July 28, 2025

Um computador, um rádio, um drone e uma espingarda: como missionários estão alcançando os povos isolados na Amazônia

 



Por   e John Reid Enviados especiais à Tríplice Fronteira Brasil-Peru-Colômbia

 Mayá tem cerca de 60 anos, tem três filhos e mais netos do que consegue contar. Como matriarca da comunidade Korubo no Vale do Javari, ela liderou o primeiro contato de seu povo com o mundo exterior em 1996, quando permitiu a conexão com uma expedição da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) por meio do sertanista Sydney Possuelo.

Embora Mayá ainda viva nas profundezas da selva amazônica, no último dia 12 de junho ela precisou de assistência médica em Tabatinga, um município que fica a 12 horas de barco rápido de sua aldeia, às margens do rio Ituí. Na cidade para uma cirurgia de catarata, Mayá conversou com o GLOBO. Além dela, outros membros de sua comunidade vieram para realizar outros procedimentos médicos. Eles se queixam que, durante a "visita" ao local, enfrentam doenças 'brancas' mortais para suas crianças quase 30 anos após o contato.

Na dúvida se voltaria para casa, ela deixou para trás um misterioso dispositivo eletrônico, cujas mensagens em português ou espanhol ela ouve enquanto trança artesanatos.

O sertanista Sydney Possuelo com Mayá (ao centro com um bebê no colo) durante o primeiro contato com um grupo de korubos, no Vale do Javari, em 1986 — Foto: Arquivo Pessoal
O sertanista Sydney Possuelo com Mayá (ao centro com um bebê no colo) durante o primeiro contato com um grupo de korubos, no Vale do Javari, em 1986 — Foto: Arquivo Pessoal

"Tenho certeza de que Deus é um Deus de amor; portanto, se Ele é um Deus de amor, Ele me levará para o céu quando eu morrer, então isso não me preocupa. Gostaria de lembrá-lo de algo, já que você esqueceu um dos aspectos mais importantes da vida – a morte – e o fato de ser aceitável aos olhos de Deus. Deixe-me explicar...", é uma das mensagens bíblicas que o dispositivo carrega.

É uma curiosidade que se tornou fonte de diversão para a comunidade Korubo e sua matriarca. Como chegou até eles é incerto. O que está claro é que dispositivos semelhantes, chamados Messenger, têm sido usados para espalhar mensagens religiosas, apesar de o proselitismo ser proibido entre povos não contatados e de recente contato, de acordo com a Constituição. Os dispositivos Messenger são distribuídos pela organização Batista In Touch Ministries, sediada em Atlanta, Geórgia.

Grupos como a Missão Novas Tribos e Jovens Com Uma Missão (JOCUM) atuam há muito tempo na região, empregando métodos secretos como dispositivos de áudio ocultos e visitas não autorizadas para espalhar sua fé. Incidentes recentes incluem um missionário não autorizado interagindo com a população local e construindo uma igreja perto de um grupo indígena isolado ao longo do igarapé Maia.

Seth Grey, diretor de operações da In Touch Ministries, confirmou ao GLOBO que a organização usa o dispositivo movido a energia solar para distribuir conteúdo religioso – e disse que ele mesmo entregou pessoalmente alguns ao povo Wai Wai na Amazônia brasileira. Embora esses dispositivos teriam aparecido em áreas como o Vale do Javari, onde seu uso viola a política brasileira, Grey insistiu que a In Touch não os distribui em regiões restritas, embora ele tenha reconhecido que missionários de outras organizações podem distribuir esses dispositivos onde não são permitidos

O dispositivo faz parte de uma linha de produtos com uma estratégia clara, de acordo com a In Touch: 'Garantir que a mensagem da salvação de Jesus Cristo seja acessível àqueles que nunca a ouviram'.

Aparelhos de áudio que emitem versículos bíblicos foram encontrados em aldeia korubo, no Vale do Javari — — Foto: Divulgação/PM do Amazonas
Aparelhos de áudio que emitem versículos bíblicos foram encontrados em aldeia korubo, no Vale do Javari — — Foto: Divulgação/PM do Amazonas

Além do Messenger, a empresa pode oferecer um pen drive 'para casos em que o Messenger possa ser reprovado na alfândega', e até um cartão de memória microSD para que o material religioso 'possa ser ouvido secretamente em um celular'.

Korubos isolados, entre eles Mayá ao fundo, são contatados por missionário que entrou ilegalmente na terra indígena no final dos anos 1980 — Foto: Arquivo/Funai
Korubos isolados, entre eles Mayá ao fundo, são contatados por missionário que entrou ilegalmente na terra indígena no final dos anos 1980 — Foto: Arquivo/Funai

Grupos missionários tentando alcançar povos não contatados têm sido identificados na região por várias décadas.

— Soubemos de um caso no final dos anos 1980 onde um missionário da Missão Novas Tribos abordou e fez contato com o povo Korubo. Há até fotos disso. O que sabemos é que ele conseguiu ir embora antes de ser espancado — diz Fabrício Amorim, ex-coordenador da Funai no Vale do Javari.

— Durante meu tempo como coordenador, não tínhamos registro de nenhuma tentativa missionária nas aldeias Korubo. Agora, não há dúvida de que eles estão planejando novas incursões — diz ele.

Missionário expulso

O proselitismo se estende a pessoas que vivem em isolamento voluntário no território Javari. Nelly Marubo, chefe da coordenação regional do Vale do Javari ligada à Funai, viajou para o grupo Mayuruna da aldeia Flores em 15 de junho para uma reunião sobre gestão de recursos pesqueiros.

— Quando chegamos lá, havia um estranho interagindo com os locais e construindo uma igreja — conta Nelly .

Samuel Severino da Silva Neto é um missionário expulso da aldeia Flores, em Território Mayuruna — Foto: Foto : Funai
Samuel Severino da Silva Neto é um missionário expulso da aldeia Flores, em Território Mayuruna — Foto: Foto : Funai

O homem, Samuel Severino da Silva Neto, estava em terra indígena sem a autorização exigida da Funai. Severino negou ser missionário. Mas Nelly disse que trabalhadores do centro de saúde da aldeia lhe disseram o contrário.

— Ele disse a eles que veio aqui para fazer o primeiro contato com os povos indígenas — diz ela.

Seu alvo era um grupo isolado que vive profundamente na floresta ao longo do igarapé Maia. Eles interagiram brevemente com madeireiros na década de 1970 e optaram por não ter mais contato nas últimas cinco décadas. A aldeia onde Severino foi encontrado fica a poucos minutos de barco da foz do igarapé.

No relatório oficial que Nelly enviou aos funcionários da Funai em Brasília, ela afirmou que Severino havia mapeado locais ao longo do igarapé Maia, onde ele acreditava ter chance de encontrar as pessoas isoladas.

Severino não respondeu a telefonemas ou e-mails para comentar."

A principal organização missionária operando no território Javari é a Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), um braço da New Tribes Mission nos EUA, renomeada como Ethnos360 em 2017. Estabelecida em 1942, a organização se referia aos povos indígenas ainda não alcançados por missionários como "ouro moreno". A expressão também era utilizada no boletim informativo da organização. O orçamento anual da Ethnos360 é de cerca de US$ 80 milhões (R$ 445 milhões) .

'Poços artesianos e painéis solares'

A base da missão no Javari, localizada no território do povo Marubo no Rio Ituí, estava operacional por mais de 60 anos antes de ser fechada por ordem do Supremo Tribunal Federal (STF) durante a pandemia.

Base Ituí no Vale do Javari, onde há a maior concentração de povos isolados do mundo — Foto: União dos Povos Indígenas do Vale do Javari
Base Ituí no Vale do Javari, onde há a maior concentração de povos isolados do mundo — Foto: União dos Povos Indígenas do Vale do Javari

A ordem permanece em vigor, mas segundo Nelly Marubo, missionários visitam frequentemente, chegando diretamente de avião sem passar pelos postos de controle do governo.

— Eles organizam um evento, sabe? Um encontro de jovens, um encontro de estudantes. Eles vêm à aldeia para 'ajudar', por assim dizer.

Bushe Matís, coordenador da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), diz:

— A estratégia deles tem sido inovadora. Eles chegam oferecendo poços artesianos e painéis solares — afirma.

A atividade missionária agora ameaça 13 dos 29 povos isolados que o Brasil reconhece oficialmente como definitivamente confirmados, de acordo com o Ministério Público Federal (MPF).

Marcos Pepe Mayuruna foi convertido e 'treinado' para ser pastor em Atalaia do Norte por líderes religiosos dos EUA. Ele diz que a JOCUM tem uma forte presença na região.

