História da figura que marcou o Ocidente ecoa no drama dos refugiados
ADRIANA CARRANCA
Papai Noel
existe. Para ser mais exata, Papai Noel existiu. Seu nome era Nicolau.
Ele não nasceu no Polo Norte, mas na Grécia. Estivesse vivo hoje, seria
um imigrante na pequena Demre (antiga Myra), na costa mediterrânea da
Turquia — naqueles anos, por volta de 280, sob o Império Romano, que o
perseguia por sua religião: o cristianismo. Na Grande Perseguição de
Diocleciano, quando Bíblias eram queimadas e padres, obrigados a
renunciar, foi preso e torturado. Sobreviveu e, como bispo de Myra, é
lembrado pelo socorro às minorias e aos pobres, em especial às crianças,
às quais costumava entregar presentes em segredo, colocando-os à noite
dentro de sapatos deixados fora das casas. Ao saber de um homem prestes a
entregar as filhas para a prostituição por não ter o dinheiro exigido
na época para casá-las, decidiu ajudá-lo: visitou a casa durante a
madrugada, poupando o pai da humilhação de depender da caridade, e como
as janelas estivessem fechadas jogou pela chaminé três sacolinhas com
moedas de ouro — o suficiente para o dote de cada uma das jovens.
Ele foi canonizado séculos depois e tornou-se hábito dar presentes às crianças pobres no aniversário de sua morte, 6 de dezembro. A tradição viajou à América na bagagem de holandeses que desembarcaram em Nova York no século XVII. Eles o chamavam de “Sinterklaas”, transliteração de Santo Nikolaos (nos EUA, Santa Claus). Ao longo dos séculos, transformou-se no velho barrigudo de barba branca e roupa vermelha, ora pela pena de poetas, que reescreveram sua história misturada a outras lendas, ora de publicitários, que enxergaram na caridade do santo uma forma de aumentar o faturamento do comércio no Natal, empurrando a data para o dia 25. Na Europa, ele ressurge no século XX como Père Noel — Papai Noel.
Essa história fantástica, relatada por historiadores como Gerry Bowler, de “Santa Claus: A Biography”, com pequenas variações, me foi contada a primeira vez por um barqueiro, quando visitei Demre, às margens do Mediterrâneo. Talvez esta seja uma história familiar ao leitor, mas não pude deixar de notar a ironia que nela reside ao relembrar 2015 e a imagem do menino sírio Aylan, morto à beira da mesma costa que deu vida a Papai Noel.
Um ano em que vimos milhões de desesperados lançarem-se ao mar entre a costa da Turquia, onde Nicholas era bispo, e Evros, na Grécia, onde nasceu; perseguidos, como ele, que em busca de vida nova, deixaram um rastro de mortes na travessia — mais de 3,6 mil, dos quais 500 crianças como as que o clérigo costumava presentear. É um ano que não vai acabar, porque não só as imagens, mas as consequências do que produziu, voltarão a nos assombrar muitas vezes.
Um ano em que um milhão de pessoas, um terço das quais crianças, pediram por socorro às portas da União Europeia, expondo as fissuras de um continente mais desunido do que imaginávamos e desenterrando os vermes da xenofobia que julgávamos acabados, mas ressurgiram prontos para corroer seu tecido frágil, alimentando-se dos mortos deixados pelo terrorismo. Fenômenos que não deixarão 2015 acabar, porque estão longe de ter fim — tome-se como exemplo que 31 de dezembro chegará com apenas 184 refugiados realocados, entre os 160 mil que aguardam por um destino na União Europeia. Outros mais virão.
Um ano em que 16 milhões de crianças, uma em cada oito nascidas em 2015, vieram ao mundo em uma zona de guerra — em Síria, Iraque, Afeganistão, Iêmen, Sudão do Sul, República Centro-Africana — sob condições que limitarão seu desenvolvimento físico, cognitivo, emocional; e 13 milhões tiveram de deixar a escola pelos mesmos conflitos. O descaso cobrará seu preço mais tarde, e revisitaremos 2015 por gerações a vir.
