Discussão remete às origens do tráfico de drogas no Brasil, tem associações com questões tratadas no México e na Colômbia e opõe quem vê nos funks 'proibidões' apologia ao crime ou o retrato da realidade
A multidão se espreme debaixo da lona azul, branca e vermelha na favela Nova Holanda, no Complexo da Maré, Zona Norte do Rio. É sábado, 3 de maio de 2025, e o baile anima a comunidade, controlada por traficantes do Comando Vermelho. Num canto, homens erguem seus fuzis, os canos se elevam acima das cabeças. São muitos, pelo menos 15 — cerca de R$ 1 milhão em armas de guerra. A massa humana levanta os braços, mostrando dois dedos, enquanto canta à capela: “Tropa do General com vários ParaFAL; Tá 2, tá 2”. ParaFAL é um modelo de fuzil; “tá 2” ou “tudo 2” é uma referência às duas letras da sigla do Comando Vermelho, CV.
O autor da música sobe no palco e pede ao microfone: “Segura, eu acho
que vocês não se lembram da música toda”. E completa: “É mais ou menos
assim. ‘Nós odeia ADA e TCP / Desde menor sou Comando, nós é relíquia”.
Marlon Brendon Coelho Couto da Silva, o MC Poze do Rodo, carrega um
cordão dourado no pescoço, que sustenta um medalhão com o nome de Jesus
gravado, tomando quase todo o peito. Em cada dedo exibe um anel. No
braço direito, empilha braceletes dourados.
Menos de um mês depois, Poze seria preso em casa pela Polícia Civil do Rio por tráfico, associação para o tráfico e apologia ao crime. Após quatro dias na cadeia, ganhou a liberdade e foi recebido, na saída do Complexo Penitenciário de Gericinó, por centenas de fãs. Numa demonstração de fama e força, no meio da multidão que se acotovelava, estava Mauro Davi dos Santos Nepomuceno, o Oruam, filho de Marcinho VP, um dos chefes do CV. O funkeiro subiu num ônibus para festejar a libertação de Poze.
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São cenas que incendiaram novamente o debate: o crime se apropriou da cultura das comunidades? A discussão, de muitos argumentos antagônicos, ganhou novos tons quando o secretário de Polícia Civil, Felipe Curi, usou a expressão “narcocultura” ao se referir às músicas do MC Poze — um tema que, para pesquisadores, magistrados, artistas e mesmo autoridades policiais, exige reflexão e remete à origem do tráfico de drogas no Brasil.
“O menino que vive na favela, no meio de um monte de arma, vai cantar a Glock do Alemão, não a garota de Ipanema” — DJ Marlboro, cantor e compositor de funk.
Avanço no vácuo do estado
O vídeo do baile de maio na Nova Holanda faz parte do inquérito da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE) que levou MC Poze à prisão, mas é apenas um entre dezenas que circulam nas redes sociais. Não é difícil encontrar registros de homens armados em shows realizados em áreas dominadas por facções do crime organizado.
No caso do CV, nascido dentro do sistema carcerário em 1979, o grupo ganhou impulso para fora dos presídios com a entrada em massa da cocaína no país. A partir disso, os traficantes precisaram criar estratégias para os pontos de vendas e transporte da droga. Os locais escolhidos foram as favelas e periferias, áreas com pouca atuação do Estado.
Um dos exemplos desse fenômeno é Francisco Paulo Testas Monteiro, o Tuchinha. Ele comandava a venda de drogas no Morro da Mangueira nos anos 1980 e usava de uma “política assistencialista” para ganhar o apoio dos moradores, que consideravam o traficante como um “benfeitor”.
— O tráfico se solidifica e passa a intervir mais no cotidiano da comunidade em razão do acúmulo de capital oriundo da venda de cocaína. Por ser uma mercadoria muito rentável, ela acaba financiando tudo isso. Depois, os traficantes começam a interferir nas associações de moradores e, a longo prazo, vão se apoderando de vários aspectos do cotidiano da favela — explica David Maciel, professor do programa de pós-graduação em Sociologia Política da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf).