— A JOCUM tem uma base aqui no município. Muitos agentes missionários chegaram recentemente. Eles dizem que querem trabalhar com os grupos Korubo, Matís, Marubo, Kanamari e Kulina — afirma, referindo-se à maioria dos grupos contatados do Vale do Javari.

Ele confirma a presença de missionários nas aldeias de Flores e Fruta Pão, ao longo do Rio Curuçá.

— Eu sei que batismos acontecem lá. A visão deles é alcançar aqueles que ainda não foram alcançados. Eu disse a eles para respeitar os povos indígenas não contatados. Sou contra isso.

Avião do grjupo missionário Asas do Socorro pousa em uma aldeia no Vale do Javari — Foto: Asas do Socorro/Divulgação
Avião do grjupo missionário Asas do Socorro pousa em uma aldeia no Vale do Javari — Foto: Asas do Socorro/Divulgação

Um pastor indígena, que trabalhou com Andrew Tonkin (que tem ligações com a Missão Novas Tribos) em algumas expedições, disse que o missionário americano se aproximou muito do lugar onde eles vivem.

— Ele está desesperado para alcançá-los. E para fazer isso, ele carrega um computador, um rádio, um drone e uma espingarda. Ele usa um avião para chegar à área isolada — confirma o pastor, que pediu sigilo de sua identidade.

A aeronave é um hidroavião monomotor pertencente ao líder religioso Wilson Kannenberg, segundo pessoas em Atalaia do Norte e Benjamin Constant, logo fora do território Javari. Kannenberg não respondeu aos pedidos de comentário.

O missionário Wilson Kannenberg (próximo da hélice) em atividade do Asas do Socorro, no Vale do Javari — Foto: Facebook/Reprodução
O missionário Wilson Kannenberg (próximo da hélice) em atividade do Asas do Socorro, no Vale do Javari — Foto: Facebook/Reprodução

Na página da Frontier Missions International, que se autodenomina 'um ministério Batista de livre-arbítrio', Tonkin aparece como líder missionário. A página também apresenta contribuições de dois casais americanos, Doug e Lydia Caudill e Ezra e Joanna Brainard.

'Nosso coração e propósito no ministério é alcançar os não alcançados entre os povos indígenas do Vale do Javari', afirmam os Caudill em seu perfil. Eles dizem que 'vivem em uma casa-barco ao longo dos afluentes do rio na Amazônia, pregando nas aldeias' na região de Benjamin Constant.

Nelly, que tem doutorado em antropologia pelo Museu Nacional do Rio de Janeiro, diz que os conceitos trazidos pelos evangelistas têm um poder destrutivo. Ela conta a história de os Matís terem sido questionados por um visitante sobre a identidade de seu 'criador'.

O jovem korubo Seatvo segura um colar com um crucifixo ao lado da matriarca Mayá durante entrevista ao GLOBO, em Tabatinga — Foto: Daniel Biasetto
O jovem korubo Seatvo segura um colar com um crucifixo ao lado da matriarca Mayá durante entrevista ao GLOBO, em Tabatinga — Foto: Daniel Biasetto

A origem dos Matis – e de muitos outros povos – não é explicada como obra de um criador.

— Esses povos se originam, eles emergem — diz ela. — Com os povos indígenas, temos que ter muito cuidado com a linguagem, a linguagem colonizadora, porque ela é altamente viciante, acaba cortando a essência da cultura.

Nelly diz que o impacto cultural das crenças dos brancos empobrece a realidade dos povos indígenas. — Temo que, no futuro, nossos povos sejam como um livro com uma capa sem conteúdo — diz ela.

Mayá, a líder Korubo que agora tem a Bíblia em áudio Messenger da In Touch, foi mais direta.

— Não quero que missionários venham à nossa aldeia. Se vierem, nós os atacaremos com bordunas.

* * Esta reportagem foi produzida em conjunto com o jornal britânico The Guardian (Leia a versão em inglês). Daniel Biasetto é editor de conteúdo do GLOBO. John Reid é coautor de Ever Green: Saving Big Forests to Save the Planet. A série sobre povos isolados tem o apoio da Fundação Ford, Nia Tero Foundation e do Pulitzer Center. 

GLOBO 

July 26, 2025

O sonho americano em frangalhos

 


 MARTHA BATALHA,

Caro leitor,
Você não tem ideia de como
a coisa está braba por aqui. Eu
sei, você acompanha as notícias
e pode inclusive dizer exatamente
isso: as coisas nos Estados Unidos
estão brabas e tal. Mas braba é uma palavra
genérica, incapaz de pontuar o
quanto, o como e o para quem, o até
quando e o porquê. Os fatos, o clima, as
consequências, a rápida erosão de um
sistema de governo democrático.
Por isso escrevo esta carta. Para definir,
no melhor do meu entendimento e
da minha experiência, o que eu quero
dizer com “brabo”. Para dar forma e conteúdo
ao governo Trump.


Tem sido brutal, e o grupo ao qual pertenço
com orgulho – o dos perdedores –
se vê em constante choque. Há também
muita revolta, negação, impotência, desespero,
rancor, frustração. Mas tem algo
só meu e seu, como brasileiros, se você
estivesse aqui. É o sentimento de déjà vu.
Vem desde as conversas com meus pais,
quando eu era menina, durante os anos da
ditadura. Um casal, de 30 e poucos anos,
contando para a filha o que era fugir da
polícia na Cinelândia, não poder se manifestar
ou votar para presidente. Eu entendi
o período como ausência do que deveria
ter sido, como algo precioso roubado aos
meus pais. A injustiça feita à geração deles
se tornou a minha. Ela abriu minha percepção
para a longa cauda de consequências
de um governo autoritário: a alienação
do povo, a mediocridade dos líderes, corrupção,
violência, desigualdade.


O que está acontecendo aqui é parecido.
Trump governa ignorando a Constituição,
esvaziando o governo, aterrorizando
pessoas e atacando instituições.


Aquele “E daí?” do Bolsonaro é o mantra
diário dele. Os americanos, tão competentes
no uso da língua, tão pragmáticos
e sempre indo ao ponto, escolhem chamar
as medidas autoritárias e ilegais de
“crise constitucional”. Uma crise é temporária
e pode ser resolvida. Passa a ideia
de caos e instabilidade, mas também de
limite, movimento e esperança. Já totalitarismo,
autocracia, fascismo sugerem
algo maior em escopo e duração. Algo
que almeja o definitivo, e mesmo que
não seja para sempre é poderoso o suficiente
para transformar um país.


Esse “brabo”, se dando aqui, vai perdurar
por dois anos (até as eleições para o
Congresso), ou quatro (eleições para presidente),
ou mais. É terrível e também fascinante,
e me vejo acompanhando tudo de
um lugar estranho. Como se estivesse na
plateia de um show pirotécnico encenado
por sádicos. Vejo como queimam os mais
vulneráveis. Por enquanto nada me aconteceu,
mas esses sádicos controlam o fogo,
e se o teatro queimar eu estou dentro.
Comecei a escrever este texto em janeiro,
mentalmente, só para mim. Lendo as
notícias, eu pensava: isso não é normal,
nem aquilo, nem isso. Era o início de uma
nova era de normalização do impensável.


Em menos de seis meses, os Estados Unidos
deixaram de ser a terra da liberdade,
tolerância e democracia para se tornar um
lugar de censura, opressão, caos e terror.
Entenda, portanto, essa carta como
um fio de Ariadne: a tentativa de abarcar
o que vem acontecendo desde janeiro
até junho, quando me vi num lugar, a
grande Los Angeles, com toque de recolher
e tropas no Centro da cidade. Com
gente sendo presa em seus trabalhos de
lavadores de carro ou de vendedores
de fruta nas esquinas. Com estudantes e
familiares com medo de serem detidos
nas cerimônias de graduação.
Brabíssimo, caro leitor. E só se passaram
seis meses.


JANEIRO


Nos primeiros dias do ano, eu me
juntei a milhões de americanos e
evitei me informar – a audiência da
œžž caiu 47% depois das eleições para
presidente, em novembro passado. Ignoro
o jornal impresso e bloqueio os sites de
notícia. O povo quer esse homem? Pois
então eles se merecem. Donald Trump
ganhou no voto popular, no Colégio
Eleitoral, tem maioria no Senado, no
Congresso e na Suprema Corte.


A única menção ao governo que me é
imposta está no e-mail do diretor da escola
de meus filhos, reconhecendo a mudança
política e assegurando a proteção a estudantes
sem documentos. Nas entrelinhas:
não importa se a criança descende dos
fundadores do país ou se atravessou na semana
passada a fronteira, cruzando o deserto
a partir da cidade mexicana Tijuana.
A escola promete protegê-los e ensinar.


