O ADOECIMENTO MENTAL DOS
TRABALHADORES BRASILEIROS
ATINGE CONTORNOS EPIDÊMICOS
p o r FA BÍOL A M ENDONÇA
Já se tornou de domínio
público a clássica
expressão “o trabalho
dignifica o homem”,
usada pelo sociólogo
Max Weber na obra
A Ética Protestante e
o Espírito do Capitalismo. No início do
século XX, o pensador alemão observou
que a vida laboral não era apenas uma necessidade
para a sobrevivência, mas também
um elemento essencial para a dignificação
humana e para a construção
de uma sociedade mais organizada e racional.
Mais de um século depois, a frase
perdeu o sentido para uma grande massa
de trabalhadores. Em vez de promover
dignidade, o trabalho tem provocado
o adoecimento mental de milhões de assalariados
ao redor do mundo. No Brasil,
em particular, o fenômeno tem ganhado
contornos epidêmicos.
Dados do Ministério da Previdência
Social mostram que o número de concessões
de benefícios por transtornos mentais
e comportamentais mais que dobrou
no País nos últimos dez anos, saltando de
221,7 mil, em 2014, para 472,3 mil, em
2024. As queixas vão de estresse, ansiedade
e depressão – cada vez mais frequentes
na sociedade – a patologias mais
graves, como esquizofrenia, bipolaridade
e dependência química. A realidade é,
porém, ainda mais preocupante do que
os números indicam. Além da histórica
subnotificação de distúrbios mentais
no País, os dados do governo referem-se
apenas aos trabalhadores formais, com
registro em carteira e direitos garantidos,
sem considerar o enorme contingente
de brasileiros jogados na informalidade,
resultado da acentuada precarização
do mundo do trabalho.
Esse quadro de adoecimento coletivo
é reflexo do que estudiosos chamam
de “sociedade do desempenho”. Nela, o
indivíduo é colocado no centro da força
laboral, tornando-se uma espécie
de “carrasco de si próprio”, como define
Tiago Ranieri, procurador do Trabalho
e diretor legislativo da Associação
Nacional dos Procuradores do Trabalho
(ANPT). “O capital, no atual estágio
do neoliberalismo, mercantiliza corpos,
vende a ideia fictícia de que o trabalhador
é empreendedor de si mesmo e cobra
dele uma performance cada vez mais
exigente. Isso traz sérias consequências
para a vida da pessoa, porque o desempenho
exacerbado gera, naturalmente,
o esgotamento”, explica.
Ana Maria, como pediu para ser identificada
nesta reportagem, trabalhou durante
17 anos em um banco privado. Começou
como aprendiz e chegou a gerente-
geral de agência. Cobranças excessivas,
assédios recorrentes por parte
das chefias, perseguições, humilhações
diante de colegas e até de clientes
a empurraram para um processo crescente
de adoecimento físico e mental. Há
dez anos ela é acompanhada por um psiquiatra.
Segundo a ex-bancária, os gestores
da instituição não tinham aptidão
para os cargos que ocupavam, tampouco
maturidade ou habilidades para liderar
pessoas. Foram promovidos por desempenho,
não por capacidade de liderança.
“Eles não sabem lidar com as pressões
que recebem dos seus superiores e
acabam descontando nos subordinados”,
avalia. “Desenvolvi três crises depressivas
por conta do trabalho e depois fui demitida.
Foram muitos anos de sobrecarga,
de jornadas extensas, que contribuíram
para o meu adoecimento mental.”
Nessas quase duas décadas
de banco, Ana Maria
precisou afastar-se algumas
vezes para tratar
a depressão. Ela lembra
que, ao retornar, era recebida com desconfiança
por seus superiores – um gatilho
que agravava ainda mais o seu quadro
clínico. Muitas vezes preferiu continuar
trabalhando doente a adiar o pedido
de licença, com receio de sofrer retaliações.
“Existe muito preconceito quando
o trabalhador se afasta por doença mental.
A empresa acha que ele nunca mais
vai ser engajado, e isso impede, muitas
vezes, que o profissional dê uma pausa
para se tratar de forma adequada. Muitos
colegas que se afastaram por um tempo
maior nunca mais recuperaram a posição
que tinham, foram excluídos”, diz.
