Há tempos não vejo guerras de opinião tão virulentas quanto as que se têm travado em torno da guerra de Gaza, sobretudo na internet, onde cada um diz o que quer, recusa-se a ouvir o que não quer e a subsequente gritaria abafa qualquer vestígio de raciocínio porventura existente.
Notem que digo “raciocínio”, porque me parece impossível, nas atuais circunstâncias, chegarmos a qualquer coisa sequer remotamente parecida com “razão”.
No momento, nada que se diga ou se mostre em favor de Israel terá qualquer efeito.
Para além da presente guerra propriamente dita, há outra que, há tempos, foi perdida pelo país — cuja capacidade de fazer propaganda, ao contrário do que acredita tanta gente, é inversamente proporcional ao seu poderio militar.
Além da amizade com os Estados Unidos, vilão preferido de meio mundo, e do questionável rótulo de “direita” que lhe foi pespegado, há uma série de fatores culturais e políticos que atuam permanentemente contra Israel. Para ficar apenas num ponto de óbvio apelo emocional, seus mortos e feridos nunca são filmados ou fotografados, salvo em hospitais ou caixões e, ocasionalmente, pela imprensa estrangeira. Os mortos tampouco são exibidos em procissões; eles têm sido, atentado após atentado, guerra após guerra, mortos que se contam em números — mas o que é um número diante da foto de uma criança morta?! Ao mesmo tempo, ao longo dos últimos anos, quando foguetes do Hamas eram lançados sobre o sul de Israel, as crianças iam para abrigos subterrâneos, e não para o meio da rua, providencialmente armadas com estilingues.
Ora, a foto de uma escola (vazia) destruída por um “míssil caseiro” (seja isso lá o que for) não tem uma fração do impacto da foto de um garoto de estilingue diante de um cenário de destruição.
Isso não justifica matança alguma, seja de um lado, seja de outro; mas o fato é que se criou, assim, a singular percepção de um povo intrinsecamente mau e sanguinário, que ataca criancinhas por pura maldade, contra um povo intrinsecamente bom e coitado, que só explode civis por falta de escolha.
Por ser um país desenvolvido cercado de vizinhos em diferentes estágios de “civilização”, Israel paga, guardadas as devidas proporções, o preço que a classe média paga, no Brasil, em relação à criminalidade nas comunidades carentes: para uma certa visão míope, é sempre a culpada, porque, em tese, nessa forma enviesada de análise, os bandidos são sempre inocentes — são apenas pobres reagindo à desigualdade social (o que, claro está, é uma baita ofensa à imensa maioria dos pobres, que sofrem na miséria sem nunca pensar em delinquir). Enquanto isso, os verdadeiros culpados pelas desigualdades, lá como cá, não são mencionados nem en passant — e, ainda que o fossem, continuariam onde sempre estiveram, ou seja, nem aí.
Já os líderes mundiais que não perderam tempo em se declarar contra a “reação desproporcional” de Israel pouco estão se lixando para o sofrimento das vítimas. Se a sua preocupação fosse realmente humanitária, o Sudão, por exemplo, não sairia das manchetes; só que as vítimas do Sudão não dão ibope.
Quando a China entrou de sola no Tibete, ainda outro dia, ouviram-se, no máximo, ligeiros resmungos protocolares — e, ainda assim, só porque o Dalai Lama é um veinho carismático, com bom trânsito em Hollywood.
Isso sem falar no antissemitismo, que, invariavelmente, aproveita para dar as caras quando tem a ótima desculpa de uma guerra para acobertá-lo. “Israelense” e “judeu” não são sinônimos: há incontáveis cidadãos israelenses que não são judeus, como há milhões de judeus que não são israelenses. Ainda assim, os dois termos se equivalem para efeitos de noticiário, de artigos, de posts enraivecidos em blogs. Seria até compreensível se a mesma equivalência servisse para “palestinos” e “muçulmanos”, mas esta é sempre cuidadosamente evitada. Às vezes, o uso (ou a omissão) das palavras revela muito mais do que o seu significado.
Apoiar os palestinos, o Hamas, o Hezbollah e os países árabes de modo geral é chique, é bacana e é uma garantia de popularidade com a soi-disant “esquerda”. Israel não terá o apoio da intelligentsia — que em geral é de uma extrema covardia e ignorantsia — nem se for completamente aniquilado, como quer o Hamas.
Aí ainda vamos ouvir o “fizeram por onde” que tanto se disse em relação ao ataque ao WTC; as Nações Unidas vão fazer tsk, tsk, o Papa vai condenar vagamente o exagero — e estaremos conversados.
Mas a verdade é que eu nem devia estar falando sobre isso. Minha opinião é descartada de saída em qualquer discussão a respeito do Oriente Médio: como venho de uma família dizimada pelo Holocausto, sou suspeita e, portanto, não posso me manifestar.
Cansei de ouvir isso até de pessoas supostamente inteligentes — e, de cansada, não discuto mais. Se o que você diz não vale nada a priori, o mais sensato é seguir os conselhos do professor Higgins e falar apenas sobre o tempo e a saúde.