É um e-mail esperado, considerando
que vivo em Santa Mônica, na Califórnia,
uma das bolhas democráticas dos Estados
Unidos. Imagine o mapa americano com
duas faixas azuis: uma no litoral do Oceano
Pacífico, outra do lado oposto, ao Norte,
na costa do Atlântico. Imagine o centro
do país em vermelho, com algumas rajadas
de azul sobre os centros urbanos: Chicago,
Denver, Atlanta, Filadélfia. Eu vivo
na faixa azul (onde predomina o eleitorado
democrata). Mas bastam três horas de
viagem rumo ao interior e estou em outra
América, a vermelha (do eleitorado republicano),
menos miscigenada e mais religiosa,
com lojas de armas e cartazes
pró-Trump. Parece um estereótipo, e ali,
de fato, eu me sinto em um cenário de
exageros, a ponto da descrença. Eu me
percebo num lugar que não me absorve,
onde destoo pelo sotaque e a aparência.
Era essa outra América – e o projeto de
país que essa parte ambiciona – que eu
evitava ao ignorar as notícias.


Durou menos de uma semana. No dia
7 de janeiro, minha filha ligou da escola
para me contar sobre um incêndio próximo.
A Santa Monica High School fica a
seis quadras da praia, num planalto, em
uma área de prédios baixos. A vista do terceiro
andar do colégio alcança até a cadeia
de montanhas por onde sobem as construções
de Malibu, Pacific Palisades e
Brentwood. À uma da tarde daquela terçafeira,
os alunos trocaram as mesas de estudo
pela vista privilegiada de um incêndio
histórico. Pelos próximos dias, cerca de
230 milhões de mª, uma área equivalente
à de Washington ¬.œ. queimaria na Região
Metropolitana de Los Angeles.


Peguei meus dois filhos na escola e nos
trancamos em casa, acompanhando a situação
pela internet e a tevê. Ventos de até
160 km/h alimentavam as chamas. No site
da prefeitura, um mapa estendia a área de
evacuação até poucas quadras de onde
moramos. Fizemos e desfizemos as malas
várias vezes, conforme o vento soprava,
com mais ou menos força. Foram dias de
medo e expectativa, noites de sono inquieto,
madrugadas em que soavam os alarmes
públicos nos celulares, alertando para
a evacuação. Sirenes de bombeiros, polícia
e ambulância, o cheiro denso das coisas
queimadas, residências próximas
saqueadas, notícias de amigos que perderam
tudo no fogo, informações sobre
mortes. Quando o incêndio foi contido,
metade da área em que eu circulo – os
parques, as trilhas nas montanhas, cafés e
restaurantes em Malibu, Pacific Palisades
e Brentwood – tinha deixado de existir.


Em meio à tragédia coletiva, Trump
toma posse. Em questão de dias, são
apagadas 8 mil páginas de sites do governo
com programas educativos, benefícios
para veteranos, pesquisas científicas e
informações sobre vacinas. São cancelados
programas de empréstimos e bolsas de
estudos. Trump culpa os democratas pelos
incêndios na Califórnia e ameaça cortar a
ajuda financeira. Perdoa os envolvidos no
ataque ao Capitólio em 6 de janeiro de
2021. Cancela o programa de retirada das
bombas inativas no solo de países como
Iraque e Ucrânia. Também cancela voos
para refugiados aprovados pelo governo
anterior, de Joe Biden. Sugere realocar a
população de Gaza no Egito e na Jordânia.
Começa a prender imigrantes e fala em
retomar o controle do Canal do Panamá.
Sugere comprar a Groenlândia (que nunca
esteve à venda) e decide mudar o nome
do Golfo do México (que não pertence
aos Estados Unidos) para Golfo da América.
Exige a transferência de mulheres trans
para prisões de homens e dá ao grupo de
Elon Musk acesso ao sistema de pagamentos
do governo. Sugere que vai lutar por
um terceiro mandato (o que não é possível
nos termos atuais da lei americana).
Trump surpreendeu pela rapidez das
mudanças, a crueldade das medidas e o
desprezo pelas instituições. O início de
seu governo foi ainda mais traumático
para os californianos democratas, afetados
pelos incêndios.


Steve Bannon, um dos ideólogos do
primeiro governo Trump e ainda influente
na atual administração, afirmou
que o papel de Trump é desconstruir o
governo. Ou como ensinou Maquiavel:
todo o mal deve ser feito de uma só vez.
A sensação é de caos, mas existe método
na destruição.


Caro leitor, talvez você tenha ouvido
falar do Mandato para liderança – A promessa
conservadora – Projeto 2025: um
documento de mais de novecentas páginas
feito por cerca de 54 organizações
de direita e 304 conservadores. Foi publicado
em 2023 com o intuito de guiar
as medidas do novo governo de Trump.
O projeto propõe a total reconstrução
ideológica dos Estados Unidos, baseada
na moral conservadora cristã.


Algumas recomendações: reduzir
drasticamente o número de servidores
públicos federais, incluindo a demissão
em massa daqueles que não se alinham
com o governo; concentrar mais poder
no presidente; cancelar programas que
garantam mais diversidade no governo
(seja de raça, gênero ou sexualidade);
impedir que as escolas ensinem que o
racismo é parte da base histórica dos Estados
Unidos; usar fundos públicos para
financiar escolas privadas cristãs; restringir
o acesso a certos contraceptivos
como a pílula do dia seguinte; reformar
e cortar pessoal do ¸¹º (a principal agência
que investiga crimes financeiros, de
corrupção, de ódio e de terrorismo).
Dezenas de colaboradores do Projeto
2025 estão agora na administração
do Estado. Dois terços das primeiras
ordens de Trump se assemelham a essas
recomendações.


FEVEREIRO


Trump anunciou a venda de centenas
de prédios do governo. Cancelou
83% dos programas da Usaid, a
agência americana que presta ajuda
humanitária em vários países. Se opôs
a uma resolução das Nações Unidas
exigindo a retirada de tropas russas da
Ucrânia e culpou Zelensky pela guerra.
Demitiu milhares de funcionários públicos
do Pentágono, da receita federal, do
Usaid e outros órgãos. Impediu repórteres
da agência de notícias Associated
Press de acompanhar eventos na Casa
Branca. Anunciou cortes de 900 milhões
de dólares do Departamento de
Educação. O próprio perfil oficial da
Casa Branca postou no X uma imagem
de Trump com uma coroa e os dizeres
Long live the king (vida longa ao rei).
“A verdadeira oposição é a mídia”,
disse Bannon, durante o primeiro mandato
de Trump. “A forma de lidar com
ela é entupindo a zona de merda.”


Não é bom viver num lugar em que a
ideologia de Bannon se realiza, caro leitor.
Onde acontece tanta coisa de anormal
que fica impossível elaborar o raciocínio.
Comecei a ler as notícias em busca de pistas.
Quando e como um sistema democrático
se desfaz? Se há um golpe de Estado,
com tanques na rua, prisões e mortes, temos
claro que algo aconteceu. Mas como
saber da ruína da democracia quando o
cotidiano continua intocado e a violência
não nos atinge diretamente? Quando ninguém
nos priva dos confortos da classe
média ou da possibilidade de criticar o
governo nas redes sociais?


Ouço os primeiros rumores de prisões
de imigrantes em seus locais de trabalho.
Vou à Home Depot, loja de material
de construção próxima de onde eu
moro, e percebo a ausência de homens
no estacionamento. Era comum vê-los
sentados no meio-fio ou encostados na
porta de caminhões velhos, à espera de
quem lhes oferecesse um dia de trabalho.


Também desapareceram as mulheres latinas
que vendiam fruta nas esquinas da
cidade. Era uma imagem típica de Los
Angeles: dobrar uma rua e deparar com
o carrinho cheio de fatias de abacaxi,
manga, laranja e melancia para serem
vendidas em um copo. Ao lado do carrinho,
a mulher de origem mexicana, com
longos cabelos negros sentada em um
banco, à espera de clientes.


Essas pessoas são agora inimigas do
Estado. O site da Casa Branca afirma estar
protegendo o país de uma invasão e
define imigrantes sem documentos como
“forasteiros”. Diz o site que esses imigrantes
apresentam “ameaças significativ

contra a segurança nacional e a estabilidade
pública, cometendo atos vis contra
americanos inocentes. Outros se engajam
em atividades hostis, incluindo espionagem,
espionagem econômica e preparação
para atividades de terrorismo”.


Eu moro nos Estados Unidos há dezessete
anos. Vim por questões pessoais
e me mantive legal no país primeiro com
o visto de estudante e depois pelo trabalho
em uma editora em Manhattan. As
babás que permitiram que eu trabalhasse
eram brasileiras. Pequenos consertos na
casa eram feitos por latinos. Os médicos
que me atenderam eram judeus, coreanos,
chineses e do Leste Europeu. As
enfermeiras, na maioria, das Filipinas.