“Cheguei a sofrer um assalto dentro da
agência quando já estava tratando a depressão,
o que agravou os sintomas, mas,
por medo do preconceito e de me sentir
escanteada, continuei trabalhando.”
De acordo com o neuropsiquiatra José
Waldo Câmara, professor do curso de
Medicina da Universidade Católica de
Pernambuco, é comum que trabalhadores
com algum tipo de transtorno mental
sejam estigmatizados no ambiente profissional.
“No começo, muitos preferem
trabalhar doentes, porque temem perder
o emprego. Continuam sofrendo, com
desempenho inferior, mas seguem. Chega
uma hora que não dá mais. Aí começam
a faltar, depois entram com licença
e, quando voltam, vão para a ‘sala de castigo’”,
afirma o médico, referindo-se ao
setor para onde muitos são transferidos
após o retorno. “O profissional assume
uma função insignificante, fica subutilizado
durante o período de estabilidade
previsto em lei, que é de um ano. Passado
esse tempo, acaba sendo demitido.” Segundo
ele, os diagnósticos mais frequen-
tes em seu consultório são de depressão,
ansiedade e transtorno pós-traumático,
geralmente causados por assaltos ou acidentes
de trabalho, além do estresse ocupacional,
ligado à carga excessiva, assédio,
metas inalcançáveis e más condições
de trabalho, fatores que podem desencadear
a Síndrome de Burnout.
Segundo dados do Observatório
de Segurança e Saúde no
Trabalho, entre as ocupações
mais afetadas pelo afastamento
por doenças mentais
relacionadas a acidentes de trabalho, a
profissão de motorista de ônibus urbano
é a mais impactada. Nos últimos 12
anos, mais de 6 mil profissionais foram
afastados de suas funções devido a essa
causa. Também é alarmante o número
de licenças por doenças mentais não acidentárias
entre vendedores do comércio
varejista: 69,4 mil entre 2012 e 2024. A
Norma Regulamentadora nº 1 (NR1), que
exige das empresas a adoção de medidas
para garantir a saúde mental no ambiente
de trabalho e que entraria em vigor em
maio deste ano, foi adiada para 2026. O
governo federal cedeu às pressões dos
empresários e anunciou que a norma
será implementada de forma educativa
e orientativa por um ano, entrando em
vigor de fato em 26 de maio do ano que
vem. Ao informar o adiamento da NR1, o
Ministério do Trabalho anunciou a criação
da Comissão Nacional Tripartite
Temática, formada por representantes
do governo, entidades sindicais e do setor
empresarial, para acompanhar a implementação
da medida.
O sociólogo Ricardo Antunes, professor
da Unicamp e com vasto repertório
de pesquisas sobre o mercado laboral,
identifica a plataformização do trabalho
como um agravante para o adoecimento
dos assalariados. Segundo Antunes,
esse novo modelo invisibiliza o trabalhador,
que, desterritorializado de um
ambiente físico de trabalho, como existia
no passado, se vê cada vez mais isola-
do. O especialista refere-se, aqui, aos profissionais
que trabalham remotamente,
no home office, aos que foram transformados
em pessoas jurídicas, os chamados
“pejotas”, e ainda àqueles que se entregaram
à lógica dos algoritmos, muitas
vezes como última alternativa de trabalho,
apesar da ilusão de estarem se tornando
“empreendedores”.
“Não é mais o cronômetro
de Taylor que
comanda o tempo
de trabalho, aquele
em que o operário
cumpria sua carga horária na fábrica
e ia embora para casa. Agora, o que
rege o sistema é a meta”, observa o pesquisador,
destacando que, com a mudança,
o capital tem a oferecer à classe
trabalhadora – seja ela masculina, feminina,
branca, negra, LGBT, indíge-
na ou imigrante – um novo paradigma.
