December 14, 2010

Tudo isto é COMPLEXO


Ao percorrer Alemão e Penha, Folha ouve relatos de violência policial e de alívio após o sumiço dos traficantes do morro


PLÍNIO FRAGA
DO RIO

Tudo isto é Complexo:

1) policiais conhecidos como Xavier, Birrô, The Flash e Júnior do Ipase, do 16º BPM, andam por ruas da favela da Vila Cruzeiro com a intenção de instalar uma nova milícia;
2) porcos estão comendo corpos de traficantes mortos pela polícia na mata da serra da Misericórdia;
3) traficantes, que estavam cercados pela polícia, fugiram de madrugada por escadaria escondida em beco que desemboca no número 270 da estrada do Itararé;
4) traficantes cercados desde sexta-feira pagaram R$ 1 milhão por cabeça para saírem de favela dentro de blindados da polícia;
5) moradores agora dizem que, sem traficantes, podem mandar os filhos à escola;
6) a polícia de fato assumiu o território antes controlado pelo tráfico, apreendeu grande parte do estoque de drogas e armas e assim aniquilou o que antes era o quartel general do CV.

Complexo é a palavra que abarca região de dezenas de favelas e define o emaranhado de acusações e problemas que ganharam voz livre desde domingo. Foi quando a policia e as Forças Armadas concluíram a expulsão de traficantes que dos Complexos do Alemão e da Penha.

A Folha passou cinco horas ouvindo moradores e circulando nas favelas da Penha e do Alemão.



Uma menina de 14 anos disse ter sido constrangida e agredida verbalmente por PMs por causa da tatuagem.
Tosca -feita com agulha e sumo da castanha de caju, que queima em vez de desenhar- diz apenas "D. V.".
Ela conta que os policiais chamaram-na de "vagabunda" e de "puta de traficante" por ter tatuado o que leram como "CV". Ela diz que não: são apenas as iniciais do nome do namorado ("D.") e de seu próprio ("V").

Se houve os que fugiram, os relatos sobre os que morreram sem que os corpos tenham aparecido se repetem. "Uma mãe me contou que foi pegar o corpo do filho lá no alto da mata. Viu outros dois corpos que estavam sendo comidos pelos porcos", diz Celso de Sousa Campos, o Binha, líder comunitário.

Moradores também elencam milicianos do conjunto habitacional Ipase, no bairro vizinho de Vicente de Carvalho, que já circulam pela Vila Cruzeiro, para tentar estabelecer o domínio da milícia. Dão nomes: Xavier, Birrô, The Flash e Júnior do Ipase. Como o policiamento quase todo foi deslocado para o vizinho Alemão, temem que esteja sendo preparado o terreno para a implantação da milícia. "Igualzinho no filme "Tropa de Elite 2'", assinala um morador.

X-9 EM AÇÃO

Não há mais vestígios de traficantes ou sequer ameaça de tiroteios. Vê-se grupos de policiais trabalhando. Muitos orientados por informantes, conhecidos como X-9. Normalmente são moradores, ex-traficantes que decidiram colaborar, familiares de quem trabalha no que o eufemismo da favela chama de "movimento".

Andam camuflados da cabeça (tocas ninja e óculos escuros) aos pés (coturnos de policiais). Usam casacos e coletes à prova de bala. Uma X-9 leva a polícia até a casa de outra mulher. Aponta uma foto de uma funkeira com tatuagem nas costas. A polícia pede para que a dona da casa levante a blusa.

A X-9 confirma: é ela. Após a saída da polícia, a mulher dá sua versão de como foi a abordagem. "Ele me disse: fala, piranha! Está me olhando de cara feia por quê? Seu macho foi embora? Agora todo mundo que deu para eles vai ter de dar para a gente também. Então o sr. vai me matar, respondi. Perguntaram se lá em casa tinha arma guardada. Eu disse: pode procurar. Se achar, me leva."

Uma senhora disse ter sido xingada porque policiais fizeram da cobertura de sua casa ponto de observação. "Todo dia tem um montão de homem na laje e eles nem pedem licença", reclama.

Outra afirma que um policial levou seu celular. "Disse que precisava checar se tinha ligação de traficante."

Um morador diz que os policiais tomaram-lhe R$ 400, que guardava perto da cama. "Sou biscateiro, mas o dinheiro era meu", chora. Um outro observa: "Por que você acha que está cheio de polícia andando no morro com mochila? Não é munição que eles levam ali não."

BILHETES

A dona de um salão de beleza, depois de ter por duas vezes a porta arrombada na procura por bandidos, colocou um bilhete: "Por favor, se quiser vasculhar o salão, não precisa arrombar de novo. É só ligar para esses números que os proprietários vêm abrir educadamente."



Outro comerciante fixou o cartaz com a frase: "A loja de roupa íntima já foi vistoriada pela Polícia Civil".

 A mãe de uma criança autista e tetraplégica de 11 anos diz que levaram de uma prima, que é sua vizinha, um tênis e uma camisa. "Ela não pagou nem a primeira prestação da fatura do cartão."

Seu filho ficou tetraplégico por falta de oxigenação na gravidez. Autista, estudava em classe especial em Ramos, mas a diretora dissolveu a turma, colocando os alunos com necessidades especiais junto dos demais.
"Meu filho não fala e não tem como acompanhar uma turma de sexta série. Então, deixei de levar para a escola. Tinha que descer e subir o morro empurrando a cadeira de rodas. Vamos ver se agora fazem uma escola mais perto", diz, esperançosa.

As queixas de roubos feitos pela polícia se repetem tanto que Binha, o líder comunitário da Vila Cruzeiro, conta rindo: "Já tem morador preparando um bolo de chocolate bem gostoso para deixar em cima da mesa. Eles roubam tudo. Até comida. Então tem gente querendo colocar veneno no bolo, porque olho grande morre pela boca."


A vida sob o tráfico também acumulava horrores. Adolescentes e até meninas consideradas bonitas eram andavam pelas ruas com restrição, porque os pais temiam que fossem tomadas à força para serem namoradas de traficantes, como aconteceu por diversas vezes, de acordo com moradores.

O tráfico torturava e matava aqueles que trouxessem contrariedade ou suspeita, por exemplo, de passar informações para a polícia ou facções adversárias. Deste tipo de terror, o complexo agora está livre.

Folha, 1 de dezembro de 2010

1 comment:

Anonymous said...

Uma conhecida minha que portava 900 reais para pagar a conta do seu cartão de crédito (é comum nas comunidades o uso compartilhado de cartões de crédito, daí o montante elevado), teve o dinheiro, o celular e até as jóias que usava roubados por PMs, sob a alegação de que seria dinheiro de amantes traficantes.
E não adianta reclamar, porque aí eles ameaçam "plantar" algum flagrante para incriminar a pessoa.