Ao sair para jantar com meu marido (de
família cubana), falávamos espanhol
com garçons mexicanos. Taxistas e motoristas
de Uber poderiam ser do Afeganistão,
Iraque, Colômbia, Índia, Congo,
Bangladesh. Aluguei o apartamento de
um italiano, tive vizinhos do Japão, da
Espanha e do Laos, fiz a capa para o sofá
com um vietnamita. Dezenas de vezes,
falando com estranhos e percebendo o
sotaque, perguntávamos um ao outro de
onde vínhamos. Mais de uma vez descobri
estar falando com um brasileiro.


Em 2017, eu me tornei cidadã junto
com outras 6,3 mil pessoas de 130 países
no Centro de Convenções de Los Angeles.
Foi uma grande festa, com algumas
mulheres de vestido longo carregando
buquê de flores, homens de terno e gravata,
famílias reunidas para assistir e celebrar.
Nunca estive em um lugar tão
diverso e cheio de otimismo e esperança.
Nunca ouvi tantas línguas e percebi tantas
cores de pele. Para muitos a cidadania
era como uma certidão de renascimento.
Um novo começo, oficial, longe de seus
países destruídos por guerras, miséria,
ditaduras, extremismo religioso.


Entendi naquele dia que ser americana
é habitar um lugar de todos. Que
eu jamais deixaria de ser brasileira tornando-
me americana porque esse não
é um país que se faz por exclusão, mas
por inclusão e tolerância. A cerimônia
foi, para a maioria, a realização dos versos
de Emma Lazarus, impressos no
pedestal da Estátua da Liberdade:
Dá-me os teus cansados,
os teus pobres,
as tuas massas aglomeradas que
anseiam por respirar livres,
os rejeitados miseráveis da tua costa
fervilhante.
Envia-me estes, os sem-teto sacudidos
pela tempestade.
Levanto minha lâmpada ao lado da
porta dourada!


Emma Lazarus, por sinal, era americana
de origem judaica sefardita, descendente
de imigrantes de Portugal que
viveram no Brasil. A família foi para
Manhattan fugindo da perseguição religiosa
no Recife.


Deportações sempre existiram. O governo
George W. Bush expulsou cerca de
10 milhões de imigrantes ilegais, entre
deportações e retornos voluntários (quando
a pessoa é detida na fronteira, por exemplo,
e volta dali). O governo Bill Clinton:
12,3 milhões. O governo Barack Obama:
5,2 milhões. Mas nenhum governo antes
definiu o imigrante ilegal como criminoso,
separou famílias ou impediu julgamento
antes da deportação. Todos respeitaram
o “jeitinho americano” de usar mão de
obra barata e ilegal para mover a economia.


Os imigrantes são, sobretudo, mãos:
lavando, passando, cozinhando, cuidando,
consertando, plantando, dirigindo,
embrulhando, entregando, limpando,
construindo. Não existe um americano
que não tenha se beneficiado desse arranjo.
Se o imigrante for ativo e desembaraçado,

se trabalhar de dia e de noite, se
jamais ficar doente ou sofrer acidente, ele
vai tocando a vida na clandestinidade até
conseguir documentos.


O que o governo Trump está fazendo
não é proteger as bordas ou deportar criminosos.
Não é retirar uma camada de
forasteiros do país, mas retirar do país
uma parte dele próprio. É ameaçar a
identidade e a economia americana.


MARÇO


No início do mês, o governo define
as palavras e expressões que devem
ser banidas, evitadas e limitadas
por agências federais, documentos,
sites, programas de saúde pública e pedidos
de bolsa de pesquisa. São mais de
350 palavras, como: antirracismo, ativismo,
aborto, negro, energia limpa, crise
climática, apropriação cultural, deficiências,
discriminação, diversidade,
igualdade, feminismo, inclusão, diversidade
de gênero, discurso de ódio, minoria
hispânica, desigualdades, injustiça,
ÀÁ¹ÂúÄÅž+, marginalizado, saúde
mental, minorias, multicultural, político,
poluição, prostituta, racismo, segregação,
preferências sexuais, justiça
social, transgênero, vacinas, vítima, populações
vulneráveis, mulher, mulheres.


A compilação é praticamente um serviço
público, ao produzir pelo negativo
o perfil do governo: não se pode falar de
imigrantes, latinos, negros e mulheres,
mas se pode falar de homens brancos.
Não se pode mencionar energia limpa,
mas petróleo pode. Não se pode falar de
justiça social, mas de armamentos pode.
É como se todas as palavras da língua
inglesa formassem um grande bloco de
mármore. O bloco está sendo esculpido
por uma elite com rígida visão do produto
final. A cada investida no mármore as
palavras que divergem dessa ideia se desprendem.
No fim do projeto, e rodeado
por lascas caídas ao chão, surgirá a escultura
do Homem Branco Hétero. Então
alguém chega, varre a sala, e o que foi
eliminado desaparece.


Palavras dão sentido ao mundo, acrescentam
nuances, são a base de pensamentos
complexos. Quando limitadas, o
próprio entendimento do entorno se limita,
e o debate público empobrece.
A palavra que melhor define o mês é
“expurgar”. Descubro que o Pentágono
deletou de seu site o perfil de funcionárias
notáveis. O cemitério militar de
Arlington apagou as páginas sobre mulheres
veteranas. Remover estes perfis é
afirmar que mulheres profissionais brilhantes
nunca existiram. Nas palavras
da escritora Anna Funder: “O milagre
do homem e suas obras-primas se dá
fazendo as mulheres desaparecerem.”


O salário mínimo dos servidores públicos
federais foi reduzido de 17,75 dólares
para 13,30 dólares a hora. O número
de funcionários públicos demitidos chegou
a 25 mil (quase a totalidade foi recontratada,
por ordem judicial). Como
punição ao que define como manifestações
antissemitas, o governo cancelou
400 milhões de dólares que seriam destinados
à Universidade Columbia e prendeu
os primeiros estudantes estrangeiros
por manifestações pró-Palestina.


Um dos programas mais degradantes
da tevê americana é Neighbourhood wars
(Guerra entre vizinhos, transmitido por
Hulu e outras plataformas de streaming).
Nele pessoas se estapeiam, furam pneus
e quebram os vidros dos carros, se atacam
com mangueiras, são apartadas
pela polícia e ameaçam matar uns aos
outros. Vi um menino se aproximar de
uma casa e chicotear a porta. O dono da
casa (negro) vai reclamar com o vizinho
e pai do menino (branco). Os dois trocam
ameaças de morte. Corta para outro
caso e a imagem de uma cerca sendo
erguida entre duas casas. A vizinha que
não pagou pela cerca acusa os trabalhadores
de fazerem sujeira. Chega a outra
vizinha e diz que tem o direito de fazer
a cerca. A que reclama acusa os trabalhadores
de olharem para ela quando tomava
Sol de biquíni. “Você não deve falar
assim”, diz uma. “Eu falo como bem
entendo”, diz a outra. “Baixe a voz”, grita
uma. “Não baixo”, afirma a outra. “Esta
é a porra da América! E eu sou branca!”


Descobri o programa por acaso, zapeando
canais. Fiquei fascinada pela
baixaria, esperando o pior.
Algo semelhante está acontecendo
quando acompanho as notícias do governo.


Eu me vejo ansiando pela próxima
manchete que irá me chocar. O desejo
vem de um lugar em mim que se acostumou
com o espetáculo e anseia para
que seja intenso. Eu me percebo incrédula
e provocativa, com a voz do que há
de pior em mim procurando o pior dos
fatos. “Eu quero ver se você é capaz de
me chocar”, diz a voz.
Da tevê trash à alta literatura. O escritor
tcheco Bohumil Hrabal (1914-1997)
descreveu um sentimento parecido no
livro Eu servi o rei da Inglaterra. O protagonista,
passando por uma área destruída
pela Segunda Guerra Mundial, se
vê admirando as ruínas:


Eu estava fascinado em observar uma
destruição que também me aterrorizava.
Quando a desgraça ocorre, quem pode
se aproxima e olha fixo para o machado
no crânio, para o corpo da mulher sob o
bonde. Eu não tentei fugir, e estava inclusive
satisfeito, e percebi que a desgraça,
o sofrimento e as atrocidades não
eram suficientes para mim. Eu poderia
ter mais, não apenas eu, mas o mundo.