“O resultado disso é que, além da perda
de dedos e mãos, o trabalho escravo, e
mortes nas indústrias, temos também o
adoecimento mental. O sistema de metas
passa a ser o objetivo do trabalho. Se
minha meta foi 100 hoje, não posso voltar
para os 80 amanhã, preciso ir para 110. E
isso me adoece, pois me dedico ao limite,
sentindo que estou sempre aquém. Em
algum momento, vou me exaurir. Aos
adoecimentos físicos se somam os psíquicos,
e aí vêm a depressão, a angústia
e, em alguns casos, os suicídios.”
Adriana Marcolino, diretora-técnica
do Dieese, aponta que parte do problema
está ligada à desregulamentação
da legislação trabalhista ocorrida nos
últimos anos, especialmente após a reforma
promovida no governo de Michel
Temer. Ela também destaca a subnotificação
dos casos. “Muitos não procuram
tratamento e, por isso, não são diagnosticados.
Quando chegam ao psiquiatra,
por vezes não se analisa a trajetória ocupacional
daqueles trabalhadores. Nesse
cenário de precarização e de fragilização
dos instrumentos que poderiam conter
esse retrocesso, a saúde do trabalhador
acaba sendo comprometida”, afirma. Não
bastasse, há ainda a insegurança de renda
dos informais. Estes, emenda a socióloga,
precisam submeter-se a longas jor-
nadas de trabalho para garantir uma remuneração
mínima para sobreviver.
Uma pesquisa da ONG Ação da Cidadania
sobre o perfil de entregadores de aplicativo,
divulgada no início de abril, revela
que mais de 40% desses trabalhadores
já sofreram acidentes, mas poucos conseguiram
afastar-se. Isso porque a maioria
(72%) não contribui com a Previdência
Social. Realizado no Rio de Janeiro e em
São Paulo, o levantamento mostra ainda
que mais de 90% têm essa atividade como
principal fonte de renda, e 56,7% trabalham
a semana inteira, com jornadas
superiores a nove horas diárias.
A jornada extenuante é apontada como
um dos principais fatores de adoecimento
dos trabalhadores, mas o debate
sobre a redução da carga horária ou o fim
da escala 6x1 ainda engatinha no Brasil,
a despeito das exitosas experiências internacionais
(leia mais no quadro abaixo).
“Parece que nos transformaram em pe-
ças de uma engrenagem antiquada e enferrujada,
girando em sistemas de consumo
e de relações de poder, sem respeito
aos tempos individuais e coletivos”, observa
o arteterapeuta Cleto Campos. “As
instituições, empresas e toda a sociedade
precisam se repensar, se refazer na direção
do autocuidado. Isso requer abrir-
-se para a vulnerabilidade, para o tempo
precioso do ócio criativo – o tempo para
si e para o outro.”
Aescalada dos casos de doenças
mentais também
tem relação com a pandemia
de Covid–19. Muitas
empresas mantêm o trabalho
remoto, que tem as suas vantagens,
mas também pode representar
um fator adicional de adoecimento em
razão do isolamento social. “O trabalho
é um dispositivo central nas relações
sociais. E, dentro dessa estrutura
capitalista neoliberal, compromete não
só os empregos formais, mas também
atravessa trabalhadores autônomos,
microempreendedores e pejotizados,
os chamados empresários de si mesmos”,
diz Ranieri. “Na sociedade do desempenho,
a disciplina e o controle são exercidos
pelo próprio trabalhador, que precisa
provar que é capaz de produzir e atingir
metas – uma realidade potencializada
pela nova morfologia do mundo do trabalho,
marcada pela digitalização dos empregos,
em que se constrói um sujeito de
direitos com viés individualista e mais
afastado das relações sociais.”
O Tribunal Superior do Trabalho tem
acompanhado de perto o avanço das doenças
mentais entre os trabalhadores e
deve lançar em breve um monitor com estatísticas
sobre o tema. Na avaliação do
ministro Alberto Barros Balazeiro, responsável
pelo Programa Trabalho Seguro
do TST, o empregado precisa de um
ambiente salutar e seguro para desempenhar
bem suas funções – o que inclui
uma jornada digna. “Com menos direitos
e maior precarização, esse trabalhador
está muito mais exposto ao adoecimento
mental. E, se não tiver proteção previdenciária,
vai acabar trabalhando doente.” •
CARTA CAPITAL
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