Um ano que se aproximou do fim com um acordo histórico sobre o clima, mas teimará em não acabar porque as boas intenções só mudam o curso da História quando colocadas em prática. E o que vimos em 2015 foi a violação sistemática dos tratados internacionais anteriores — as leis humanitárias, a Convenção dos Direitos da Infância, a Convenção dos Refugiados e seus protocolos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Um ano que não terminará porque o futuro é construído com o que se faz agora — o que deixa de ser feito ou é feito à revelia de avanços e direitos já conquistados não produz amanhã, mas retrocesso. E voltaremos a este ano muitas vezes. Por isso, ontem foi Natal, mas 2015 está longe de terminar.
Ele foi canonizado séculos depois e tornou-se hábito dar presentes às crianças pobres no aniversário de sua morte, 6 de dezembro. A tradição viajou à América na bagagem de holandeses que desembarcaram em Nova York no século XVII. Eles o chamavam de “Sinterklaas”, transliteração de Santo Nikolaos (nos EUA, Santa Claus). Ao longo dos séculos, transformou-se no velho barrigudo de barba branca e roupa vermelha, ora pela pena de poetas, que reescreveram sua história misturada a outras lendas, ora de publicitários, que enxergaram na caridade do santo uma forma de aumentar o faturamento do comércio no Natal, empurrando a data para o dia 25. Na Europa, ele ressurge no século XX como Père Noel — Papai Noel.
Essa história fantástica, relatada por historiadores como Gerry Bowler, de “Santa Claus: A Biography”, com pequenas variações, me foi contada a primeira vez por um barqueiro, quando visitei Demre, às margens do Mediterrâneo. Talvez esta seja uma história familiar ao leitor, mas não pude deixar de notar a ironia que nela reside ao relembrar 2015 e a imagem do menino sírio Aylan, morto à beira da mesma costa que deu vida a Papai Noel.
Um ano em que vimos milhões de desesperados lançarem-se ao mar entre a costa da Turquia, onde Nicholas era bispo, e Evros, na Grécia, onde nasceu; perseguidos, como ele, que em busca de vida nova, deixaram um rastro de mortes na travessia — mais de 3,6 mil, dos quais 500 crianças como as que o clérigo costumava presentear. É um ano que não vai acabar, porque não só as imagens, mas as consequências do que produziu, voltarão a nos assombrar muitas vezes.
Um ano em que um milhão de pessoas, um terço das quais crianças, pediram por socorro às portas da União Europeia, expondo as fissuras de um continente mais desunido do que imaginávamos e desenterrando os vermes da xenofobia que julgávamos acabados, mas ressurgiram prontos para corroer seu tecido frágil, alimentando-se dos mortos deixados pelo terrorismo. Fenômenos que não deixarão 2015 acabar, porque estão longe de ter fim — tome-se como exemplo que 31 de dezembro chegará com apenas 184 refugiados realocados, entre os 160 mil que aguardam por um destino na União Europeia. Outros mais virão.
Um ano em que 16 milhões de crianças, uma em cada oito nascidas em 2015, vieram ao mundo em uma zona de guerra — em Síria, Iraque, Afeganistão, Iêmen, Sudão do Sul, República Centro-Africana — sob condições que limitarão seu desenvolvimento físico, cognitivo, emocional; e 13 milhões tiveram de deixar a escola pelos mesmos conflitos. O descaso cobrará seu preço mais tarde, e revisitaremos 2015 por gerações a vir.
Um ano que se aproximou do fim com um acordo histórico sobre o clima, mas teimará em não acabar porque as boas intenções só mudam o curso da História quando colocadas em prática. E o que vimos em 2015 foi a violação sistemática dos tratados internacionais anteriores — as leis humanitárias, a Convenção dos Direitos da Infância, a Convenção dos Refugiados e seus protocolos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Um ano que não terminará porque o futuro é construído com o que se faz agora — o que deixa de ser feito ou é feito à revelia de avanços e direitos já conquistados não produz amanhã, mas retrocesso. E voltaremos a este ano muitas vezes. Por isso, ontem foi Natal, mas 2015 está longe de terminar.
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