Trump não desaponta. Para mim, a
imagem representativa do que houve de
mais baixo até agora é a de imigrantes sendo
extraditados para uma prisão de segurança
máxima em El Salvador. Acusados
de pertencer a uma gangue, os 238 homens
foram enviados para lá pelo governo.
Não se sabe muito sobre eles, nem
mesmo se todos são criminosos. Alguns
estavam no país sem documentação. Outros
tinham dado entrada ao pedido de
asilo político. A prisão para onde foram
em El Salvador é, segundo autoridades
locais, um lugar de onde as pessoas não
saem mais. Presos dormem em camas comunitárias
sem lençol nem travesseiro, as
luzes das celas ficam acesas dia e noite e a
entrada de ativistas de direitos humanos é
proibida. Juízes pediram a volta dos presos
aos Estados Unidos, para que fossem julgados
conforme as leis americanas. O governo
Trump ignorou. Os juízes insistiram.
O governo Trump: e daí? A imprensa: estamos
vivendo uma crise constitucional.


Kristi Noem, secretária de Segurança
Interna, visitou a prisão em El Salvador.
Em uma imagem, ela aparece na
frente de uma cela onde estão apinhados
dezenas de homens de pele escura
e cabeça raspada, cabisbaixos. Noem
tem os cabelos castanhos e soltos, veste
boné azul e uma camiseta branca colada
ao corpo. No pulso esquerdo, um
relógio Rolex dourado.


Roupas passam mensagens. A mensagem
que Noem escolheu passar naquele
dia foi: peitos. Rosto esteticamente impecável
e sem expressão, maquiagem
pesada, acentuando a boca e os olhos, a
roupa exaltando as partes do corpo que
alimentam o desejo masculino. É uma
imagem com dois pontos focais destoantes,
e eu me percebo alternando o olhar
entre os presos ao fundo e a Barbie à
frente. O feminino de Noem é uma traição
ao feminismo, que por conceito significa
justiça, empatia e igualdade.


*
Em Santa Mônica, o céu agora está
azul, as palmeiras se exibem exuberantes,
e não se agitam como caniços pardos,
como nos dias de vento e fogo. Praia com
gente caminhando, correndo e andando
de bicicleta. Turistas no píer, lojas e bares
cheios. As flores brancas dos pés de jasmim
indicam que a primavera está próxima.
Uma vez por ano, as escolas públicas
abrem as portas para a visita dos pais. Vamos
de sala em sala, para conversar com
os professores e nos inteirarmos sobre o
currículo. Atravesso o gramado e entro
no prédio retangular da escola de ensino
médio. No corredor, passo por um painel
de 2 metros de largura, intitulado Escola
Segura, com informações sobre escolhas
sexuais, indicações de livros de conteúdo
ÀÁ¹ÂúÄÅž+ e números para os estudantes
ligarem se precisarem conversar sobre
sua saúde mental. O painel seguinte tem
o título Mulheres Fenomenais e traz fotos
e biografias de Frida Kahlo, da excandidata
presidencial Kamala Harris,
da juíza da Suprema Corte Sonia Sotomayor,
da astronauta Crista McAuliffe.


Entro na sala onde meu filho de 13 anos
tem aulas de história e inglês. Todas as
paredes estão cobertas por cartazes e postits.
Um dos cartazes é sobre microempréstimos
para empreendedores de países
pobres. Vejo a foto de uma mulher,
Aishakul, do Cazaquistão, que precisa de
um empréstimo de 25 dólares para melhorar
as condições de vida de suas quinze
vacas. E a foto de Hassan, de Uganda,
que pede 25 dólares para comprar fertilizantes
para sua plantação de café.


Em outra parede, em pequenos retângulos,
estão escritos os nomes de pessoas
que fazem ou fizeram a diferença (upstanders)
em suas comunidades. O destaque
daquela semana é Patsy Mink (1927-2002),
a primeira mulher de origem asiática a ser
eleita para o Congresso, conhecida por
fazer avançar os direitos das mulheres. Em
torno do nome dela, as perguntas: O que
ela tentou conquistar? Como agiu? Que
palavras poderosas e ideias divulgou? Ainda
precisamos de ativismo nessa área? Em
um quadro, há o desenho de letras e mosaicos
árabes feitos pelos alunos, além de
fotos da ativista afro-americana Rosa
Parks (1913-2005), da ativista paquistanesa
Malala Yousafzai (nascida em 1997),
do líder indiano Mahatma Gandhi (1869-
1948) e do promotor Benjamin Ferencz
(1920-2023), procurador dos Estados Unidos
em um dos processos de Nuremberg
que julgaram os crimes nazistas.


Sobre as mesas de cada aluno estava
o poema que fizeram, De onde eu sou,
inspirado em trabalho homônimo da
poeta George Ella Lyon. Alguns versos
feitos pelas crianças:
Eu sou da Califórnia e do México
Eu sou da Alemanha e França
Eu sou do Brasil e Porto Rico
Eu venho da minha avó, ainda conosco,
sobrevivente do Holocausto
Eu sou feita de tortilhas e tamales
Eu venho do meu avô no Egito
Eu sou da Croácia e do Chile
Eu sou do Japão e de Nova York
Eu venho da Itália, do Colorado e da
Argentina
Eu venho de mi abuelita, do México
e de Seattle.


Eu visito a escola todo ano. Mas nunca
o conteúdo me pareceu tão nítido,
tão bem delineado, pelo contraste que
cria com o que está acontecendo no
país. Pela primeira vez, percebi a escola
como um lugar de resistência, onde se
constrói o que o governo quer apagar.
Se por um lado o contraste é bem-vindo,
por outro indica que aquilo que eu
considerava natural (conhecimento, direitos
humanos e civis, pensamento crítico,
diversidade) é agora subversivo.


ABRIL


A mulher de origem mexicana que
limpa nossa casa uma vez ao mês
conta que seu vizinho foi deportado.
Amigos com green card evitam postar
sobre política, por medo de deportação.
Na revista The New Yorker, um texto explica
sobre como se proteger em regimes
totalitários e como resistir a eles. Dedicada
ao jornalismo, à alta literatura e
aos cartuns sofisticados, a revista sugere
aos leitores usar mensagens criptografadas
e apagar o conteúdo das redes sociais.


Vivo agora em um país onde estudantes
estrangeiros são detidos e têm medo
de se manifestar, onde imigrantes são presos
enquanto procuram trabalho, onde
pessoas acusadas de pertencer a uma gangue
podem desaparecer, sem julgamento,

numa prisão na América Central. Onde
o presidente ameaça escritórios de advocacia,
universidades e empresas que
mantêm programas que promovem a
igualdade de oportunidades. Onde cientistas
perdem recursos para pesquisa e
planejam se mudar para outros países.
Onde o presidente processa veículos de
imprensa, exigindo bilhões. Onde os preços
variam conforme a tarifa imposta –
ou não – pelo governo. Onde legisladores
trabalham para cortar serviços de saúde
da população mais pobre e de pessoas
acima de 65 anos, para que milionários
paguem menos impostos. Onde a demissão
de fiscais, o fechamento de órgãos
reguladores e a escolha de aliados para
altos cargos públicos possibilitam a manutenção
do governo mais corrupto da história
americana – a fortuna da família de
Trump aumentou 3 bilhões de dólares
desde janeiro, faturando em acordos internacionais
e criptomoedas. Vivo em um
país onde o secretário de Saúde, Robert
Kennedy Jr., acredita que vacinas causam
autismo, que produtos químicos na água
podem alterar o sexo das crianças e que a
Aids não é causada pelo vírus ɺÊ, mas
por poppers, droga usada para aumentar
o prazer sexual. Onde se discute a possibilidade
de anular o habeas corpus.


É esse o “brabo” a que me referia, leitor.


*
No feriado da Páscoa, viajei para Nova
York. É a terra de Trump. Foi das escadas
da Trump Tower, na Quinta Avenida, que
ele desceu em 2015 para a primeira aparição
como candidato a presidente. Em
abril passado, em uma manhã de sextafeira,
o prédio estava protegido por grades
e cercado por seguranças. Um homem de
terno com uma máscara de Trump andava
de um lado para o outro em frente à
entrada, movimentando-se com gestos
histriônicos. Turistas passavam perto, sem
dar bola. A poucos metros, em mesas improvisadas
na calçada, imigrantes africanos
vendiam bonés com o slogan dos
trumpistas: Make America Great Again.
Lojas de suvenires exibiam camisas com
a famosa foto feita durante o atentado a
Trump, em que ele aparece com o sangue
escorrendo pela orelha ferida. Na Union
Square, uma senhora vestida de rosa empunhava
solitária um cartaz em favor da
democracia. As bancas e lojas de conveniência
que restam na cidade ofereciam
jornais com manchetes sobre as tarifas do
presidente e a queda alarmante do mercado
de ações. Os muros do East Village
estavam cobertos por cartazes com a foto
de Mahmoud Khalil, estudante da Universidade
Columbia preso pela polícia
migratória devido a protestos pró-Palestina.
Junto à foto, estava a carta que ele escreveu
da prisão. Um trecho diz:


Escrevo para você de uma unidade de
detenção na Louisiana, onde acordo em
manhãs frias e passo longos dias testemunhando
as injustiças silenciosas conem

tra pessoas privadas das proteções da lei.
[...] O governo Trump está me perseguindo
como parte de uma estratégia mais
ampla para suprimir a dissidência. Pessoas
com visto, residentes permanentes e
até cidadãos serão perseguidos por suas
crenças políticas. [...] O que está em jogo
não são apenas nossas vozes, mas as liberdades
civis fundamentais de todos.
Para onde quer que eu olhasse em
Nova York, via política. E entendi que
essa atitude não seria passageira, mas
uma nova forma, atenta e apreensiva de
viver no país.


