October 15, 2018

Entre mitos e lacres, uma guerra civil de memes


SAULO DAMASCENO

Vivemos, definitivamente, uma guerra de banalidades. Substantivos complexos do debate político (esquerda, direita, democracia, fascismo, autoritarismo, socialismo, liberalismo etc.) foram transformados em adjetivos que funcionam como operadores da dinâmica política brasileira, cujo estado mais constante tem sido o da guerra de memes.

Longe de querer menosprezar a importância cultural e sociológica desses operadores “virtuais” – se é que podemos enxergar ainda a fronteira entre o virtual e o real, entre o online e o offline –, pretendo discutir a atual e peculiar dinâmica dos discursos políticos no país. Duas ideias me parecem orientar as condutas políticas das pessoas: a do mito e a do lacre. Mitar e lacrar têm sido o fio condutor de muitas conversas: “Lacrooou!” e “Mitooo!” correspondem (normalmente) à Esquerda e à Direita, respectivamente. Os óculos escuros, que, ao som de “Deal with it”, se posicionam lentamente sobre os olhos do enunciador, terminam de compor a narrativa. Enganam-se, no entanto, aqueles que acham que essa banalidade fica restrita às discussões cotidianas de “ignorantes”. Mesmo nossos intelectuais e nossos candidatos a cargos públicos, se não cederam completamente a essas dualidades rasas, pelo menos deixaram de encarar a realidade em toda a sua complexidade, seja por questões ideológicas, por interesses ou porque a bagunça está realmente difícil de lidar. O mais assustador é que pouco se fala dos perigos de tal fragmentação. Em tempos de “pós-verdade” é preciso estar atento, pois o inesperado talvez seja o mais provável... e quando nos dermos conta, talvez seja tarde demais.
Nutridos, principalmente, por uma espécie de nacionalismo, cuja bandeira era fazer piadas sobre a própria desgraça (a do povo brasileiro), os memes tinham inicialmente um tom sarcástico e irônico, que desestabilizava o debate político de maneira positiva. Quando, em 2013, observávamos o princípio da divisão entre “coxinhas” e “petralhas”, não conseguimos prever a maneira pela qual essa linha criativa, maleável e desestabilizadora dos memes seria apropriada pelos grupelhos que surgiam.

 Os memes se tornaram verdadeiras armas que cada um deles usou para travar suas respectivas guerras. Com isso, a linha combativa memética seguiu o rumo de uma fuga suicida e autodestrutiva.
Eis que chegamos às eleições e nos damos conta de que essas podem ser fortemente influenciadas (ou mesmo definidas!) por memes e dualidades rasas, com lutas do bem contra o mal, do novo contra o velho etc., com uma consequente (se já não presente) “fascistização” da política institucional. A reflexão e o argumento não têm tido espaço na arena da política; e, enquanto ocorrem escândalos de corrupção, reuniões no porão do Jaburu, perda de direitos, abusos no uso da máquina pública, nós, a sociedade civil, vamos nos estapeando, muitas vezes em nome “deles”, em vez de funcionarmos como mecanismos de freio e de contrapoder em relação à classe política e ao Estado. Certamente existem instituições, movimentos sociais e atores políticos no Brasil que encaram o jogo de maneira séria; no entanto, não farei uma lista deles, pois seria provavelmente enquadrado em um dos lados do grande Fla x Flu nacional; afinal, o que está em jogo é, antes de tudo, uma disputa por prestígio por meio da destruição do outro.

A imagem do “muro do impeachment”, este que começou a ser construído nas eleições de 2014, parece-me ainda ter alguma validade para a conjuntura, mesmo que se nos apresente de modo atualizado. Essa construção de discursos maniqueístas que visam acusar, apontar e destruir indivíduos e grupos (tanto com morte e agressão quanto acabando com um jantar em família) é o modo como o fascismo chega, hoje, até nós. A ode ao Lula (ou ao Moro ou ao Bolsonaro) e o ódio ao Lula só produzem um efeito: a manutenção coronelista da relação entre sociedade civil (des)organizada e Estado que observamos desde épocas imperiais. O que tem ficado claro é que precisamos, novamente (ou finalmente), de uma transição democrática. E o candidato que construir sua campanha sem ter como objetivo mitar ou lacrar, mas tentando dialogar ao máximo com os sentimentos estabelecidos em cada um dos pólos dessa fragmentação, será, ao meu ver, o que conseguirá chegar mais próximo de cumprir a missão que lhe cabe. Caso o contrário, tal como suicidas, continuaremos em marcha rumo ao abismo, conduzidos pelas vanguardas de uma guerra de memes generalizada.
* Livre-pesquisador do Ateliê de Humanidades e mestrando em Antropologia no Museu Nacional - UFRJ

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