August 27, 2023

Sete mitos mostram que o agro é importante, mas não é tudo

 

 


É inimaginável o futuro do país sem o agronegócio. Mas é evidente que a imagem de
futuro do Brasil não pode ser reduzida à envelhecida metáfora de celeiro do mundo. É
hora de fazer o que gerações anteriores fizeram em diferentes momentos do século XX:

ARILSON FAVARETO

 

Nos últimos anos tornou-se conhecido o slogan “Agro é tech, agro é pop,
agro é tudo”. Nenhuma mensagem ganha tamanha repercussão sem um
fundo de verdade. De fato, o agro brasileiro é um caso de sucesso tendo
em vista uma série de aspectos: no intervalo de uma geração, o país saiu
da condição decitária na produção de alimentos para tornar-se um dos
maiores exportadores mundiais de grãos; e a riqueza gerada com as
commodities agropecuárias são, hoje, fundamentais para a balança
comercial brasileira – a César o que é de César.

O problema é que essa constatação encobre uma série de mitos que é
preciso desfazer. Anal, é ruim para o Brasil e é ruim para o próprio
agronegócio que sobre esse setor sejam depositadas expectativas que ele
não cumpre nem poderá cumprir. São pelo menos sete esses mitos.
Primeiro mito: a pujança do agronegócio brasileiro resultaria do
empreendedorismo heroico dos modernos produtores rurais e ao Estado
caberia não onerar o setor privado. Bem ao contrário disso, é preciso
lembrar que o relativo sucesso desse setor foi uma verdadeira invenção
do Estado brasileiro, um caso típico de atuação do que a economista
Mariana Mazzucato chama de Estado empreendedor. Uma geração de
engenheiros brasileiros foi formada sob patrocínio do governo brasileiro,
que os reuniu em uma empresa pública de sucesso mundial, a Embrapa.

A pesquisa ali produzida viabilizou uma agricultura tropical com
tecnologias difundidas por uma rede de empresas públicas de assistência
técnica e extensão rural. E a adoção dessas técnicas foi nanciada por um
sistema público de crédito rural. É verdade que hoje parte desses
instrumentos é conduzida pelo setor privado, mas não existe agro
moderno, mesmo atualmente, sem as mãos do Estado. E caberia
perguntar: com quais contrapartidas, além da geração de riquezas?

Segundo mito: a destruição da Amazônia não poderia ser posta na conta
do agronegócio, pois as modernas tecnologias aumentam a produção
sem demandar mais terra. Têm razão os líderes do setor quando dizem
que boa parte dos ganhos vem do crescimento da produtividade, e não da
expansão de novas áreas. Se é assim, por que suas organizações não
apoiam o reforço dos mecanismos de scalização e proteção ambiental
ou compromissos como o desmatamento zero? A resposta é simples.
Porque há muitos segmentos modernos que se beneciam da
competitividade espúria, produzindo a custos mais baixos justamente
pelo uso de práticas que ocorrem à margem da lei. Por exemplo, grandes
frigorícos vêm adotando protocolos de rastreamento dos fornecedores
de suas matérias-primas, mas há enorme diculdade em estender esse
rastreamento para os vários elos da cadeia, pois aí se chegaria às áreas
mais problemáticas. E há uma segunda razão: a expansão da fronteira
agrícola funciona como válvula de escape para tensões internas ao setor
empresarial – a brutal tendência de concentração do setor sufoca
pequenos e médios produtores, que só conseguem sobreviver com a
migração para novas áreas, acentuando o desmatamento.

Terceiro mito: desmatamento e erosão da biodiversidade, onde
ocorrem, seriam feitos nos limites da lei e representariam uma espécie
de custo do progresso. Porém, os dados sobre desmatamento mostram
que o argumento sobre legalidade não se sustenta. E a imagem das
chamadas “cidades do agronegócio” está longe de corresponder à
realidade. Estudo publicado pelo Cebrap mostra que, dos vinte
municípios campeões da produção, somente em três deles havia
desempenho superior à média dos respectivos estados em indicadores
econômicos e sociais. Na maior parte deles, a riqueza produzida não se
faz acompanhar de bem-estar. A razão é óbvia: parte ínma da riqueza
circula na própria região. Poucos centros urbanos prósperos restam
cercados por vários municípios que, apesar de produtivos, não se
beneciam disso. Mesmo a arrecadação de impostos é pía: a produção
de commodities é isenta de impostos de produção e circulação, graças à
extemporânea Lei Kandir; e o que se arrecada de Imposto Territorial
Rural no Brasil inteiro equivale a pouco mais do que o valor obtido com
IPTU de uma única cidade como Campinas. Em tempos de crise scal,
não seria o caso de rever esse mecanismo?