MAIO


É preciso coragem para dar nome ao
irreversível. Morte, divórcio, câncer,
partida, ditadura, fascismo. A palavra
esclarece e define, dá forma e sentido
ao que antes era conveniente e seguro
ignorar, demanda entendimento e ação.


Agora se está falando menos em “crise
constitucional”. A palavra usada mais
abertamente é “fascismo”. O New York
Times publica um vídeo com Marci
Shore, Timothy Snyder e Jason Stanley,
todos ex-professores da Universidade
Yale (hoje na Universidade de Toronto),
associando o momento atual dos Estados
Unidos à Alemanha de Hitler e à
repressão na União Soviética. Eles sugerem
estabelecer centros de resistência
e organizar a população. Comparam
os Estados Unidos com o Titanic, o transatlântico
que todos asseguravam jamais
naufragar. Usam palavras exóticas aos
americanos e agora relevantes. Uma delas
é “expurgo” (de imigrantes e estudantes
estrangeiros). Outra é proizvol (do
russo): o governo pode fazer o que quiser
com você, e não há formas de se defender.
Em um momento, Jason Stanley diz:
“Você sabe que está vivendo numa sociedade
fascista quando pensa constantemente
nas razões pelas quais está seguro.”
Escrever este artigo me ameaça?
Posts no Instagram me comprometem?
Se eu viajar para o exterior terei permissão
para voltar?


A erosão da democracia prossegue.
O prefeito de Newark, em Nova Jersey, é
preso em um protesto contra a polícia
migratória. A bibliotecária do Congresso,
uma mulher negra, é demitida, acusada
de dar “livros inapropriados para crianças”.
Oklahoma muda o currículo de
história do ensino médio, exigindo que
se ensine uma fake news: a de que o Partido
Democrata roubou as eleições de
2020. Trump aceita um jato de luxo do
Catar, presente avaliado em 400 milhões
de dólares, para usar durante o período
na Presidência e depois transferir para
seu uso particular. O envio de 32 imigrantes
para a prisão em Guantánamo,
cheio de simbolismo, custa aos cofres
públicos 21 milhões de dólares. A canção
Heil Hitler, de Kanye West, é lançada no
80° aniversário da derrota dos alemães
na Segunda Guerra e ouvida milhões
de vezes nas plataformas X e YouTube.
Trump quer literalmente tirar os brinquedos
das crianças, ameaçando impor
à indústria Mattel, fabricante da Barbie,
uma tarifa de 100%. Kristi Noem, a secretária
de Segurança Interna, planeja
um reality show com imigrantes competindo
pela cidadania americana. Quando
é indagada sobre o que é habeas
corpus, ela responde que se trata do direito
constitucional do presidente de
remover pessoas do país.


*
Faço outra viagem, agora com minha
filha de 15 anos, para o Parque Nacional
da Sequoia, no centro da Califórnia e
ao Sul da Sierra Nevada. Sequoias são

as maiores árvores do mundo, com até
85 metros de altura e 10 metros de diâmetro,
o equivalente a um prédio de
28 andares, e cuja circunferência tem o
tamanho de um pequeno estúdio. São
criaturas maciças, resilientes e anciãs.


Chegam a ter mais de 3 mil anos e exibem
as marcas da permanência nos troncos
corroídos e calcificados por incêndios.
Perto de uma sequoia, somos como
bonequinhos de Lego. Nossos problemas
e nossa estada na Terra se tornam
pequenos. É o desafio da vida inteira: o
balanço entre a consciência de ser bem
pouco e a urgência de, com este pouco,
ser relevante para nossa insignificante e
extraordinária comunidade de legos.


Cai neve no primeiro dia, deixando
o entorno bem quieto e em paz. Há pássaros
e corças, cachoeiras e riachos, o
verde-escuro do musgo cobrindo pedras,
variações de negro, marrom e cinza
em árvores e troncos tombados e
escurecidos por incêndios. Ao menos
ali e por alguns dias eu pensei que a
política seria tão insignificante para
mim quanto eu sou para uma sequoia.
No segundo dia, vamos a uma cidade
próxima encher o tanque do carro. Vejo
o anúncio de uma feira de antiguidades
no pátio de uma igreja e decido parar.


As mesas enfileiradas exibem ferramentas
e eletrodomésticos usados, montes
de roupas surradas e pilhas de livros, a
maioria de temas religiosos. Num estande
ao canto, dois homens de pele e olhos
claros, vestidos de jeans e camisa xadrez,
abordam os passantes. Um deles
entrega algo para minha filha.
É um feto.


Eu me aproximo. A mesa do estande
está coberta de fetos de borracha maleável,
com 2 cm de altura, a cabeça proporcionalmente
maior que o tronco e em
posição fetal, todos dentro de saquinhos
plásticos. É uma imagem sinistra. “É assim
que se parece um bebê de oito semanas”,
afirma um dos homens. “Já está todo
formado. É um ser humano como nós.”
Eu estava na outra América. Mais
branca, religiosa e conservadora. Visível
na aparência dos homens e na audácia
de usar a autoridade masculina para
influenciar a escolha reprodutiva de
uma adolescente.


Permanecemos alguns segundos em
silêncio. Eu e minha filha segurando o
feto de borracha de um lado, e os homens
em seu estande, do outro. Não havia diálogo,
não havia empatia ou entendimento.
Eu pertenço a um mundo em que o assédio
antiaborto de dois homens a uma adolescente
é uma violência. Eles pertencem
a um mundo onde ensinar a uma jovem
sobre métodos contraceptivos e direito
universal ao aborto significa violência.
Colocamos o feto no porta-luvas e
voltamos para casa. Aquela coisa macabra
dentro do saco plástico me incomodava.


Para tantas mulheres, o feto
representa uma vida mais preciosa que
a delas. Para mim, aquele objeto era o
símbolo do retrocesso, da misoginia e
do machismo, do controle alheio sobre
o corpo feminino, da coerção por meio
da ignorância, do medo e da culpa.
Junto ao feto havia um cartão da ОÁ
Heritage House ’76, descrevendo a evolução
do “bebê” (e não embrião), desde o
primeiro dia de concepção. Em seu site a
entidade diz que tem como missão “salvar
e transformar vidas, oferecendo ferramentas
e recursos essenciais para orientar os
indivíduos a fazer escolhas certas e conforme
a vontade de Deus”, além de promover
“uma mistura harmoniosa de verdade e
amor, moldando interações internas e externas,
enquanto nos esforçamos para causar
um impacto positivo no mundo”.


A escolha de palavras é vaga, os clichês
abundam, a mensagem é imprecisa e propositadamente
enfraquecida por generalizações.Como diz George Orwell, no
ensaio A política e a língua inglesa, pensar
e escrever com clareza é o primeiro passo
para um maior entendimento político:


A mistura do que é vago com a incompetência
é a marca mais evidente da [...]
escrita política. Assim que certos temas são
abordados, o concreto se dissolve no abstrato
e ninguém parece conseguir pensar em
expressões que não sejam clichês. A prosa
passa a ser composta menos por palavras
escolhidas em função de seu significado, e
mais por frases prontas encaixadas como
partes de um galinheiro pré-fabricado.


JUNHO

 
Viajo a trabalho por quinze dias para
a Europa. Quando volto, o país é
outro. Há mais militares no Centro
de Los Angeles do que os Estados
Unidos mantêm no Iraque e na Síria.
Trump enviou as tropas como resposta
à resistência de civis contra a prisão de
trabalhadores numa confecção de roupas.


A maior parte da manifestação foi
pacífica, mas houve também saques e
queima de carros. Imagens de destruição
são transmitidas a milhões nas redes,
servindo ao governo para justificar
o uso da força militar contra civis e dizer
que o caos reina na Califórnia.


Protestos e conflitos concentraramse
em cinco quarteirões da cidade, e
não impediram que a ópera Rigoletto
fosse apresentada a poucas quadras do
epicentro das manifestações ou que as
pessoas que trabalham no Centro mantivessem
sua rotina. No geral a cidade
permanece em paz, embora resistente
às investidas do Serviço de Imigração e
Alfândega (ºœÓ, na sigla em inglês).


