Viúva de Lennon é tema de uma mostra em Londres
que a celebra como pioneira do feminismo na cena
artística e propõe uma nova visão sobre sua relação
com o beatle
FELIPE BRANCO CRUZ
A HISTÓRIA sobre como John Lennon e Yoko Ono se co-
nheceram é indissociável do imaginário sobre os Beatles.
Em 9 de novembro de 1966, o cantor visitou uma exposição
numa galeria londrina. Lennon afirmava não saber quem
era Yoko, mas a artista japonesa sabia quem ele era, claro, e
o acompanhou pessoalmente no tour. Lennon se interessou
por obras como uma modesta maçã verde num pedestal. Ao
perguntar quanto custava, Yoko jogou o valor lá em cima:
200 libras (pouco mais de 1 200 reais). Atrevido, o roqueiro
pegou a fruta e mordeu — e a artista não gostou. Outra peça
que chamou a atenção foi Ceiling Painting, que consistia nu-
ma escada com uma lupa para olhar um pedaço de papel no
teto com a inscrição “sim”. Ele ficou maravilhado ao ler algo
tão positivo. Mas a obra que fez os olhos do beatle se pren-
derem em Yoko foi Painting to Hammer a Nail In (Nº 9).
Tratava-se de uma placa na parede na qual era possível mar-
telar pregos. Lennon perguntou se poderia bater num deles.
Yoko disse que custaria alguns centavos. “Vou dar a você
5 xelins imaginários e martelar um prego imaginário”, ele
respondeu. Ela sorriu — e ambos nunca mais se separaram.
Algumas das obras que contribuíram para o engate do
famoso romance integram o acervo de Yoko Ono: Music of
the Mind, exposição que acaba de entrar em cartaz na Tate
Modern, em Londres — e é a maior retrospectiva da artista
já feita no Reino Unido. Mais que espiar os bastidores do re-
lacionamento dela com Lennon, a mostra é uma oportuni-
dade para examinar algo menos óbvio: qual o valor, afinaL
do legado de Yoko Ono como artista plástica? Com 91 anos
completados no domingo, 18, ela até hoje é vista por muitos
como a megera responsável por separar os Beatles e minar a
carreira do marido — ainda por cima, ganhando fama com
isso. Os 200 itens em exibição em Londres — incluindo ob-
jetos, textos, instalações, filmes, músicas e fotografias —
lançam uma provocação que inverte essa lógica: e se, na ver-
dade, foi justamente o casamento com Lennon que inibiu a
carreira de uma mulher destinada a brilhar nas artes?
Embora a premissa seja controversa, a exposição resga-
ta indícios de que Yoko foi de fato uma artista pioneira e
capaz de romper barreiras quando ainda não conhecia o
beatle. Vídeos do início dos anos 1960 recuperam perfor-
mances criadas e protagonizadas por ela que são exempla-
res do que viria a ser chamado de arte feminista — bem
antes de a tendência surgir. É o caso de Cut Piece, de 1965,
em que Yoko entrava numa sala vestida, entregava uma te-
soura ao público e deixava que cortassem pedaços de sua
roupa até ela ficar nua. A artista tinha uma sensação real
de violação, mas o que lhe importava eram os questiona-
mentos que surgiam no público.
Yoko foi uma mulher ousada numa seara que, apesar
de moderna e liberal, ainda era dominada por homens.
Tanto que ela se irritou quando seu nome não foi credita-
do entre os criadores de um de seus primeiros happenings
— a forma de arte contemporânea em que é impossível
dissociar a experimentação estética da pura piração. O
único crédito que lhe deram foi como dona do loft onde a
coisa toda acontecia em Nova York. Ainda assim, Yoko foi
se impondo — em trabalhos solo ou no grupo Fluxus —
como desbravadora da então nascente arte conceitual, al-
tamente influenciada pelo trabalho iconoclástico do fran-
cês Marcel Duchamp (1887-1968).
Quando Yoko se uniu a Lennon, veio o efeito colateral: a
parceria potencializou não seu ímpeto inovador, mas a auto-
complacência tão comum entre artistas contemporâneos,
realçando certa obviedade pueril de suas obras. A obsessão
pela paz, que nasceu dos traumas de infância no Japão du-
rante a Segunda Guerra, converteu-se numa militância ri-
ponga e algo demagógica junto do marido (canções como
Imagine tinham ressonância inegável em sua época, mas ho-
je podem soar ingênuas). De artista de vanguarda, ela pas-
sou a surfar na fama — e daí vieram lances lamentáveis co-
mo a tentativa de virar cantora em discos ao lado de Len-
non. De uma coisa, contudo, Yoko não pode ser acusada: de
ter enriquecido à custa do beatle. Vinda de uma família
abastada, ela é herdeira de um dos maiores bancos do Japão
e estudou com filhos do imperador do país. Imagine se ti-
vesse sido Yoko Ono, apenas.
VEJA
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