Fabíola Mendonça
O relógio marcava 10h45 da noite de uma quarta-feira atípica, quando a Câmara dos Deputados deu início à votação de uma emenda, na qual os brasileiros depositavam o sonho de liberdade. O ano era 1984 e o dia, 25 de abril. A votação entrou pela madrugada. A Emenda Dante de Oliveira, que estabelecia eleições diretas para presidente da República, acabaria derrotada pela covardia de alguns parlamentares. Faltaram 22 votos para os 320 necessários. “Quando a emenda não passou, eu me senti derrotado”, afirma Walter Casagrande, ex-jogador e comentarista esportivo, à época um dos líderes do grupo que ficou conhecido como “Democracia Corintiana”. “Aquela foi uma das noites mais tristes da minha vida. Depois de uma campanha belíssima, uma grande festa democrática pelo Brasil, perdemos por pouco. E isso só aconteceu porque deputados ligados aos militares fugiram do plenário e se esconderam nos seus gabinetes para não dar quórum”, relembra o jornalista Ricardo Kotscho, que cobriu tanto a votação quanto as caravanas País afora de apoio às Diretas Já. Mais de 5 milhões de brasileiros saíram às ruas para lutar por um direito usurpado durante duas décadas. E que só viria a ser exercido cinco anos depois.
A emenda das Diretas foi apresentada no início de 1983 pelo jovem deputado Dante de Oliveira, parlamentar mato-grossense de primeiro mandato. A proposta enfrentou resistência no próprio partido, o PMDB, antes de ganhar força, extrapolar os gabinetes do Congresso, virar assunto em escritórios, fábricas, assembleias, botecos e lares, e ser encampada pelos movimentos civis. Um ano mais tarde, a ideia de Oliveira reuniria todas as forças políticas de oposição ao regime no mesmo palanque, de Ulysses Guimarães e Franco Montoro a Tancredo Neves e Leonel Brizola, de Fernando Henrique Cardoso a Lula e José Dirceu.
A classe artística também esteve na
linha de frente do movimento, capitanea-
da por Chico Buarque, Fafá de Belém,
Dina Sfat, Cristiane Torloni e Regina
Duarte, que ainda não havia se conver-
tido em próspera pecuarista e uma faná-
tica bolsonarista. Além de Casagrande,
outra figura central do futebol a apoiar
a campanha foi Sócrates, o doutor. “Foi
uma enorme emoção caminhar por um
País que não sabia muito bem como tinha
se perdido, mas que queria se reencon-
trar”, reflete Fafá de Belém. A cantora,
“musa das Diretas”, conforme a mídia da
época, produziu um dos principais, senão
o maior símbolo das Diretas: ao encerrar
a interpretação do Hino Nacional, a pa-
raense soltava uma pomba branca, para
delírio das multidões presentes nos co-
mícios ou em frente aos televisores. Mais
de 1 milhão de brasileiros participaram
dos dois maiores eventos, na Candelár
o Rio de Janeiro, e no Vale do
Anhangabaú, em São Paulo.
“O que aconteceu depois eu
não sei, porque fomos nos per-
dendo de novo, até vir a eleição
do Bolsonaro. Começa um no-
vo game, a extrema-direita xe-
nofóbica, feminicida, jamais
poderia voltar”, opina Fafá de
Belém. A arte dos cartunistas
Henfil, Ziraldo e Laerte traça-
va o caminhar do movimento.
“Para o comício do Anhangabaú, fiz um
cartum sobre a dívida externa. Era uma
pessoa que tirava o ‘X’ da palavra exter-
na, que estava na mão dele, e ele falava as-
sim: ‘Esse é o X do problema’ e a dívida vi-
rava eterna”, relembra Laerte.
Segundo José Dirceu, a campa-
nha das Diretas foi o resultado das lu-
tas contra o regime militar nos anos de
1970, que culminaram com a criação do
PT em 1980 e a eleição de vários governa-
dores de oposição em 1982. “A ditadura
usou todos os instrumentos, inclusive a
compra de votos, para rejeitar a Emenda
Dante de Oliveira. Depois, iniciou-se ou-
tro processo, uma disputa dentro da fren-
te democrática, um setor queria continu-
ar a luta e o outro caminhou para o Co-
légio Eleitoral. Com exceção do PT, to-
dos os partidos foram até o Colégio Elei-
toral e elegeram Tancredo Neves”, afir-
ma Dirceu. “Ao não derrotar os milita-
res, mas transacionar com eles, criamos
as condições para que, na Constituinte,
eles continuassem, e continuam até hoje,
com o poder que se autoatribuem. Tanto
que ressurgem no golpe contra a Dilma
e depois no governo Bolsonaro, um go-
verno militar-cívico. É gravíssimo o que
aconteceu, do ponto de vista histórico.”
O jornalista Juca Kfouri, criador do ter-
mo “Democracia Corintiana”, participou
ativamente das Diretas e define a campa-
nha como “um raro momento do Brasil
unido em torno de ideias libertárias, da
política feita com garra e alegria”. O saldo
é, porém, desanimador, lamenta. “Desco-
brimos que 21 anos de ditadura e desedu-
cação fizeram do Brasil um país dividido
entre democratas e fundamentalistas.”