Como é, tem feito muito calor por aí?
Cora Rónai
(O Globo, 15 de janeiro de 2009)
Notem que digo “raciocínio”, porque me parece impossível, nas atuais circunstâncias, chegarmos a qualquer coisa sequer remotamente parecida com “razão”.
No momento, nada que se diga ou se mostre em favor de Israel terá qualquer efeito.
Para além da presente guerra propriamente dita, há outra que, há tempos, foi perdida pelo país — cuja capacidade de fazer propaganda, ao contrário do que acredita tanta gente, é inversamente proporcional ao seu poderio militar.
Além da amizade com os Estados Unidos, vilão preferido de meio mundo, e do questionável rótulo de “direita” que lhe foi pespegado, há uma série de fatores culturais e políticos que atuam permanentemente contra Israel. Para ficar apenas num ponto de óbvio apelo emocional, seus mortos e feridos nunca são filmados ou fotografados, salvo em hospitais ou caixões e, ocasionalmente, pela imprensa estrangeira. Os mortos tampouco são exibidos em procissões; eles têm sido, atentado após atentado, guerra após guerra, mortos que se contam em números — mas o que é um número diante da foto de uma criança morta?! Ao mesmo tempo, ao longo dos últimos anos, quando foguetes do Hamas eram lançados sobre o sul de Israel, as crianças iam para abrigos subterrâneos, e não para o meio da rua, providencialmente armadas com estilingues.
Ora, a foto de uma escola (vazia) destruída por um “míssil caseiro” (seja isso lá o que for) não tem uma fração do impacto da foto de um garoto de estilingue diante de um cenário de destruição.
Isso não justifica matança alguma, seja de um lado, seja de outro; mas o fato é que se criou, assim, a singular percepção de um povo intrinsecamente mau e sanguinário, que ataca criancinhas por pura maldade, contra um povo intrinsecamente bom e coitado, que só explode civis por falta de escolha.
Por ser um país desenvolvido cercado de vizinhos em diferentes estágios de “civilização”, Israel paga, guardadas as devidas proporções, o preço que a classe média paga, no Brasil, em relação à criminalidade nas comunidades carentes: para uma certa visão míope, é sempre a culpada, porque, em tese, nessa forma enviesada de análise, os bandidos são sempre inocentes — são apenas pobres reagindo à desigualdade social (o que, claro está, é uma baita ofensa à imensa maioria dos pobres, que sofrem na miséria sem nunca pensar em delinquir). Enquanto isso, os verdadeiros culpados pelas desigualdades, lá como cá, não são mencionados nem en passant — e, ainda que o fossem, continuariam onde sempre estiveram, ou seja, nem aí.
Já os líderes mundiais que não perderam tempo em se declarar contra a “reação desproporcional” de Israel pouco estão se lixando para o sofrimento das vítimas. Se a sua preocupação fosse realmente humanitária, o Sudão, por exemplo, não sairia das manchetes; só que as vítimas do Sudão não dão ibope.
Quando a China entrou de sola no Tibete, ainda outro dia, ouviram-se, no máximo, ligeiros resmungos protocolares — e, ainda assim, só porque o Dalai Lama é um veinho carismático, com bom trânsito em Hollywood.
Isso sem falar no antissemitismo, que, invariavelmente, aproveita para dar as caras quando tem a ótima desculpa de uma guerra para acobertá-lo. “Israelense” e “judeu” não são sinônimos: há incontáveis cidadãos israelenses que não são judeus, como há milhões de judeus que não são israelenses. Ainda assim, os dois termos se equivalem para efeitos de noticiário, de artigos, de posts enraivecidos em blogs. Seria até compreensível se a mesma equivalência servisse para “palestinos” e “muçulmanos”, mas esta é sempre cuidadosamente evitada. Às vezes, o uso (ou a omissão) das palavras revela muito mais do que o seu significado.
Apoiar os palestinos, o Hamas, o Hezbollah e os países árabes de modo geral é chique, é bacana e é uma garantia de popularidade com a soi-disant “esquerda”. Israel não terá o apoio da intelligentsia — que em geral é de uma extrema covardia e ignorantsia — nem se for completamente aniquilado, como quer o Hamas.
Aí ainda vamos ouvir o “fizeram por onde” que tanto se disse em relação ao ataque ao WTC; as Nações Unidas vão fazer tsk, tsk, o Papa vai condenar vagamente o exagero — e estaremos conversados.
Mas a verdade é que eu nem devia estar falando sobre isso. Minha opinião é descartada de saída em qualquer discussão a respeito do Oriente Médio: como venho de uma família dizimada pelo Holocausto, sou suspeita e, portanto, não posso me manifestar.
Cansei de ouvir isso até de pessoas supostamente inteligentes — e, de cansada, não discuto mais. Se o que você diz não vale nada a priori, o mais sensato é seguir os conselhos do professor Higgins e falar apenas sobre o tempo e a saúde.
Como é, tem feito muito calor por aí?
Cora Rónai
(O Globo, 15 de janeiro de 2009)
No comments:
Post a Comment