Quarto mito: o agro estaria puxando a geração de trabalho com seu
dinamismo. É verdade que tem havido expansão de empregos formais,
mas isso não tem sido suciente para compensar a perda de postos de
trabalho no setor. Entre os dois últimos censos agropecuários, 1,5 milhão
de ocupações desapareceram no agro brasileiro. Ocorre que a expansão
do setor se dá sobre áreas onde antes havia pequenos produtores e
comunidades tradicionais que têm seus meios de vida destruídos com a
substituição de cultivos, devastação das orestas e concentração da terra
e da renda. Mesmo empregos gerados nos centros urbanos próximos são
insucientes, porque não há transformação local da produção, e o setor
de serviços não absorve a mão de obra sobrante. Como consequência, há
geração constante de demanda para as políticas de transferências de
renda ou deslocamento dessas populações para outras regiões. Três
cidades-modelo da produção de soja – Sinop, Sorriso e Lucas do Rio
Verde –, juntas, têm aproximadamente a mesma população que habita
uma única Prefeitura Regional de São Paulo, no bairro da Vila Mariana.
Quinto mito: os grandes produtores seriam muito mais produtivos,
enquanto a agricultura familiar e de pequena escala seria inviável. Esse
argumento é utilizado para justicar a inadequação de políticas voltadas
a produtores familiares. É inegável que há uma tendência de
concentração da produção: hoje, menos de 9% dos estabelecimentos
produzem 85% do volume total na agropecuária. Mas, quando se divide o
valor da produção por hectares dos grandes estabelecimentos e se
compara o valor obtido por hectare pela agricultura familiar, o resultado
é basicamente o mesmo! Há um segmento da agricultura familiar que
produz, com pouco ou nenhum apoio e de forma desconcentrada, tanto
ou mais do que o grande agronegócio, o que favorece maior ocupação de
trabalho e a circulação dessa riqueza nos municípios interioranos.

Sexto mito: a população mundial seguirá crescendo e o Brasil atenderá a
demanda por produção de alimentos e para a diminuição da fome,
sustentando o dinamismo do país. O que se sabe é que a população
mundial seguirá crescendo nas próximas décadas, mas isso já se faz em
ritmo mais lento do que aquele experimentado no século XX. E o serviço
demográco das Nações Unidas aponta que deve ocorrer estabilização na
casa dos 10 bilhões de habitantes antes do m deste século. Além disso,
novas regiões produtoras devem emergir. E está em curso uma
verdadeira revolução nas formas de produzir, como demonstra o novo
livro de John Wilkinson, com papel cada vez maior para a produção
próxima dos centros consumidores e menos intensiva em recursos
naturais. Mesmo a China, principal destino de nossas exportações, vem
passando por uma transição que deverá mudar gradativamente a relação
com o Brasil. Além disso, boa parte da fome no mundo não deriva de
indisponibilidade de alimentos, e sim da falta de meios para que a
população mais pobre consiga comprá-los, como se sabe desde os livros
clássicos do Nobel de Economia Amartya Sen. Tudo isso exigirá uma
verdadeira reinvenção do agro brasileiro.

Sétimo mito: o agro brasileiro já estaria preparado para enfrentar os
desaos da sustentabilidade e das exigências por alimentação saudável.
O setor agroalimentar é responsável por algo entre um terço e metade
das emissões globais de gases estufa. A expansão de áreas dedicadas às
commodities conformam um dos principais vetores de erosão da
biodiversidade. No Brasil, as mudanças no uso do solo respondem pela
maior parte das emissões. Além disso, há aumento no número de mortes
evitáveis por doenças claramente associadas ao consumo de alimentos
ultraprocessados. Assim, serão cada vez maiores as exigências sobre as
formas de produzir alimentos ao longo de toda a cadeia. Não bastará o
argumento de que critérios socioambientais são protecionismo
disfarçado. Nem é suciente o principal vetor de inovações do agro
brasileiro: ganhos de produtividade baseados no uso de modernos
insumos industriais. O fato é que não haverá espaço nos mercados
mundiais para negócios que não estejam claramente comprometidos
com a saúde humana e o enfrentamento da emergência climática de
forma sistêmica, e não apenas pontual.