Se, por um lado, a derrota da Emenda
Dante de Oliveira frustrou uma grande
parcela da população que defendia elei-
ções para presidente, por outro, deu início
a 40 anos de direitos civis mínimos garan-
tidos, apesar dos sobressaltos. “É o mais
longo período na história republicana de
uma democracia contínua. Ao mesmo
tempo é um período em que a democracia
tem sido ameaçada, não só com o 8 de Ja-
neiro do ano passado, mas, por
exemplo, com o impeachment
da Dilma, e tudo o que aconte-
ceu desde então: a prisão do Lu-
la e a própria eleição do Bolsona-
ro. A impressão que fica é de que
os acontecimentos recentes não
passaram de um grande acordo
entre o STF e o Congresso, para
impedir mais um mandato se-
guido do PT. E, para alcançar es-
se objetivo, cabia tudo, inclusive,
eleger alguém como Bolsonaro,
totalmente desqualificado e que
não respeita regras”, avalia o jor-
nalista Oscar Pilagallo, autor do
livro O Girassol Que nos Tinge,
com bastidores das Diretas Já.
Com a derrota da Emenda
Dante de Oliveira, estabeleceu-se a elei-
ção indireta, apoiada pelos militares. No
início de 1985, o Colégio Eleitoral referen-
dou a chapa Tancredo Neves, um oposi-
tor ambíguo, moderado e de longa carrei-
ra na política, e José Sarney, apoiador da
ditadura. Para completar a tragédia na-
cional, Tancredo morreria antes de tomar
posse e a população seria obrigada a su-
portar cinco anos de mandato-tampão de
Sarney, o vice, até ter o direito de escolher
o presidente por conta própria (bem, a es-
colha em 1989 não viria a ser exatamente
das melhores).
Além de um descalabro econômico no
fim do governo, a era Sarney foi marca-
da pela permanência não só dos milita-
res na gestão, mas de aliados da ditadu-
ra. “Não tivemos uma transição de rup-
tura, mas negociada. Por isso, até hoje es-
ses problemas em relação aos militares
não foram resolvidos. Os militares que-
riam sair, mas sair com garantias de que
não haveria perseguição, prisão ou ‘re-
vanchismo’. Os militares nunca deixa-
ram de estar presentes no poder, sem-
pre tiveram presença marcante nos go-
vernos civis”, destaca a cientista política
Vera Chaia, da PUC São Pauki
Após uma campanha suja e infame
Fernando Collor de Mello, o “caçador
de marajás”, seria o primeiro presiden-
te eleito pelo voto direto desde 1964. E
outra frustração. O desastre econômico,
associado a escândalos de corrupção, jo-
gou por terra as ambições do alagoano. O
primeiro eleito seria o primeiro a sofrer
impeachment, na esteira de uma campa-
nha popular liderada por jovens estudan-
tes, os “caras-pintadas”, que se espalha-
ria como rastilho de pólvora pelas ruas
brasileiras. “Lá nas Diretas, diante da
perspectiva de não aprovar a emenda,
Leonel Brizola levantou a hipótese de
prorrogar o mandato do João Figueiredo
até 1986, com o compromisso de, naquele
ano, ter eleições diretas para presidente.
Ele foi muito massacrado por conta dis-
so. Mas a história lhe deu razão, porque
se passaram seis anos até 1989, o tempo
que o conservadorismo precisava para a
mídia fabricar um candidato, o Collor”,
avalia o brizolista Vivaldo Barbosa. “Se
o calor do resultado daquela campanha
das Diretas fosse mantido, o povo mobi-
lizado, as esquerdas na rua, e se, naque-
le ambiente das Diretas, a eleição acon-
tecesse em dois anos, evidentemente o
conservadorismo não teria vez.”
Casagrande é saudosista ao relem-
brar a campanha e faz duras críticas aos
atuais ataques aos direitos civis. “Foi o
momento mais mágico que já passei na
minha vida, como cidadão brasileiro.
Muita gente morreu, foi torturada, desa-
pareceu, muita gente foi jogada no mar,
famílias foram destruídas pela ditadu-
ra porque queriam a democracia. E ela
chegou. Hoje, quem fala que houve frau-
de nas urnas, só pode falar isso, mesmo
que falsamente, porque estamos num re-
gime democrático”, ressalta. “Mentira,
fake news, racismo, estupro, homofobia,
violência contra a mulher, isso não é da
democracia. Além de defender a demo-
cracia política, temos de defender a de-
mocracia como comportamento, contra
todos os preconceitos, porque preconcei-
to não cabe na democracia.”
O cientista político Cláudio Couto, pro-
fessor da FGV, traça um paralelo entre o
Brasil de 1984 e o atual. Segundo ele, os
reacionários e autoritários detêm, ao con-
trário de 40 anos atrás, a capacidade de
mobilização social. “Não creio que a der-
rota da Emenda Dante de Oliveira pos-
sa explicar o quadro atual. São situações
muito diferentes, apesar de algumas se-
melhanças. Hoje temos o Congresso mais
à direita, desde o fim da ditadura, embo-
ra naquele momento o Congresso tivesse
um grande contingente reacionário, tan-
to que a emenda não passou. A diferen-
ça é, no entanto, que, naquele momento,
os reacionários eram uma força decaden-
te, enquanto agora estão em ascensão.
CARTA CAPITAL
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