July 6, 2018

Mbappé, Jesus e os Mascheranos do sofá



Márvio dos Anjos

Javier Mascherano foi um dos símbolos da gana argentina em 2014, quando a equipe de Sabella chegou à final contra a Alemanha e perdeu. Quatro anos depois, perdeu vaga no Barcelona, migrou para a China e, na seleção zumbi, foi uma imitação de si mesmo.

O sangue que escorria do seu supercílio esquerdo na vitória sobre a Nigéria evocava uma bravura, como que para justificar sua posição de titular. Quando Jorge Sampaoli perdeu a confiança, o comando e a vergonha, Mascherano foi fotografado ao seu lado, apontando para a prancheta, técnico ‘de facto’. Se a humildade temperasse a ânsia por glórias, talvez se deixasse no banco, liderando, mas sem atrapalhar.
O tempo passou por Masche tão rápido quanto lhe escapou Kylian Mbappé, que, aos 19 anos parece movido por todos os sonhos da França — alguns deles, muito especiais, evocados por um gesto público de solidariedade.
O jornal “L’Équipe” revelou que o atacante do Paris Saint-Germain doa seu salário por jogo a instituições de caridade. Seus empresários fizeram um acerto com a Federação Francesa de Futebol para que os 20 mil euros a que têm direito por jogo fossem pagos diretamente a ONGs que assistem crianças deficientes.
O exemplo deverá ser seguido por outros do lado africano da equipe bleu: o zagueiro Samuel Umtiti, camaronês como o pai de Mbappé, já anunciou intenção de acompanhar Kylian na solidariedade. Ainda que o Evangelho de Mateus seja contra caridade em público, é reconfortante saber que um dos prodígios do futebol, milionário antes dos 20, já entende que não precisa de tudo que ganha.
Só lhe falta entender o lugar da crítica: Mbappé decidiu boicotar a imprensa. Na Rússia, fala apenas com a transmissão oficial, enquanto corre do batalhão reporteiro da zona mista. O que levou o comentarista Éric Cantona, lenda do futebol e da galhofa, a apontar-lhe a arrogância e a sugerir-lhe outro emprego, mais discreto.
Haverá críticos bons e ruins, monsieur Mbappé, como haverá jogadores bons e ruins. A crônica esportiva é a tentativa de controlar dois cavalos que puxam uma biga: um é a análise do jogo em si, a mais correta sobre os modos de ganhar e perder; o outro é a representação dos anseios dos torcedores e o impacto sobre eles, que são afinal quem justifica o tratamento do futebol como tema de interesse público.
É nocivo neutralizar a aspecto emocional, porque o futebol é uma paixão; ao mesmo tempo, não é correto deixar de ponderar o contexto maior das ações, que às vezes se traduzem em sutilezas pouco captadas pelo grande público e até por alguns jornalistas. O pior cego — você sabe porque Nelson dizia — é o que só vê a bola.
Quem diz, por exemplo, que Gabriel Jesus teve má atuação contra os gigantes da Sérvia não percebeu sua movimentação no primeiro gol: o garoto se aproxima de Veljkovic e o “atrai”, como um ímã, até perto de outro zagueiro. Assim, escancara-se um imenso corredor na direita para a penetração de Paulinho. Sem esse magnetismo, Veljkovic estaria lá, fechando o portão. Pouco importa que Jesus esteja zerado na Copa: o Brasil não está. E isso graças a Jesus, que executou um movimento precisamente ensaiado por Tite, a fim de aproveitar a letalidade do volante.
Deixar de notar o que Jesus e Mbappé fazem no momento em que surgem no teatro mundial — com e sem a bola — é ser um Mascherano do sofá: uma imitação de especialista, narcisisticamente preso a tudo que é anterior ao jogo. Onde os favoritos são sempre os mesmos, onde os ídolos não falham e onde basta ver a bola e os nomões consagrados, como se nada mais os cercasse.

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