March 15, 2023

O crime compensa

 


No Brasil, os escravocratas costumam pagar indenizações irrisórias às suas vítimas e raramente são presos


Por Fabíola Mendonça 

 

Pessoas muito pobres, em
sua maioria pretas e par-
das, sem acesso a direitos
básicos como saneamento,
emprego e moradia digna,
e oriundas de regiões com baixíssimo
Índice de Desenvolvimento Humano
(IDH). Esse é o perfil dos 207 trabalha-
dores resgatados de condições análogas
à escravidão que prestavam serviço às
vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton, na
Serra Gaúcha, todos vindos do interior
da Bahia. A descrição também vale pa-
ra os 32 homens em situação semelhan-
te resgatados em uma fazenda em
Pirangi, a 380 quilômetros de São Paulo,
fornecedora de cana-de-açúcar para a
marca Caravelas. Aliciados em cidades
pobres de Minas Gerais, eles migraram
para o interior paulista na esperança de
encontrar um emprego digno, mas, ao
chegar lá, foram submetidos a condições
degradantes. A dinâmica repete-se em
quase todos os casos de escravidão mo-
derna descobertos nas operações do Mi-
nistério do Trabalho e do Ministério Pú-
blico do Trabalho.

 
Em Minas Gerais, estado com a fis-
calização mais eficiente do País, é co-
mum ver pessoas em situação de misé-
ria do Vale do Jequitinhonha serem en-
ganadas com promessas de bons salários
para trabalhar em locais afastados, on-
de se tornam presas fáceis dos escravo-
cratas. “A classe social diz muito sobre
a escravidão moderna. Não por acaso, os
trabalhadores resgatados no Rio Grande
do Sul são do interior da Bahia e a maio-
ria dos resgatados em Minas Gerais é do
Vale do Jequitinhonha. Vemos também
um porcentual alto de vítimas oriundas
do interior do Maranhão. Estamos fa-
lando de municípios com baixo IDH, on-
de a fome leva muitos trabalhadores ao
desespero”, comenta a advogada e pes-
quisadora Lívia Miraglia, professora
da UFMG e coordenadora da Clínica de
Combate ao Trabalho Escravo e Tráfi-
co de Pessoas da universidade.

 
Segundo a pesquisadora, 92% dos
trabalhadores resgatados são homens e
a grande maioria dos flagrantes de es-
cravidão moderna ocorreram em ativi-
dades agrícolas, carvoarias e na cons-
trução civil. No trabalho doméstico, as
mulheres são as mais exploradas, repre-
sentam em torno de 80%, embora haja
relatos de homens escravizados tam-
bém. É o caso de Seu Amadeu, que vi-
veu por 13 anos em condições análogas
à escravidão na casa do próprio sobri-
nho. Ele trabalhava dez horas por dia na
lavoura de café e nos serviços domésti-
cos, não tinha acesso a água potável e se
alimentava mal, a ponto de estar desnu-
trido no momento do resgate, em 2015.

 
“Tinha de acordar de madrugada pa-
ra trabalhar forçado. Eu não podia me
sentar à mesa com eles, recebia comida
estragada. Ele me dava murros, socos,
pontapés e cabeçadas. Passava mal e
ele falava que era manha”, relata o agri-
cultor, em vídeo produzido pela Clínica
da UFMG. Diferentemente da grande
maioria dos casos de trabalho análogo
à escravidão, Seu Amadeu recebeu uma

M P T
indenização de 300 mil reais. “Mas o
que são 300 mil reais diante de 13 anos
de escravidão?”, indaga Miraglia, ao cri-
ticar as baixas indenizações fixadas pe-
lo Judiciário para as vítimas.

 
Valena Jacob, pesquisadora e coorde-
nadora da Clínica de Combate ao Traba-
lho Escravo da UFPA, observa que a le-
gislação brasileira contra o trabalho es-
cravo é robusta e reconhecida mundial-
mente, mas os magistrados relutam em
punir os escravocratas. “Quem é o juiz
que está no Justiça do Trabalho e na Jus-
tiça Federal? Tem algum homem preto
ou mulher preta por ali? A esmagadora
maioria é composta de brancos, de classe
média alta. Vemos um Judiciário muito
distante da realidade brasileira”, lamen-
ta. A advogada destaca ainda que muitas
das sentenças são favoráveis aos infrato-
res porque os juízes nem sempre enten-
dem que o trabalho degradante pode ser
classificado como análogo ao de escravo.

 
“O trabalhador está num barracão de
lona, no meio da mata, sujeito a todas as
intempéries e a animais peçonhentos.
Ele está bebendo água imunda do córre-
go, fazendo alimentação com essa água
sem nenhuma higiene, faz suas neces-
sidades no mato, é tratado como bicho.
Não está em condição análoga à escravi-
dão?”, indaga Jacob. “Por incrível que pa-
reça, alguns juízes acham que não, por-
que eles já viviam em situação de misé-
ria antes, sem banheiro em casa, bebendo
água do córrego. Logo, os empregadores,
os fazendeiros e os grandes proprietários
não poderiam ser responsabilizados.”

 
Com a nova redação aprovada em
2003, o artigo 149 do Código Penal não

deixa margem para dúvidas: “Reduzir
alguém a condição análoga à de escra-
vo, quer submetendo-o a trabalhos for-
çados ou a jornada exaustiva, quer su-
jeitando-o a condições degradantes de
trabalho, quer restringindo, por qual-
quer meio, sua locomoção em razão de
dívida contraída com o empregador ou
preposto” é crime e pode render até oi-
to anos de prisão. Mas a impunidade,
nos casos de responsabilização crimi-
nal, é quase uma certeza.

 
Um terço dos indiciados pelo artigo
149 nem sequer vai a julgamento e so-
mente 6,3% dos réus são condenados
definitivamente, revela uma pesqui-
sa da Clínica de Trabalho Escravo da
UFMG. Pior, apenas 1% dos acusados
é sentenciado a mais de quatro anos de
prisão e cumpre pena em regime fecha-
do. Quando a pena é inferior a esse pe-
ríodo, o condenado migra para o regi-
me semiaberto e pode pleitear a pres-
tação de serviços comunitários.

 
Jacob cita o caso de trabalhadores da
Fazenda Terra Roxa, no Pará, expulsos
do local à bala depois que denunciaram
o trabalho degradante a que eram sub-
metidos. As barracas onde eles dormiam
foram queimadas, para não deixar ras-
tro do crime, e o proprietário da fazen-
da acusou as vítimas de serem “loucas”,
para não pagar indenização. A Clínica
da UFPA levantou todas as provas e de-
nunciou o caso na Corte Interamerica-
na. O proprietário foi condenado a pa-
gar quase 500 mil reais de indeniza-
ção por dano moral coletivo, além das
verbas rescisórias devidas aos traba-
lhadores. A decisão foi confirmada
pelo TRT-8, mas o réu recorreu e
o resultado acabou totalmente
modificado na segunda instân-
cia desse mesmo tribunal.
“Foi a decisão mais absur-
da que li na vida. Para os
desembargadores da tur-
ma, seria necessário ha-

ver restrição à liberdade dos trabalha-
dores, por meio de capangas armados,
para ser configurado trabalho escravo.
Nenhuma verba rescisória foi paga, só
três meses de seguro-desemprego”, la-
menta Jacob, acrescentando que o Mi
nistério Público Federal entrou com re-
curso e o caso seguiu para o Tribunal
Superior do Trabalho.

 
Vice-presidente da Associação Na-
cional dos Magistrados da Justiça do
Trabalho, Viviane Leite explica que o
Judiciário é o último ator a entrar em
cena nos casos de trabalho escravo e
julga a partir das questões postas em
juízo pelo Ministério Público ou pe-
lo trabalhador individualmente. “En-
quanto julgador, a gente tem de se ma-
nifestar no caso concreto. O trabalho
degradante também pode ser praticado
sem a caracterização do análogo à es-
cravidão. A gente tem de avaliar o con-
junto das provas, não é apenas um fa-
tor que determina. Já temos pacificada
na doutrina a caracterização das jorna-
das exaustivas, do sistema de servidão,
do alojamento precário, sem condições
sanitárias, da alimentação inadequada,
da dificuldade de acesso, do castigo físi-
co e da privação de liberdade”, diz.

 
O procurador Italvar Medina, vice-
-coordenador nacional de Erradicação
do Trabalho Escravo no Ministério Pú-
blico do Trabalho, acrescenta que o tra-
balho de fiscalização também está pre-
judicado pela escassez de auditores. Des-
de 2013 não existe concurso e há mais de
1,5 mil cargos vagos. O procurador des-
taca, ainda, a necessidade de oferecer as-
sistência social para as vítimas, sobretu-
do nos municípios de menor porte.

 
“A fome e a brutal desigualdade social
deixam as pessoas fragilizadas. Elas são
facilmente aliciadas e enganadas me-
diante falsas promessas para traba-
lhar em locais distantes das suas re-
sidências, onde acabam sendo víti-
mas de trabalho escravo”, lamen-
ta Medina. “A escravidão moder-
na e a vulnerabilidade social es-
tão intimamente relacionadas.
É indispensável criar políti-
cas públicas efetivas para
proteger essas pessoas de
exploradores.” •.

 

 carta capital

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