Os protestos não acontecem apenas
em Los Angeles. Nas redes sociais, há
centenas de vídeos de civis tentando proteger
imigrantes em todo o país. Alguns
chegam a ser cômicos: moradores de uma
comunidade em San Diego, na Califórnia,
enfrentam as forças da repressão gritando
“Vergonha!” e vemos os policiais,
fardados ao estilo Robocop, voltarem
acuados para seus carros. Outros revelam
crueldade e covardia: homens armados
perseguem e capturam trabalhadores de
uma extensa plantação de morangos. Há

também os que se aproximam do terror
político: um candidato a prefeito de
Nova York é detido tentando proteger
um imigrante em um tribunal de Justiça;
o senador democrata Alex Padilla
(de pais mexicanos) é detido e algemado
apenas por fazer uma pergunta a Kristi
Noem, a secretária de Segurança Interna,
em uma coletiva de imprensa. É a erosão
da democracia, ele disse depois. “Se
um senador pode ser silenciado e detido
dessa forma, cidadãos comuns correm
um risco ainda maior.” O ex-presidente
Barack Obama se manifesta. “O que
estamos vendo agora não é compatível
com a democracia americana”, ele disse.
“É compatível com autocracias.”


Há muito mais resistência, caos, violência,
prisões. Muito mais medo e incerteza.
Quando passo por trabalhadores
num prédio em construção, pelos jardineiros
latinos nas suas picapes com ferramentas
enferrujadas na caçamba,
pelas faxineiras entrando em seus carros
velhos com vassouras e baldes, eu sei
que estão todos em perigo.


O governo Trump determinou que o
ºœÓ deve prender 3 mil pessoas por dia.
Imigrantes são detidos em clínicas de
saúde, pontos de ônibus, tribunais e escolas.
“Há famílias que pela primeira vez
têm algum de seus membros se formando
em uma high school [equivalente ao
ensino médio] e estão com medo de assistir
à cerimônia de formatura e serem
deportadas. Que país estamos nos tornando?”,
afirmou o superintendente das
escolas públicas de Los Angeles, Alberto
Carvalho, americano de origem portuguesa.


No jantar, minha filha comenta
que um carro com agentes do ºœÓ estava
rondando a sua escola. Meu marido e eu
nos olhamos, sem ideia de como reagir.


Chega um e-mail do diretor da escola,
explicando que a informação sobre o ºœÓ
não foi confirmada. Ele reconhece que
algumas famílias estão com medo de
participar da cerimônia de formatura e
tenta tranquilizá-las, afirmando que
agentes federais precisam de uma ordem
judicial para entrar na escola.


A lei garante que qualquer criança nos
Estados Unidos tem direito à educação,
independentemente de ser cidadã americana
ou não. A matrícula nas escolas
públicas é feita mediante o comprovante
de residência – se a criança mora na área
da escola, tem o direito de estudar ali.
Ao longo dos anos, meus filhos (que são
cidadãos americanos) estudaram com
crianças sem cidadania. Nunca foi um
problema para mim ou outros pais.
No dia seguinte, meu filho também
fala de policiais rondando a sua escola.


Comento com os pais de outras crianças
e ninguém sabe dizer se são agentes da
polícia migratória ou policiais municipais
(que estariam ali para proteger a escola
das investidas da polícia migratória).
É tudo confuso, imprevisível, ameaçador
e, principalmente, novo. Estudantes
de sete escolas públicas de Los Angeles
foram presos e deportados com suas famílias.
No parque perto de minha casa, babás
entram em pânico e fogem quando
percebem um homem filmando o local.


A cidade de Pasadena cancela as atividades
em praças públicas durante o verão,
temendo a presença do ºœÓ. Torcedores
brasileiros venderam seus ingressos para
o Mundial de Clubes (que acontece em
vários estádios americanos) por medo da
polícia migratória. O ºœÓ tentou entrar no
estacionamento do estádio de baseball do
Dodgers, em Los Angeles, e foi impedido.
Comunidades se organizam pelas
redes, com pessoas se oferecendo para
fazer compras para trabalhadores sem
documentos com medo de sair às ruas.


Uma plataforma colaborativa na internet,
chamada People over papers (Pessoas
em primeiro lugar), é alimentado
diariamente com informações de civis
sobre aparições do ºœÓ no país. Também
existe agora um aplicativo – ºœÓ
Block, que serve para avisar sobre onde
policiais são vistos. Mas não é fácil.
Agentes podem estar à paisana ou disfarçados
como policiais municipais.


Em Los Angeles, junho é o mês dos
jacarandás. Cinquenta mil pés florescem,
decorando a cidade com suas copas lilases.


Em um domingo, vou com meu filho
ao campus da Universidade da Califórnia
em Los Angeles (Ucla) para ver as árvores.
É um dos meus lugares preferidos na
cidade. Gramados extensos, prédios modernistas,
um parque de esculturas a
céu aberto pontuado por jacarandás.
Calhou de ser um dia de formatura e,
para chegar ao campus, passei por dezenas
de carros de polícia, que estavam ali
para proteger estudantes e familiares,
caso a polícia migratória aparecesse.
Esse é outro país. Ele não está nas
notícias, mas no que experimento.


*
Sábado, 14 de junho. Em Washington,
Trump se prepara para acompanhar
a parada militar que mandou fazer em
comemoração aos 250 anos do Exército
americano e de seu aniversário de 79 anos.


Pego um pedaço de cartolina dos trabalhos
escolares das crianças, me arranjo
com os pincéis e tintas e faço um cartaz,
preso a um pedaço de madeira, onde está
escrito: “Pense, Leia, Resista.” Às onze
da manhã, sigo para o Parque Palisades,
em frente à Praia de Santa Mônica,
onde acontece um dos 2 mil protestos
no país contra o governo Trump, organizados
pelo movimento Sem Reis.


Quando me aproximo, um policial em
um cavalo me diz que é proibido pedaço
de madeira na manifestação.
Eu me desculpo e começo a descolar
a madeira da cartolina. Alguém cutuca
o meu ombro. É uma senhora, também
com um cartaz: “Não precisa tirar a madeira.
Ele só estava sendo babaca.” Seguimos
as duas para o parque. Meia hora
depois, 3 mil pessoas estão reunidas ali,
a maioria branca e certamente com cidadania.
Muitas estão de rosto tapado.


A revista Wired, especializada em
tecnologia, publicou dois artigos sobre
como se cuidar em passeatas. Um dos
conselhos é cobrir o rosto para se prote-

ger das tecnologias de reconhecimento
facial. Cuidado se for de carro, porque
câmeras podem registrar a placa. Deixe
seu telefone em casa, pois a polícia é
capaz de interceptar o sinal de telefones
e reconhecer o nome e o número do
usuário. Cuidado ao tirar fotos e publicar
nas redes: você pode estar expondo
outros manifestantes.


Foi lindo, caro leitor. Mais do que um
protesto, foi uma confraternização. Eu
me dei conta de quanto estava sozinha e
angustiada ao sentir o alívio da cumplicidade,
no contato com outros manifestantes.


Havia crianças, gente em cadeira
de rodas, hippies, milionários, celebridades
disfarçadas com óculos e chapéus.
Em Washington, 200 mil pessoas
assistiram à parada militar de Trump.
Em todo o país, mais de 5 milhões de
pessoas participaram dos protestos contra
o presidente.


Termino essa carta em fins de junho,
depois de Israel e os Estados Unidos
bombardearem o Irã, e o Irã bombardear
as bases militares americanas no Catar.
É o início da Terceira Guerra Mundial
ou um ataque pontual? Se o objetivo era
destruir as instalações nucleares, por que
uma emissora de tevê em Teerã foi bombardeada?
Por que Trump sugeriu aos
iranianos fugir da capital? O cessar fogo
anunciado por Trump irá de fato ocorrer?


Eu não tenho respostas, mas isto eu
sei: enquanto a atenção pública se volta
para a política externa, Narciso Barranco,
de 48 anos, jardineiro e ilegal no
país, pai de três fuzileiros navais (um
deles veterano do Afeganistão), foi derrubado,
atacado com spray de pimenta
e agredido com socos por quatro homens
da patrulha de fronteira do ºœÓ.
Barranco teve o ombro deslocado e
passou mais de 24 horas em um centro
de detenção em Los Angeles. Sem receber
cuidados médicos, água ou comida.
Ele é só um entre milhares de
trabalhadores detidos diariamente.


O que levamos conosco é o que lembramos.
Eu gostaria de me lembrar de
2025 como o ano em que, depois dos
incêndios na Califórnia, saí à rua para
me molhar quando caiu o primeiro
temporal. O ano em que adotei e me
apaixonei por um cachorro e em que
meu filho escreveu um poema sobre
estar só em meio a bilhões de pessoas.