‘Rap da invasão’
Segundo Maciel, o aumento da influência desses criminosos na vida dos moradores se consolidou com o que chama de “empreendedorismo violento”:
— Eles foram se tornando os donos daqueles territórios também pela capacidade de converter a violência em renda econômica. É usar a força e a exposição de armas para impor monopólio, controlar vendas e serviços, interferindo diretamente na realidade local.
Estabelecido o controle e a influência, a violência, a venda de drogas e as disputas territoriais logo se tornaram tema da cultura. Alessandro Visacro, analista de segurança e defesa e autor do livro “A guerra na era da informação”, sustenta que movimentos culturais legítimos acabaram apropriados pelas facções.
— O primeiro objetivo é a construção de um ethos (conjunto de valores e crenças) coletivo desses grupos armados. Não é por acaso que nos bailes funk, hoje, observamos dezenas de fuzis, porque o armamento faz parte dessa cultura. Isso fortalece o status, o reconhecimento social daquele indivíduo dentro daquela comunidade. É a ideologia de facção — analisa ele. — Além disso, a cultura se torna mais um instrumento de propaganda para captação e mobilização de uma massa quase infindável de recursos humanos, que são as crianças e os jovens nessas comunidades.
Um vídeo com o traficante Thiago da Silva Folly, o TH da Maré, alude à análise de Visacro. Na imagem, o bandido, um dos principais chefes do Terceiro Comando Puro (TCP), dança sobre um palco, durante um evento na comunidade. Atrás do criminoso, morto em 13 de maio deste ano pela polícia, duas crianças, com cordões no peito, imitam os movimentos do bandido.
Já o uso do funk para enaltecer chefes do tráfico e seus feitos criminosos é apontado há mais tempo do que Poze, de 26 anos, ou Oruam, de 24, têm de vida. Em 1995, a Polícia Militar apreendeu uma fita cassete com um funk, “Rap da invasão do Odir”, narrando como a quadrilha do traficante Odir dos Santos, do Comando Vermelho, tentou tomar a Vila do João, na Maré, do Terceiro Comando. O confronto entre as facções rivais ocorreu em 13 de março de 1995, e a fita foi apreendida em novembro daquele ano. Na época, o coronel Valdenir Martins, do 16º BPM (Olaria), definia os bailes como uma isca para aliciar jovens para o tráfico.
Hoje, diferentemente do que acontecia na década de 1990, essas produções ganham um alcance de público maior em razão das redes sociais. Para Felipe Curi, a difusão de músicas que “normalizam” a atuação das organizações criminosas é uma consequência da chamada “narcocultura”.
— A narcocultura nada mais é do que enaltecer a ideologia de uma facção por meio de uma manifestação dita cultural. Claro que não são todos os funkeiros e todos os MCs, mas muitos acabam sendo um instrumento de propaganda que exalta o crime, e isso é muito lesivo. Porque isso vai entrando na mente dessas crianças e desses adolescentes, e eles vão achando que aquilo ali é o correto. Ninguém aqui é contra a arte. Só estamos defendendo que não se pode, por meio disso, ser um instrumento de disseminação e dominação da ideologia de uma facção criminosa — afirma o secretário.
Narcocultura
Embora pouco usado no Brasil, o conceito de narcocultura é estudado há anos em outros países da América Latina, como México e Colômbia. Considerada um fenômeno social, ela é definida como um conjunto de práticas, expressões e símbolos que surgem a partir da influência do narcotráfico. Acadêmicos apontam que essa manifestação ajuda a moldar valores e a identidade das sociedades que a consomem.
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Um dos exemplos mais expressivos desse fenômeno, no México, é justamente a música. O “narcocorrido” é um subgênero de um estilo musical tradicional do norte do país. As músicas desse estilo originalmente contavam histórias de valentes fugitivos, pistoleiros e cavalos, e narravam batalhas como crônicas de acontecimentos. Posteriormente, esse estilo musical foi apropriado e ganhou um subgênero dedicado a exibir o mundo do crime, em que os traficantes assumem o papel de protagonistas.
