A firula, mesmo quando "desnecessária", faz parte do futebol como espetáculo e como disputa moral |
HÁ QUEM CONDENE a jogada de efeito "desnecessária". Perguntam: para que essa pedalada que não sai do lugar? Esse chapéu no meio de campo? Esse toque entre as canetas perto da lateral?
Discordo radicalmente. Entre a firula e sua repressão, fico com a firula. Por dois motivos. Primeiro: quem define o que é necessário ou não?
Dirão: necessária é a jogada que redunda em situação de gol. Ora, que pobreza de espírito.
O futebol é não apenas um confronto de técnica e estratégia mas também uma disputa, digamos, moral (no sentido amplo da palavra). Os fatores psicológicos ou emocionais contam muito na definição da supremacia de um jogador ou de um time sobre seu adversário.
Sempre me lembro de uma história contada por Djalma Santos. Já em fim de carreira, o grande lateral do Palmeiras tinha de vez em quando pela frente o então jovem e endiabrado ponta Edu, do Santos.
Quando isso acontecia, Djalma, logo nos primeiros minutos, tratava de aplicar um drible humilhante sobre o rapaz, para "aquietá-lo". Era como se dissesse: "Sabe com quem você está falando?". A tática, segundo ele, dava certo. Outros laterais, mais limitados, tentavam em vão parar Edu na porrada.
Gostei da resposta de Neymar quando o zagueiro Chicão, no último Santos x Corinthians, disse que ia "quebrá-lo no meio". O atrevido atacante respondeu: "Vem. Se você me achar...".
E olhe que Chicão não é nenhum brucutu. Como diria o Neto, é um baita jogador. Por sorte, não "achou" Neymar naquela tarde. Sorte de quem? De Neymar e dos santistas, claro, mas também de todo mundo que gosta de futebol bonito.
E aqui entramos no segundo motivo pelo qual defendo a chamada firula. Entre muitas outras coisas, futebol é diversão. O público quer ver coisas espetaculares, surpreendentes, desconcertantes. O torcedor pode até se irritar momentaneamente quando o drible é contra o seu time, mas é essa promessa de encantamento que faz a gente ir ao estádio.
Será que o torcedor corintiano não se diverte ao rever hoje, oito anos passados, a série de pedaladas que Robinho deu sobre Rogério no Brasileirão de 2002? Na hora doeu, mas hoje é possível contemplar com deleite aquela explosão de talento e ousadia.
Fico assustado ao ver a reação castradora de atletas, técnicos e boa parte da crônica esportiva diante de lances de irreverência e habilidade.
Garrincha, se atuasse hoje, seria executado em praça pública.
Será que esse impulso repressivo não faz parte, de algum modo, da onda de moralismo que assola o esporte, em termos mundiais? Assim como a condenação pública dos atletas que "pulam a cerca", a censura ao drible expressa, a meu ver, uma nada saudável aversão ao prazer.
Folha, 6 de março de 2010
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