O ano em que caminhei com minha
filha pela neve fresca entre árvores gigantes
e amei da melhor forma meu
companheiro. O ano de viagens e momentos
bons com meus pais, irmãs e
amigos. Mas 2025 também é o ano em
que o governo americano faz pessoas
desaparecerem, levando-as para outros
países. O ano em que 300 mil pessoas,
até o momento, morreram em várias
partes do mundo devido aos cortes de
verba da Usaid. O ano em que o presidente
dos Estados Unidos planejou
construir uma base de dados com informações
privadas de todos os americanos
e comemorou o seu próprio
aniversário com uma parada militar
que pode ter custado 92 milhões de dólares.
O ano da resistência civil.


“Que você possa viver em tempos
interessantes.” Já ouvi essa frase algumas
vezes, e se a internet estiver certa
trata-se na verdade de uma praga chinesa.
“Interessante” não é o modo como
queremos viver nossa estada na Terra.


Viver num tempo chato, com um governo
imperceptível e com todo mundo
convivendo em paz é melhor. No momento,
não é o que temos. E não há
muito que possa ser feito, por enquanto,
além de estar ciente do que acontece.


Creio que é essa a parte que me toca:
saber. E passar adiante o que eu sei. J

PIAUI 

 

July 23, 2025

Justice Department Told Trump in May That His Name Is Among Many in the Epstein Files

 

President Trump and Attorney General Bondi at the White House.

 By Sadie Gurman Annie Linskey Josh Dawsey andAlex Leary

July 23, 2025 3:08 pm ET

When Justice Department officials reviewed what Attorney General Pam Bondi called a “truckload” of documents related to Jeffrey Epstein earlier this year, they discovered that Donald Trump’s name appeared multiple times, according to senior administration officials. 

In May, Bondi and her deputy informed the president at a meeting in the White House that his name was in the Epstein files, the officials said. Many other high-profile figures were also named, Trump was told. Being mentioned in the records isn’t a sign of wrongdoing.

The officials said it was a routine briefing that covered a number of topics and that Trump’s appearance in the documents wasn’t the focus.

They told the president at the meeting that the files contained what officials felt was unverified hearsay about many people, including Trump, who had socialized with Epstein in the past, some of the officials said. One of the officials familiar with the documents said they contain hundreds of other names.

They also told Trump that senior Justice Department officials didn’t plan to release any more documents related to the investigation of the convicted sex offender because the material contained child pornography and victims’ personal information, the officials said. Trump said at the meeting he would defer to the Justice Department’s decision to not release any further files.

The meeting set the stage for the high-profile review to come to an end. Bondi had said in February that Epstein’s client list was “sitting on my desk right now to review.” Trump said last week in response to a journalist’s question that Bondi hadn’t told him that his name was in the files.

The administration didn’t publicly announce the decision until weeks later on July 7, when the Justice Department posted a memo on its website. The statement, which was unsigned, stated that a thorough review had turned up no list of Epstein’s clients, no evidence that would lead to an investigation of uncharged third parties and no additional documents that merited public disclosure. It said that much of the material would have been sealed in a trial to protect victims and to block the dissemination of child pornography.

Typically, the FBI doesn’t disclose materials that aren’t related to a charged offense.

“This is another fake news story, just like the previous story by The Wall Street Journal,” said White House communications director Steven Cheung.

Projection on the US Chamber of Commerce building demanding President Trump release Epstein files.
A message projected on the U.S. Chamber of Commerce building across from the White House on July 18. Photo: alex wroblewski/Agence France-Presse/Getty Images

In a statement to the Journal on Friday, Bondi and the deputy attorney general, Todd Blanche, said nothing in the files warranted further investigation or prosecution. “As part of our routine briefing, we made the President aware of the findings,” they said.

On Tuesday, Blanche said on X that the Justice Department was seeking to arrange a meeting with Ghislaine Maxwell in the coming days to discuss any possible information about anyone who has committed crimes with Epstein.

Maxwell was found guilty in 2021 of helping Epstein’s sex trafficking and sentenced to 20 years in prison. She has been in custody since she was charged in 2020 and didn’t testify at her trial.

One of Maxwell’s lawyers, David Oscar Markus, confirmed the discussions and said, “We are grateful to President Trump for his commitment to uncovering the truth in this case.” Maxwell has been seeking to have her conviction overturned, contending she didn’t receive a fair trial. 

Both Epstein and Trump said years ago that they had a falling out. On Wednesday, after the publication of this article, Trump’s spokesman Cheung said: “The fact is that The President kicked him out of his club for being a creep.”

Trump has said their friendship ended before the financier was indicted for soliciting prostitution in 2006. Epstein later pleaded guilty to procuring a minor for prostitution in 2008, served time in a Florida jail and registered as a sex offender. When Epstein was arrested again in 2019, Trump said he hadn’t talked to Epstein for about 15 years. Epstein died in jail that year while awaiting trial on federal charges of sex trafficking.  

FBI Director Kash Patel has privately told other government officials that Trump’s name appeared in the files, according to people close to the administration.

Patel declined to answer an inquiry from the Journal about the Epstein case, but said in a statement that the memo on the Justice Department website explaining why the department wouldn’t release more Epstein documents was “consistent with the thorough review conducted by the FBI and DOJ.”

Details of Bondi’s meeting with Trump haven’t been previously reported. Trump’s advisers had for months, including during the presidential campaign, said they would release the files, and Trump, while at times equivocal, indicated he would support the release.

Trump’s supporters, including some now serving in senior roles in the administration, claimed that the documents would expose global elites and powerful Democrats who spent time with the disgraced financier.

The decision to not release the files has triggered the most serious backlash from Trump’s political base since he launched his bid for the White House a decade ago, with a vocal group of the president’s allies seeing the move as a massive betrayal. 

Trump has told administration officials in recent weeks that he wanted the growing public attention on Epstein to go away. On Tuesday, House Speaker Mike Johnson cut short the legislative session as some lawmakers demanded votes on more releases related to the Epstein files.

Grand jury testimony

Last Thursday, The Wall Street Journal published an article about a letter bearing Trump’s name that was included in a 2003 birthday album for Epstein, which was assembled before the financier was first charged. On Friday, Trump sued the Journal’s reporters, Journal publisher Dow Jones, parent company News Corp and executives, calling the letter “nonexistent” and alleging the article defamed him.

A spokeswoman for Dow Jones said, “We have full confidence in the rigor and accuracy of our reporting, and will vigorously defend against any lawsuit.” 

Trump responded to a question about the files from an ABC News journalist on July 15. U.S. Network Pool

Pages from the leather-bound album are among the documents examined by Justice Department officials who investigated Epstein years ago, according to people who have reviewed the pages. It’s unclear if any of the pages are part of the Trump administration’s recent review.

On Thursday, Trump said he had directed Bondi to “produce any and all pertinent Grand Jury testimony, subject to Court approval!” On Friday, Bondi and Blanche asked a federal court to do so, saying it was “a matter of public interest.”  

The grand jury testimony makes up only a portion of the more than 300 gigabytes of Epstein-related material the FBI compiled as part of the recent review. Among other material, the FBI confiscated digital and documentary evidence from Epstein’s properties in the U.S. Virgin Islands and New York in 2019 when he was arrested.

Grand jury testimony is subject to secrecy protections and faces potentially high hurdles for public release. Administration officials privately acknowledge that the court is unlikely to release the testimony.

On July 15, an ABC News journalist asked Trump, as he took questions from reporters at the White House, what Bondi told him about the Epstein files: “Specifically, did she tell you at all that your name appeared in the files?”

“No, no, she’s—she’s given us just a very quick briefing,” Trump responded. He also said Bondi had “really done a very good job” on the Epstein review.

Bondi-Bongino clash

Bondi clashed with Dan Bongino, the deputy FBI director, about releasing the files. Julia Demaree Nikhinson/Associated Press; Kayla Bartkowski/Getty Images

The decision to not release the files and the harsh fallout among the public has roiled some of Trump’s senior staff, who have staked their reputations on exposing the ties between Epstein and moneyed elites. 

Patel, the FBI director, and his deputy, Dan Bongino, had been in favor of releasing more documents, people familiar with their efforts said. 

Bongino has told colleagues that his association with the administration’s decision to keep the files private has eroded his credibility among the base of support that fueled his rise as a successful podcaster and media personality on the right, according to a senior administration official. Bongino didn’t respond to requests for comment. 

On July 9, after ABC News reached out to the White House about Bondi’s briefing to the president, Bongino and Bondi clashed in a meeting in which Bondi alleged that Bongino secretly provided information to the media to damage her reputation, people familiar with the meeting said. 

Bongino in turn exploded about Bondi, his face red, and called her a liar, a senior administration official said.