O grupo Los Tigres del Norte, por exemplo, tem o álbum “Corridos Prohibidos”, dedicado a esse tipo de narrativa. Na música “Contrabando y Traición”, eles descrevem o transporte de drogas feito em pneus de carro. A influência do narcotráfico mexicano extrapola a música, chega ao cinema, à literatura e até à religião. No país, bandidos cultuam Nossa Senhora da Santa Morte, retratada como um esqueleto e que não é reconhecida pela Igreja Católica.
— As práticas criminosas em torno do narcotráfico no México constituem uma tradição de muitas décadas, estruturada de forma diferente da realidade brasileira. No México, as organizações criminosas se articulam, desde os anos 1970, com poderes políticos locais. Enquanto no Brasil, o tráfico se organiza de forma muito mais ocasional, desde os anos 1980, de forma quase doméstica. Mas o que a gente está vendo nos últimos anos é que isso, talvez, pode estar mudando — pontua Maurício Bragança, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor do artigo “A narcocultura na mídia: notas sobre um narcoimaginário latino-americano”.
Para Bragança, o secretário de Polícia Civil do Rio admite que vivemos num narcoestado ao reconhecer a existência da narcocultura:
— Afirmar isso é admitir que o Estado tem responsabilidade sobre o problema. Não é a música que naturaliza essa prática. A música é uma expressão de uma realidade, e o que está por trás dela é a naturalização da ilegalidade. E essa expressão não deve ser criminalizada porque estamos diante de uma manifestação da cultura popular. O que deve ser combatido são as raízes do problema.
Diversos pesquisadores latino-americanos se debruçam sobre como se estrutura a questão. Em seus estudos, a antropóloga mexicana Rossana Reguillo, por exemplo, já defendeu que o narcotráfico encontrou uma maneira de se comunicar com a sociedade do México, ao penetrar na vida cotidiana por meio de símbolos, objetos, cultos e crenças, com uma capacidade para disciplinar os imaginários e normalizar violência, agindo numa zona cinzenta que ela chama de “paralegalidade”.
Criminalização do gênero
No Brasil, porém, a historiadora Juliana Bragança, autora do livro “Preso na Gaiola”, argumenta que a associação do funk com a narcocultura é mais uma tentativa de criminalização do gênero musical. Ela conta que o funk brasileiro surgiu em 1989 e que, já nos anos 1990, havia um movimento de criminalização. Segundo a especialista, a partir dos anos 2000, com a implementação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), teve início uma perseguição mais direta aos artistas. Ela cita a prisão do DJ Renan da Penha, em 2009:
— Associar as letras de funk e rap ao crime acaba sendo uma forma de criminalizar as pessoas que consomem e produzem essas músicas. Mas isso está longe de ser algo novo. Hoje, o que está acontecendo é uma sistematização da criminalização do funk por meios legais, como é o caso da chamada Lei Anti-Oruam. Esse processo faz parte de algo maior que remete à perseguição ao samba no século passado, que é criminalização da cultura preta e periférica, uma tentativa de desqualificar e suprimir nossas expressões culturais.
Fernando Luís Mattos da Matta, o DJ Marlboro, participou do nascimento do funk nas periferias do Rio e viu o estilo musical se desenvolver. Ele atribui ao Estado a existência dos chamados “proibidões”, músicas com letras sobre tráfico e sexo, e aponta o arrastão na Praia do Arpoador em 1992, quando grupos de jovens levaram para a areia as brigas que aconteciam nos bailes, como um marco do surgimento desse estilo de funk.
— O Estado proibiu indiscriminadamente todos os bailes do Rio. Eram mais de dois mil, em clubes, quadras, escolas — recorda-se Marlboro. — Quando há essa proibição, o funk vai para dentro da favela. Até então, as letras pediam paz, falavam das mazelas da comunidade, mas de forma ordeira. Depois, passaram a ser da favela cantando para a favela. O menino que vive na favela, no meio de um monte de arma, vai cantar a Glock (modelo de pistola) do Alemão, não a garota de Ipanema.
Apologia ao crime ou crônica da realidade?
A discussão sobre os funks que exaltam facções e a guerra entre traficantes passa por uma questão legal: as letras fazem ou não apologia ao crime? O delito, previsto no artigo 287 do Código Penal, é definido como “fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime”. A pena é baixa: três a seis meses de detenção, além de multa. E é mais debatido do que registrado nas delegacias: no ano passado, segundo dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), foram apenas 26 ocorrências em todo o estado, cerca de um terço delas na capital.
“Por que não mostram as barricadas, o traficante armado oprimindo o morador? Nunca ouvi um funk falando disso” — Felipe Curi, secretário de Polícia Civil do Rio
Carmen Eliza Bastos de Carvalho, procuradora do Ministério Público do Rio (MPRJ), atuou num processo contra MC Poze, aberto em 2020 após a Promotoria denunciar o funkeiro por fazer um show, em março daquele ano, na Favela do Jacarezinho, na Zona Norte do Rio, na festa de aniversário do traficante Felipe Ferreira Manoel, o Fred do Jacaré. Poze foi absolvido em primeira instância pela apologia e pela corrupção de menores. No recurso, julgado em fevereiro deste ano, o crime de apologia já estava prescrito. Ela explica o que caracteriza o delito:
— Quando você incentiva a atividade criminosa, você está fazendo apologia ao crime. A letra das músicas elogia o tráfico de drogas. Ela estimula o crime contra a polícia, eles tratam a polícia como vermes, como uma coisa que tem que ser extinta. E isso cria aquela cultura no adolescente, na criança que mora ali.
Para a procuradora, não há dúvida de que Poze faz apologia em suas letras.
— Nesse processo em que atuei, era o aniversário de um traficante do CV e ele (MC Poze) vai para o palco e fica falando dos traficantes, dos chefes, parabenizando. Então, é tão claro que ele é ligado a uma organização criminosa, e que essa organização é o CV, e que ele não pode fazer show em outra comunidade (de outra facção) — diz ela. — Se você fizer uma música assim: “Vai lá, estupra fulana”, alguém iria questionar que isso é apologia ao crime? Agora, “Vai lá e mata os policiais, vai lá e vende drogas, vai lá e pega o fuzil”. Sabe qual é a diferença? É porque ao lado da guerra propriamente dita, bélica, tem a guerra informacional.
O advogado criminalista, professor e doutor em Criminologia e Direito Criminal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Reinaldo Santos de Almeida tem uma visão diferente de Carmen Eliza. A chave da questão, afirma, está no objetivo da letra.
— A intenção de enaltecer ou incentivar a prática criminosa é muito diferente de narrar uma realidade social vivida ou dramatizar experiências comuns a uma coletividade. A simples menção a armas, facções ou tráfico não configura automaticamente apologia. Isso seria criminalizar a linguagem, o símbolo, a representação artística, o que é incompatível com a liberdade de expressão — explica ele. — O uso de letras de funk como prova de crime tem sido uma estratégia persecutória seletiva.
Sem a visão dos moradores
Secretário da Polícia Civil, Felipe Curi afirma que há uma preferência por exaltar a narrativa dos criminosos em vez de falar dos moradores que sofrem com o tráfico:
— As pessoas dizem que eles estão apenas retratando a realidade de onde vieram. Mas, então, por que as letras e os clipes não mostram o sofrimento dos moradores que vivem sob as imposições do tráfico? Por que não mostram as barricadas, o traficante armado invadindo a escola, oprimindo o morador, cobrando taxa, assediando a filha do vizinho para forçá-la a um relacionamento? Nunca ouvi um funk falando disso.
Já Frank Baptista, o MC Frank, autor de funks como “Chatuba 157”, defende em nota que “a responsabilidade pelo aumento da criminalidade não pode ser atribuída à cultura periférica, mas sim à omissão do poder público”. Ele nega enaltecer o crime e afirma que suas letras são “para provocar reflexão sobre as desigualdades e a realidade das favelas”.
As defesas de MC Poze e de Oruam não se posicionaram.
O GLOBO