Diante de tudo isso, quais são os desaos para o Brasil? Os primeiros cem
dias do governo Lula não servem de parâmetro para o que está por vir.

Foi feito esforço considerável para retomar programas, reconstruir
estruturas e instrumentos de políticas públicas, fazer o país voltar à
normalidade, enm, discutir temas de interesse público em vez de
batalhas em torno de fake news e similares. Não é pouca coisa. Porém, as
grandes interrogações de ordem estrutural vão se impor na agenda
pública muito em breve.

1) Como a reforma tributária contribuirá não somente para tornar a
arrecadação mais eciente, mas também para promover discriminação
positiva, beneciando segmentos que geram contrapartidas sociais e
prejudicando segmentos que apenas se beneciam da propriedade da
terra para valorização patrimonial ou como forma de dominação e
competitividade espúria? Setores intensivos em recursos naturais e que
geram poucas oportunidades de inclusão produtiva continuarão
privilegiados?

2) O esperado programa de obras de infraestrutura reeditará a carteira do
antigo PAC, com obras esperadas pelo agronegócio que tendem a gerar
enorme impacto ambiental, como a Ferrogrão ou o asfaltamento da
rodovia que liga Porto Velho a Manaus? Ou haverá investimentos
coerentes com a ideia de Soluções Baseadas na Natureza? A expansão de
infraestrutura privilegiará a logística de exportação de bens primários ou
expandirá a oferta de internet no Brasil rural, criando condições para
desconcentrar as start-ups, hoje limitadas ao entorno de grandes
centros produtores, para as áreas interioranas, onde está a maior parte
dos estabelecimentos rurais e que precisam experimentar um salto de
produtividade com base em outro modelo tecnológico, coerente com a
ideia de uma sociobioeconomia?

3) O Brasil pretende sustentar sua inserção na economia do século XXI
em torno da produção de bens primários ou promoverá uma transição
sustentável, incentivando uma nova onda de inovações apoiada no que
há de mais moderno em termos de conhecimento e de tecnologia? Aos
mais pobres restará a inclusão por meio de transferências de renda e de
programas de compras públicas? Ou é possível pensar em uma nova base
econômica?

4) O que o país apresentará nas importantes reuniões internacionais
sobre o clima que acontecerão nos próximos dois anos ou na reunião do
G20, para lastrear sua ambição de liderar a pauta ambiental e social
internacional?

Uma coisa é certa: a estratégia de duas décadas atrás, de ter agendas
separadas, uma para o agronegócio convencional, outra para fortalecer a
política ambiental e uma terceira para a agricultura familiar, resultou em
jogo de soma zero ou negativa no Brasil rural. Houve redução no
desmatamento e aumentaram os recursos para a agricultura familiar. No
entanto, o número de pessoas ocupadas diminuiu, a dependência do
agronegócio aumentou, e o país perdeu biodiversidade e competitividade
internacional.

É inimaginável o futuro do país sem o agronegócio. Mas é evidente que a
imagem de futuro do Brasil não pode ser reduzida à envelhecida
metáfora do celeiro do mundo. É hora de fazer o que gerações anteriores
zeram em diferentes momentos no século XX: pactuar uma nova
agenda, pensando não a curto prazo, mas nas próximas décadas. Nelas, o
Brasil rural e interiorano pode desempenhar papel fundamental, desde
que não seja visto apenas como território de sacrifício, a serviço de uma
economia primária baseada na extração de seus recursos.

*Arilson Favareto é sociólogo, professor da Universidade Federal do
ABC, pesquisador do Cebrap e coordenador da Cátedra Itinerante sobre
Inclusão Produtiva no Brasil Rural e Interiorano.

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