Jacinto Antón
Do El País
Hitler queimava livros, mas também os lia. E o fato de fazer ambas as coisas — além de detonar a II Guerra Mundial e comandar o extermínio dos judeus — o torna um leitor muito especial.
Sua relação com os livros, inclusive com os que não queimava, não era amável. Incapaz de relações profundas e sinceras de amor e amizade — mesmo o que sentia por Eva Braun e por sua cadela Blondie seriam afetos envenenados —, Hitler tampouco nutria carinho pelos livros, uma marca dos bibliófilos decentes.
Da mesma forma que fazia com os países, as instituições e as pessoas, Hitler depredava os livros. Essa era sua forma de lê-los. Ele mesmo explicou seu método de leitura abusivo e oportunista em “Mein kempf” (Minha Luta).
“Ler não é um fim em si mesmo, mas sim um meio para alcançar um fim.” A leitura, em geral, servia para confirmar opiniões que já tinha. “Tiro dos livros o que necessito”, disse certa vez. Não lia nunca por prazer, embora lesse muito. “Os livros eram seu mundo”, escreveu seu amigo de juventude August Kubizek. Hitler chegou a Viena muito pobre, mas com quatro caixas repletas de livros. Em sua época de agitação política, quando não estava fazendo discursos ou andando pelas cervejarias, passava o tempo lendo.
Almanaques e enciclopédias
“Claro que ler muito não significa ler bem”, frisa Ian Kershaw, em sua monumental biografia “Hitler”. “Ler não era algo que fizesse para se ilustrar ou para aprender, mas sim para confirmar seus preconceitos.” Kershaw questiona ainda a ideia de que Hitler tenha lido tudo o que havia colecionado. Parece que, dos clássicos da literatura, teria lido bem pouco. Não gostava de romances. Por outro lado, apreciava muito o subgênero antisemita (o que não surpreende).
Gostava muito das enciclopédias e dos almanaques, de onde podia extrair, para impressionar, muita informação em pouco tempo. E ainda as obras sobre ocultismo. Foi encontrado entre seus livros — e isso não é uma piada — o título “A arte de tornar-se um orador em poucas horas”. Hitler tinha um fraco, e talvez essa seja sua única faceta sincera como leitor, por relatos do explorador Sven Hedin e pelos faroestes de Karl May. Isso não impedia que acendesse os cigarros de oficiais nazistas com páginas em brasa das obras de May.
Muito já se escreveu sobre a biblioteca de Hitler, de cerca de 16 mil volumes, sua composição, as obras que de fato leu, e os livros que contribuíram para afirmar suas (más) ideias. Agora, um livro apaixonante, “A biblioteca privada de Hitler — os livros que moldaram sua vida”, de Timothy W. Ryback, rastreia com habilidade detetivesca e pulso literário, as obras que teriam sido decisivas, por seu significado emocional ou intelectual, na vida do Hitler leitor.
O líder nazista chegava a ler um livro por noite, revela o autor, mas era superficial.
Muito pouco de Shakespeare, quase nada de Nietzsche e Schopenhauer.
Muita coisa de Nostradamus.
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