil protestos
no país contra o governo Trump, organizados
pelo movimento Sem Reis.


Quando me aproximo, um policial em
um cavalo me diz que é proibido pedaço
de madeira na manifestação.
Eu me desculpo e começo a descolar
a madeira da cartolina. Alguém cutuca
o meu ombro. É uma senhora, também
com um cartaz: “Não precisa tirar a madeira.
Ele só estava sendo babaca.” Seguimos
as duas para o parque. Meia hora
depois, 3 mil pessoas estão reunidas ali,
a maioria branca e certamente com cidadania.
Muitas estão de rosto tapado.


A revista Wired, especializada em
tecnologia, publicou dois artigos sobre
como se cuidar em passeatas. Um dos
conselhos é cobrir o rosto para se prote-

ger das tecnologias de reconhecimento
facial. Cuidado se for de carro, porque
câmeras podem registrar a placa. Deixe
seu telefone em casa, pois a polícia é
capaz de interceptar o sinal de telefones
e reconhecer o nome e o número do
usuário. Cuidado ao tirar fotos e publicar
nas redes: você pode estar expondo
outros manifestantes.


Foi lindo, caro leitor. Mais do que um
protesto, foi uma confraternização. Eu
me dei conta de quanto estava sozinha e
angustiada ao sentir o alívio da cumplicidade,
no contato com outros manifestantes.


Havia crianças, gente em cadeira
de rodas, hippies, milionários, celebridades
disfarçadas com óculos e chapéus.
Em Washington, 200 mil pessoas
assistiram à parada militar de Trump.
Em todo o país, mais de 5 milhões de
pessoas participaram dos protestos contra
o presidente.


Termino essa carta em fins de junho,
depois de Israel e os Estados Unidos
bombardearem o Irã, e o Irã bombardear
as bases militares americanas no Catar.
É o início da Terceira Guerra Mundial
ou um ataque pontual? Se o objetivo era
destruir as instalações nucleares, por que
uma emissora de tevê em Teerã foi bombardeada?
Por que Trump sugeriu aos
iranianos fugir da capital? O cessar fogo
anunciado por Trump irá de fato ocorrer?


Eu não tenho respostas, mas isto eu
sei: enquanto a atenção pública se volta
para a política externa, Narciso Barranco,
de 48 anos, jardineiro e ilegal no
país, pai de três fuzileiros navais (um
deles veterano do Afeganistão), foi derrubado,
atacado com spray de pimenta
e agredido com socos por quatro homens
da patrulha de fronteira do ºœÓ.
Barranco teve o ombro deslocado e
passou mais de 24 horas em um centro
de detenção em Los Angeles. Sem receber
cuidados médicos, água ou comida.
Ele é só um entre milhares de
trabalhadores detidos diariamente.


O que levamos conosco é o que lembramos.
Eu gostaria de me lembrar de
2025 como o ano em que, depois dos
incêndios na Califórnia, saí à rua para
me molhar quando caiu o primeiro
temporal. O ano em que adotei e me
apaixonei por um cachorro e em que
meu filho escreveu um poema sobre
estar só em meio a bilhões de pessoas.


O ano em que caminhei com minha
filha pela neve fresca entre árvores gigantes
e amei da melhor forma meu
companheiro. O ano de viagens e momentos
bons com meus pais, irmãs e
amigos. Mas 2025 também é o ano em
que o governo americano faz pessoas
desaparecerem, levando-as para outros
países. O ano em que 300 mil pessoas,
até o momento, morreram em várias
partes do mundo devido aos cortes de
verba da Usaid. O ano em que o presidente
dos Estados Unidos planejou
construir uma base de dados com informações
privadas de todos os americanos
e comemorou o seu próprio
aniversário com uma parada militar
que pode ter custado 92 milhões de dólares.
O ano da resistência civil.


“Que você possa viver em tempos
interessantes.” Já ouvi essa frase algumas
vezes, e se a internet estiver certa
trata-se na verdade de uma praga chinesa.
“Interessante” não é o modo como
queremos viver nossa estada na Terra.


Viver num tempo chato, com um governo
imperceptível e com todo mundo
convivendo em paz é melhor. No momento,
não é o que temos. E não há
muito que possa ser feito, por enquanto,
além de estar ciente do que acontece.


Creio que é essa a parte que me toca:
saber. E passar adiante o que eu sei. J

PIAUI 

 

No comments: