Simone Duarte, de Lisboa
Na noite de 24 de abril de 1974, o jornalista João Paulo Diniz pediu um dos discos dos Beatles na discoteca da rádio e outra meia dúzia de álbuns que faziam sucesso na década de 1970, “para não dar nas vistas”. Quando entrou no estúdio para transmitir o programa Quatro Tempos, que normalmente ia ao ar das dez da noite às duas da manhã, todos os domingos, segundas, quartas e sextas, sabia da missão histórica que lhe cabia. Era uma quarta-feira. Pela manhã, Diniz tinha ido ao cemitério para visitar o túmulo do pai. Precisava conversar com ele, que, muito antes do nascimento do filho, estivera na prisão por se opor à interminável ditadura de António de Oliveira Salazar. Mais tarde, jantou com a mãe e contou o que ia acontecer. Ela ficou apreensiva: “Mas filho, o pai sofreu tanto… e se não correr bem?” À noite, já no estúdio da Rádio Peninsular dos Emissores Associados de Lisboa, preparou-se para colocar no ar a canção E depois do adeus, anunciando assim a primeira senha secreta que daria início à derrubada de quase cinquenta anos de regime ditatorial. Estava consciente de que não podia “defraudar a confiança” que haviam depositado nele. Aos 25 anos, tinha uma certeza: se tudo desse certo, o pai ficaria orgulhoso.
Dois dias antes, Diniz estava na rá- dio quando o chamaram à recepção. Um homem queria falar com ele. – Não se lembra de mim? – pergun- tou o estranho. – Não, da Guiné? – retrucou Diniz. Como a maioria dos jovens da épo- ca, o jornalista tinha estado “na tropa”, o que significava ter ido à guerra em uma das colônias portuguesas na África onde os movimentos de independência eram mais fortes: Angola, Moçambique e Guiné-Bissau.
Não – respondeu o homem, dizen-
do que tinha trazido uns discos de Is-
rael e perguntando se Diniz poderia
acompanhá-lo até o carro. – São novi-
dades, grandes sucessos, lembrei-me de
trazer para tu passares aí na rádio, vem
comigo até o carro.
O primeiro instinto de Diniz foi achar
que o desconhecido era da Pide (Polícia
Internacional e de Defesa do Estado), a
polícia política que dirigia a censura, per-
seguia, prendia, interrogava, torturava e
matava qualquer um que fosse visto como
inimigo da ditadura de Salazar, instaura-
da em 1933. Ali, começava o período do
Estado Novo. Em 1968, por motivos de
saúde, Salazar foi substituído por Mar-
cello Caetano e morreu dois anos depois.
Havia quatro anos, portanto, que a dita-
dura vinha sobrevivendo ao ditador.
Naquele abril de 1974, Portugal era um
país pobre, antidemocrático, conservador
e colonialista, isolado do resto do mundo.
O regime autoritário lutava contra os mo-
vimentos de independência nas suas colô-
nias africanas. Em treze anos, a Guerra
Colonial levou 90% dos jovens portugue-
ses, cerca de 800 mil, para os campos de
batalha, agravou a crise econômica do
país, considerando que nada menos que
37% do orçamento público eram destina-
dos ao conflito, e traumatizou a sociedade.
“Eu entrei no carro”, conta Diniz,
hoje aos 75 anos, sentado em uma das
mesas do simbólico café A Brasileira, no
bairro do Chiado, em Lisboa. Estava des-
confiado com o convite. “Era um Mini,
lembro que fiquei com o pé direito de fora,
não me sentei, não fechei a porta, porque
aquilo não me soou bem. Aí ele me disse:
‘Sou oficial da Força Aérea.’ Apresentou-
se: ‘Está aqui o meu cartão.’ Estava escrito
Costa Martins. ‘Precisamos de ti porque
vamos dar um golpe de Estado para derru-
bar o regime.’ Eu não acreditei, pedi para
não me chatear, disse que naturalmente
era coisa séria e que eu tinha mais o que
fazer, mas aí ele me interrompeu e pergun-
tou: ‘E se fosse o Otelo a falar contigo?’”
Otelo Saraiva de Carvalho tinha sido o
comandante de João Paulo Diniz na Gui-
né-Bissau. Diniz não quis se comprome-
ter. “O Otelo quer me ver? Não estou com
ele desde que voltei da Guiné, quero lhe
dar um abraço. Mas estou com imenso
trabalho, que tal no mês que vem?” Costa
Martins, o mensageiro do homem que
coordenava as operações do golpe que der-
rubaria a ditadura, insistiu que tinha de
ser naquele dia. Não podiam esperar.
Combinaram então de se encontrar no
Apolo 70, o primeiro centro comercial de
Portugal, entre nove e dez da noite.
Quando Diniz chegou, os três foram
para uma cafeteria. Otelo Saraiva de Car-
valho, um dos líderes mais importantes do
25 de Abril, disse que precisava dele para
transmitir na rádio a primeira senha da
noite que desencadearia as manobras mi-
litares. Queria que ele tocasse no progra-
ma de rádio a canção de Zeca Afonso,
Grândola, vila morena. Serviria como um
sinal para, segundo as palavras que Diniz
ouviu de Otelo, “as tropas avançarem, para
instalar uma democracia e acabar com a
Guerra Colonial, com aquela bagunça”.
O jornalista aceitou a missão, mas argu-
mentou que precisavam escolher outra
música. O cantor Zeca Afonso já havia
sido preso, tinha muitas canções censura-
das, iria chamar a atenção dos censores da
Pide. Diniz não tinha dúvida de que deve-
ria ser uma canção que não despertasse
suspeita. Sugeriu E depois do adeus, canta-
da por Paulo de Carvalho que representara
Portugal no Festival Eurovisão da Canção.
Combinou-se ali a frase que Diniz falaria
e o horário exato da transmissão: 23h55 do
dia 24 de abril. Quando se despediram, o
jornalista perguntou ao ex-comandante
o que aconteceria se algo não corresse bem.
– Vai correr bem – respondeu Otelo.
– Mas e se não correr? – insistiu Diniz.
– Se falhar qualquer coisa, tu, que és
civil, vais ser preso em Caxias, e nós,
que somos militares, vamos para o pre-
sídio militar da Trafaria.
À tarde do dia 24 de abril, Diniz re-
cebeu o aviso de que haveria uma mu-
dança de horário. Em vez de 23h55, a
transmissão teria de ser feita uma hora
antes, às 22h55. A frase que antecedia a
canção era essencial para desencadear
a operação na capital e arredores, já que
o alcance das estações de rádio de Lis-
boa não era nacional. Quando entrou
no estúdio, o jornalista pensou: “O.k.,
hoje é o dia. Não dá para falhar.” Mas
às 22h48, uma falha técnica suspendeu
a transmissão. Durou 3 minutos ape-
nas, mas pareceu uma eternidade para
os militares que esperavam o primeiro
sinal para entrar em ação. Diniz só sen-
tia o peso da responsabilidade e sonhava
com o fim da Guerra Colonial quando
pensou... “Vamos embora”:
Faltam 5 minutos para as 23 horas.
Paulo de Carvalho com o Eurofestival
74, E depois do adeus:
Quis saber quem sou
O que faço aqui
Quem me abandonou
De quem me esqueci
Perguntei por mim
Quis saber de nós
Mas o mar
não me traz
tua voz
Em silêncio amor,
Em tristeza enfim
Eu te sinto em flor,
Eu te sofro em mim
Eu te lembro assim
Partir é morrer
Como amar é ganhar e perder
A locução de Diniz durou exatos 8 se-
gundos. A música levou mais 3 minutos
e 19 segundos. E assim começou a su-
blevação dos militares nos quartéis da
capital. Otelo Saraiva de Carvalho co-
mandava tudo do Quartel da Pontinha,
em Lisboa. A revolução dos chamados
capitães de abril já estava no ar. Entrara
em curso a Revolução dos Cravos, que
logo obteria a rendição de Marcello Cae-
tano, sucessor de Salazar, acabando com
48 anos de ditadura em Portugal, a
mais longa do século xx na Europa.
A menos de 2 km dos estúdios da rá-
dio, o então jornalista, cantor e militante
político José Jorge Letria assistia no cine-
ma a Nosso amor de ontem, de Sydney
Pollack, com Robert Redford e Barbra
Streisand. Levara a mulher e um casal de
amigos para jantar antes de ver o filme
sobre a história de amor em pleno perío-
do de caça às bruxas aos comunistas nos
Estados Unidos. Aos 23 anos, e com um
filho de menos de 6 meses em casa, Le-
tria era um dos poucos civis portugueses,
menos de vinte, que sabiam da operação
militar para derrubar o regime. Não tinha
ideia se a revolução seria vitoriosa. Não
sabia se era a última sessão de cinema de
suas vidas, se era uma despedida. O filme
terminou antes da meia-noite, e ele e o
amigo deixaram as mulheres em casa em
segurança. Precisavam estar sozinhos
para sintonizar na Rádio Renascença e
esperar que o relógio marcasse meia-noite
e vinte. Assim foi. O amigo, que dirigia
um Citroën gs, parou em frente ao Hotel
Roma. Os dois, ansiosos, esperaram para
ouvir a contrassenha da noite. Dessa vez,
era mesmo Grândola, vila morena, a can-
ção de Zeca Afonso, que confirmaria que
o golpe estava em curso.
A música era a quinta faixa do álbum
Cantigas do maio, de Zeca Afonso, grava-
do em 1971. O disco estava trancado
um armário da Rádio Renascença, já com
os cortes da censura. Os agentes da Pide
costumavam usar pregos para arranhar as
faixas censuradas ou os discos inteiros.
José Jorge Letria emprestou o seu álbum.
Outra vez, uma falha aconteceu. À meia-
noite e cinco minutos da madrugada de
25 de abril de 1974, 15 minutos antes da
hora da senha, um corte de energia inter-
rompeu a emissão da Rádio Renascença.
Cinco minutos depois, a transmissão foi
normalizada. À meia-noite e vinte minu-
tos, durante o programa Limite, a senha
definitiva foi lida pelo locutor moçam-
bicano Teodomiro Leite de Vasconcelos.
O combinado era que ele falasse a primei-
ra estrofe de Grândola antes do início da
música. Era o sinal verde de que as unida-
des estavam preparadas e os militares re-
voltosos podiam sair dos quartéis em todo
o país. Leite de Vasconcelos leu:
Grândola, vila morena,
Terra da fraternidade,
O povo é quem mais ordena,
Dentro de ti,
Ó cidade.
José Jorge Letria soube da Operação
Fim-Regime duas semanas antes, mas só
foi informado da data exata do golpe pou-
cos dias antes de 25 de abril. “Uma das
razões para a escolha desse dia é que ha-
via um grande contingente de tropas em
Lisboa que estavam sendo mobilizadas
para a Guerra Colonial na África.” Além
disso, havia a questão da claridade. “Não
poderia haver um levante na Lua cheia,
tinha de ser uma noite de Lua minguan-
te”, conta Letria, que não consegue con-
ter a voz rouca nem os suspiros ao lembrar
aquele 25 de abril. “Eram três da manhã
e nós ficamos dando voltas em frente ao
Batalhão de Caçadores 5 até que os solda-
dos começaram a sair, centenas deles,
com as caras todas pintadas, prontos para
o combate. Foi a maior emoção da min
ida.” Letria lembra também de ter visto
uma cena insólita, quase de cinema. “Do
nada, apareceu um tipo embriagado de
smoking dentro de um Alfa Romeo; saiu
com a gravata na mão, indignado de ver
manobras militares de madrugada em
Lisboa e dizia algo do tipo: ‘uma pessoa
sai de uma festa e está sujeita a isto.’”
Nunca lhe devolveram o álbum com
a gravação de Grândola, vila morena.
Letria não se importa: quem afinal iria
exigir de volta o álbum da música que
viraria o hino da revolução?
“Eu não tenho cartão de visita,
mas se tivesse, escreveria as-
sim: um dos quatro que grava-
ram a Grândola”, sorri o ex-padre
Francisco Fanhais. Aos 82 anos, Fanhais
é um homem alto, magro, com um olhar
doce, que se emociona e chora toda vez
que fala em Zeca Afonso. Ele lembra o
dia, ainda no seminário, quando um pa-
dre lhe deu o disco do músico e disse
quase sussurrando: “Ouves baixinho.”
Quando ouviu a voz, o poema, a música
de Menino do bairro negro e Os vampi-
ros, pensou: “É isso que faz sentido.”
Cinco anos depois, em 1968, o padre
Fanhais, que cantava cantigas ao violão,
conheceu Zeca Afonso, um encontro,
diz ele sem hesitar, que mudou a sua
vida. Logo descobriram que o pai de
Zeca tinha sido tratado pelo pai de Fran-
cisco, que era médico. Tornaram-se
amigos. Zeca o convenceu a participar
do programa de tevê campeão de audiên-
cia na época: o Zip-Zip. O sucesso do
primeiro talk show da televisão portugue-
sa era tanto que a companhia de água e
esgotos registrava um pico do consumo
nos intervalos quando os telespectado-
res corriam para ir ao banheiro.
Em 1971, o padre Fanhais mudou-se
para a França. A Igreja o proibira de can-
tar em Portugal por causa dos sermões
que fazia contra a Guerra Colonial. Jun-
tou-se ao amigo Zeca na gravação do
álbum Cantigas do maio, no Château
d’Hérouville, nos arredores de Paris. A ca-
pital francesa, nas décadas de 1960 e 1970,
transformara-se no refúgio dos jovens por-
tugueses que escapavam clandestinamen-
te para não lutar na Guerra Colonial. Era
também onde os músicos, que compu-
nham e cantavam canções contra a dita-
dura, gravavam seus discos. Zeca Afonso,
Sérgio Godinho e José Mário Branco
eram contratados da gravadora portu-
guesa Sassetti. As gravações dos discos
aconteciam no castelo, que tinha uma
qualidade técnica inexistente em Portu-
gal. Durante a década de 1970, o Château
d’Hérouville se tornaria o estúdio predile-
to de astros do rock e do pop como David
Bowie, Elton John e Pink Floyd.
Durante quinze dias seguidos, entre
outubro e novembro de 1971, Fanhais,
Zeca, José Mário Branco e o músico que
acompanhava no violão, Carlos Correia,
apelidado de Bóris, gravaram o álbum.
José Mário Branco era o responsável pelos
arranjos e pela direção musical. Para
Grândola, vila morena, uma homenage
o cante alentejano, um canto em coro e
sem recursos de instrumentos, José Mário
queria os quatro músicos de braços dados
andando em círculos e arrastando os pés
no chão. “O chão do estúdio era muito
liso, por mais que nós arrastássemos os
pés, não fazia barulho algum”, lembra
Fanhais, o único dos quatro ainda vivo.
“O Zé Mário decidiu que só havia um lu-
gar possível: a parte de fora do estúdio em
que o chão era de brita, mas uma estrada
passava ao lado.” A solução foi gravar de
madrugada. Às três da manhã, os microfo-
nes foram colocados no chão, em roda, e
os quatro ficaram arrastando os pés, juntos,
caminhando em círculos, de braços da-
dos, reproduzindo a cadência dos passos
numa alusão aos cantores alentejanos que
caminham pelas ruas das vilas da região.
No dia seguinte, já no estúdio, colocaram
os fones, ouviram o barulho dos próprios
pés e começaram a cantar. Dois anos e
meio depois, Grândola, vila morena seria
a senha final para a derrubada do regime.
“Grândola nasce nos anos 1960 quan-
do Zeca Afonso é convidado para cantar
pela Sociedade Musical Fraternidade
Operária Grandolense, no Alentejo”, diz
o jornalista Nuno Pacheco, crítico de
música do jornal português Público.
“Ele gostou tanto de como foi recebido
na vila que resolveu escrever um poema
de agradecimento e depois o musicou.
Na gravação em Paris, aquele arrastar de
pés confunde-se um pouco com uma
marcha marcial, de tropa. A canção é
isso, o arrastar dos pés, sem instrumen-
tos, só vozes. Parecia algo de mobiliza-
ção, mas era uma declaração de amor à
Grândola. Ela é de fato mobilizadora,
um bocadinho como Pra não dizer que
não falei das flores, do Geraldo Vandré.
Quem ouve pensa: é para ir em frente.”
“O Zeca Afonso não era muito tocado
na rádio. Estava na lista negra da Pide”,
continua Pacheco. Mas o disco saiu e a
canção não foi proibida. Grândola então
passou a ser cantada em meios estudan-
tis, em associações. Teve o seu ápice num
evento organizado pela Casa da Impren-
sa, em um espetáculo no Coliseu, o pal-
co mais simbólico de Lisboa, apresentado
em 29 de março de 1974, menos de um
mês antes do início da Revolução dos
Cravos. Junto com Zeca Afonso, a multi-
dão que lotava o teatro cantou em peso
Grândola, vila morena. “Eu estava lá, no
Coliseu abarrotado, as pessoas cantavam
a plenos pulmões, mesmo com a Pide lá
dentro ̧ cantavam e gritavam ‘Morte à
Pide!’”, lembra o jornalista.
José Jorge Letria foi um dos organiza-
dores dos prêmios da Casa da Imprensa
no Coliseu. Estava no palco junto com
Zeca Afonso, Carlos Paredes, Adriano
Correia de Oliveira e os principais músi-
cos que viviam em Portugal e lutavam
contra o regime. “Até as dez e pouco da
noite, nós estávamos discutindo com o di-
retor-geral de espetáculos que dizia que era
melhor para nós e para o Estado que não
fizéssemos o concerto porque ia colocar
muita gente contra o regime”, recorda
Letria. “Nós decidimos nos bast
que íamos cantar.” Os músicos respeita-
ram os censores que já haviam proibido
que Zeca Afonso cantasse A morte saiu à
rua e Venham mais cinco, que diz:
Não me obriguem a vir para a rua
Gritar
Que já é tempo de embalar a trouxa
E zarpar.
Apesar dos pedidos que vinham da
plateia, os músicos também não desa-
fiaram os censores interpretando Os vam-
piros, cujos versos dizem:
No chão do medo tombam os vencidos
Ouvem-se os gritos na noite abafada
Jazem nos fossos vítimas dum credo
E não se esgota o sangue da manada
[...]
Eles comem tudo, eles comem tudo
Eles comem tudo e não deixam nada.
Mas Grândola, liberada pela censura,
estava no roteiro. Sete mil espectadores
cantaram a música em uníssono. “Era
comum”, conta Nuno Pacheco, “a Pide
liberar uma música para depois perceber
que ela tinha o poder de mobilização,
voltar atrás e proibi-la. Mas isso não acon-
teceu com Grândola.” Paulo de Carva-
lho, o intérprete de E depois do adeus, a
primeira senha da revolução na rádio,
diverte-se. “Às vezes a censura é estúpi-
da”, diz ele, rindo. “Se eu fiquei para a
história, foi por acaso, porque o João Pau-
lo Diniz achou que era complicado colo-
car uma música do Zeca Afonso.”
Ele então comenta sobre E depois do
adeus. “Foi escrita pelo José Niza. A can-
ção é inspirada nas cartas que o próprio
Niza escrevia para sua mulher durante
a Guerra Colonial. As primeiras estro-
fes são pequenos trechos dessas cartas”,
diz Carvalho e, em seguida, cantarola
baixinho: Quis saber quem sou,/o que
faço aqui,/quem me abandonou,/de quem
me esqueci... “Tenho orgulho e fiquei
marcado para sempre, mas não fiz nada
para que isso acontecesse. Tenho uma
enorme admiração pelo Zeca Afonso,
não só pela obra, que é muito importan-
te na renovação da música portuguesa,
mas pela pessoa. Ele era muito coerente
e Grândola é a música da revolução. En-
quanto eu estive por acaso, ele esteve
onde merecia estar.”
“O Zeca abriu janelas onde nem pa-
redes havia”, resume Sérgio Godinho,
ele próprio, um dos maiores nomes da
música portuguesa. Godinho é autor de
canções que são, há mais de cinquenta
anos, a trilha sonora de gerações de por-
tugueses, como Liberdade:
A paz, o pão
Habitação
Saúde, educação
Só há liberdade a sério quando houver
Liberdade de mudar e decidir
Quando pertencer ao povo o que o
povo produzir.
A canção, com seus versos impregna-
dos do espírito daquele tempo, foi lança-
da seis meses depois da Revolução dos
Cravos, quando Godinho voltou definiti-
vamente do exílio. Apesar de sua própria
importância musical, ele comenta sobre
a influência de Zeca Afonso: “Sempre foi
uma figura tutelar, um inventor, um des-
bravador. Na música brasileira, eu sinto
que houve uma continuidade. O Chico
[Buarque] bebeu do Noel Rosa, os mú-
sicos brasileiros são herdeiros de Ary
Barroso, de Dorival Caymmi. Nós aqui,
não... Então o Zeca, neste contexto, é um
inovador, rompeu com o fado de Coim-
bra, teve influência africana, do tempo
que fugiu da ditadura e foi trabalhar em
Moçambique. O Zeca era muito estimu-
lante, vivíssimo, um espírito muito inde-
pendente. Ele me fez acreditar que eu
podia escrever canções em português.”
O crítico Nuno Pacheco discorre so-
bre o contexto histórico. “A música em
Portugal começa a ser de contestação aí
por volta dos anos 1960, um bocadinho
na sequência de uma alteração que foi
feita de gênero e abordagem do fado de
Coimbra, e passaram por lá o Zeca Afon-
so, o Adriano Correia de Oliveira e o José
Niza, junto com tantos músicos que se
opunham ao regime. Eles se libertaram
daquela malha tradicional do fado de
Coimbra que falava de amores, desgra-
ças... e começou a nascer uma canção
mais limpa, menos ligada àquele modo
de cantar operístico de Coimbra. Essa
nova canção deu origem à chamada nova
música popular portuguesa, como foi no
Brasil a mpb. Aqui foi a mpp. Na verdade,
não era uma música ligeira que passava
na rádio nem nos festivais. Era uma mú-
sica mais balada, no princípio só com
violão, mas enriquecida com vários ou-
tros instrumentos. O Zeca Afonso e o
Adriano Correia de Oliveira foram dos
primeiros a cantar a pobreza, a imigra-
ção, o que agitava as pessoas naquela al-
tura. E o que agitava as pessoas naquela
altura era a Guerra Colonial. Eles canta-
vam de uma forma dissimulada porque a
guerra não se podia abordar diretamente,
se não os discos eram proibidos. A Pide ia
buscar os discos e não os deixava sair ou
proibia que tocassem na rádio: não era
proibido ser vendido, mas era proibido de
ser difundido, e se não tocava na rádio,
era como se não existisse. Isso foi andan-
do aos poucos da década de 1960 até
1974, quando eclode o 25 de Abril. Estes
discos, estas canções foram alicerces para
a luta clandestina contra o Estado Novo.”
Na véspera de completar 14 anos, o
hoje pianista e compositor de jazz
Mário Laginha estava ansioso
pelo dia 25 de abril. Como era tradição
na família, a avó chegava a Lisboa no
dia 24 para cozinhar para o aniversário
do neto no dia seguinte. O prato mais
esperado era a sobremesa de arroz-doce.
Com canela, ela decorava cada pote
de arroz com diferentes desenhos, se-
guindo a tradição em Salvaterra de Ma-
gos, no Ribatejo. Mas aquele 25 de abril
seria diferente. O pai, que saíra cedo
para o trabalho, voltou uma hora depois.
O adolescente entreouviu a conversa:
– Acho que houve uma revolução –
disse seu pai.
– Isso é bom demais para ser verdade
– respondeu a mãe
Eu primeiro pensei que algo mau es-
tava acontecendo. Minha mãe era profes-
sora de matemática, meu pai, funcionário
público. Não era uma família que falasse
de política. Eu não tinha cultura política
nenhuma. E, de repente, nada aconteceu
no meu pequeno mundo, ninguém veio
comemorar, ninguém me deu parabéns,
não houve festa, comecei a ficar irritado.
Ninguém estava a lembrar dos meus anos
até que comecei a perceber que meus pais
estavam a ficar muito contentes com algu-
ma coisa que estava a acontecer.”
No dia seguinte, o pai o levou para
passear de carro, de janela aberta fazen-
do o V de vitória. Mário cantava: vitória,
vitória, vitória. Os pais finalmente expli-
caram que viviam em um regime políti-
co ditatorial, em que as pessoas não
podiam dar a sua opinião, não havia li-
berdade de expressão. “Isso nunca era
assunto lá em casa. Começaram a ser
abordados temas que não eram falados.
Eu costumo dizer que tive um curso
básico de política em algumas horas.”
Zeca Afonso, José Mário Branco, Sér-
gio Godinho e Fausto são os quatro nomes
incontornáveis da geração de músicos
daquele período. “É claro que havia ou-
tros muito bons como o Adriano Correia
de Oliveira e o Luís Cília, para citar dois
deles, mas estes quatro deixaram um le-
gado extraordinário, imenso”, diz Mário
Laginha. “Eles todos tinham a consciên-
cia do obscurantismo em que se vivia.
Nós não tínhamos acesso a nada. Como
alguém pode dizer que no tempo do Sa-
lazar é que era bom? Isso era uma aldeia
sem informação alguma, não havia cul-
tura, não chegava nada de fora, pratica-
mente não se ouvia jazz... Eles eram
todos diferentes, mas tinham em comum
o fato de fazerem música boa e rica. Não
tinha nada a ver com a música ligeira
portuguesa. Os textos eram engaja
nterventivos. Romperam completamen-
te com uma tradição”, afirma.
Laginha interpretou ao piano Tanto
mar, de Chico Buarque, quando o can-
tor e escritor brasileiro recebeu o Prêmio
Camões em Lisboa, no ano passado, na
véspera dos 49 anos da revolução. No
discurso da premiação, Chico disse: “Por
mais que eu leia e fale de literatura,
por mais que eu publique romances e
contos, por mais que eu receba prêmios
literários, faço gosto de ser reconhecido
[...] em Portugal como o gajo que um dia
pediu que lhe mandassem um cravo e
um cheirinho de alecrim. Valeu a pena
esperar por esta cerimônia marcada, não
por acaso, para a véspera do dia em que
os portugueses descem a Avenida Liber-
dade a festejar a Revolução dos Cravos.”
Luís Cília chegou a Paris no dia 1º de
abril de 1964. Cruzou a fronteira clandes-
tinamente, a bordo de um Fiat, na com-
panhia de um casal: um tenente que ia
desertar com a mulher grávida. Cília já
havia sido chamado para a “tropa”. “Esta-
va fora de questão ir para a Guerra Colo-
nial”, relembra ele hoje, aos 81 anos,
rodeado, em casa, por um arsenal de me-
mórias: livros, discos, fotos, panfletos, có-
pias de cartazes de concertos da época e
de relatórios da Pide que tratam dele mes-
mo. Na época que se exilou na capital
francesa, tinha 21 anos, um violão na ba-
gagem e uma enorme vontade de cantar
contra a guerra nas colônias e contra a
ditadura. O cantor português, nascido em
Angola, foi quem mais gravou e lançou
discos no exílio. No mesmo ano em que
chegou a Paris, lançou seu primeiro lp,
Portugal-Angola: chants de lutte, pela Le
Chant du Monde, a gravadora ligada ao
Partido Comunista Francês. Cantava o
que ninguém podia cantar em Portugal.
Não tinha de enfrentar o “lápis azul”, sím-
bolo da censura da Pide, batizado
porque os censores usavam um lápis de cor
azul para cortar os textos das músicas ou
de qualquer manifestação artística ou ar-
tigo antes de ser publicado pela imprensa.
Cília era tímido, mas frequentava o
Select Latin, um café em que “ia todo
português que chegava clandestino a Pa-
ris, toda a gente se encontrava, todo mun-
do passava pela cidade”. Os dez anos na
capital francesa e uma viagem de um mês
a Cuba o fizeram conhecer e ficar amigo
de músicos como Georges Brassens, Léo
Ferré, Paco Ibáñez, Pablo Milanés, Silvio
Rodríguez. Lembra com carinho o en-
contro com a cantora argentina Mercedes
Sosa: “Ela me perguntou: ‘Você conhece
um poema que diz Resiste meu amor, re-
siste?’ Eu respondi que sim. Era meu.”
“Havia um ambiente político incrível na
França. Conheci outros músicos exilados
portugueses como o José Mário Branco,
o Sérgio Godinho e aí veio Maio de 68.
‘É proibido proibir’ é um slogan maravi-
lhoso; onde houvesse portugueses ou
uma ocupação em fábricas, lá íamos nós
cantar. Era um clima de liberdade total”,
lembra Cília.
Godinho também relembra a vida
que tinha em Paris daquela época. “Vivi
Maio de 68 intensamente. Ia para a rua
todos os dias, dormia na Sorbonne, apa-
nhava com gás lacrimogêneo, fiz parte
da ocupação da casa dos estudantes por-
tugueses em Paris”, diz ele, que, antes de
morar na capital francesa, tinha estuda-
do psicologia com Jean Piaget, em Ge-
nebra, e atravessado o Oceano Atlântico
trabalhando na cozinha de um navio
holandês. Fez trabalhos de conveniência
até que acabou atuando no musical Hair
em Paris. “Não fui um desertor porque
não era ainda do Exército, fui o que cha-
mam de refratário: não respondi ao ‘ape-
lo da pátria’.” Godinho se mudou depois
para o Canadá e estava em Vancouver
no dia da Revolução dos Cr
Na madrugada de 25 de abril de 1974,
o jovem Francisco Ribeiro Telles foi
acordado por volta das duas da ma-
nhã junto com os outros recrutas da Es-
cola Prática de Cavalaria, em Santarém,
a 80 km de Lisboa. Não se surpreendeu.
Passara o dia vendo um movimento anor-
mal de carros de combate e jipes sendo
abastecidos. Já estava desconfiado de que
haveria exercícios noturnos. Ignorava
que, naquela hora, os seus superiores já
tinham ouvido no rádio E depois do adeus
e Grândola, vila morena.
“Meus senhores, como todos sabem,
há diversas modalidades de Estado. Os
Estados socialistas, os Estados capitalistas
e o Estado a que chegamos”, começou o
capitão Fernando Salgueiro Maia, ao ler
o comunicado do Movimento das Forças
Armadas, avisando que iria marchar so-
bre Lisboa e precisava de voluntários.
“Ora, nesta noite solene, vamos acabar
com o Estado a que chegamos!” O jovem
Ribeiro Telles deu um passo à frente.
“Eu mal sabia disparar, tinha apenas
três meses de tropa, deram-nos uma es-
pingarda, uns cartuchos com balas,
umas granadas e lá fomos todos a mar-
char para Lisboa numa coluna blinda-
da”, conta o hoje embaixador Ribeiro
Telles, secretário-geral do Ministério dos
Negócios Estrangeiros. “Lembrei-me do
meu pai que sempre foi uma pessoa que
lutou contra o regime. Pensei que ia par-
ticipar de um momento histórico, muito
importante para o país, sem ter muita
noção do que eu iria fazer.”
A Escola Prática de Cavalaria que
partiu de Santarém teria a missão mais
importante da operação: ocupar o Ter-
reiro do Paço, onde ficavam os ministé-
rios, e destituir o regime com a rendição
do presidente do Conselho de Minis-
tros, Marcello Caetano, que se refugiou
a 750 metros de distância dali, no quar-
tel da Guarda Nacional Republica
o Largo do Carmo. Caetano acabaria
por se exilar no Rio de Janeiro.
O capitão Salgueiro Maia explicou
aos recrutas que todos os revoltosos se-
riam identificados nos uniformes, nos
carros de combates e nos jipes com um
quadrado vermelho. “Havia a preocupa-
ção de que, quando passássemos no pe-
dágio próximo a Lisboa, poderia haver
algum problema”, relembra Ribeiro Tel-
les. Tinha sido ali que uma tentativa de
golpe, um mês antes, havia fracassado.
“Foi muito impressionante. Entramos
pelo Marquês de Pombal, pela Avenida
da Liberdade e chegamos ao Terreiro do
Paço às cinco da manhã. Imagine o ba-
rulho de uma coluna de blindados em
plena Avenida da Liberdade. Não houve
reação, nenhuma movimentação, zero,
nada. Depois percebi que a sensação era
de que o regime estava a cair de podre.”
Mesmo passados cinquenta anos, Ri-
beiro Telles reteve na memória detalhes
do que se passou no Terreiro do Paço
naquele dia. “Maia se reuniu conosco e
disse que tudo estava a correr bem, que
havia notícias de mais adesão de compa-
nhias militares importantes à revolução.
O único problema era a Cavalaria 7, uma
unidade que estava próxima na Ajuda
[a 6 km de distância] e tinha um poder de
fogo superior ao nosso.”
Havia também no Rio Tejo uma fra-
gata da Marinha bem em frente ao Ter-
reiro do Paço que não se juntara aos
revoltosos e recebera instruções para dis-
parar. Ribeiro Telles cai na gargalhada ao
lembrar que, cada vez que a fragata se
aproximava e baixava os canhões, “nós
nos metíamos todos atrás de caminhone-
tes”. A fragata acabaria por se render. Mas
a questão crucial foi quando dois carros
de combate M-47 saíram da Cavalaria 7
e chegaram ao Terreiro do Paço.
“Há um brigadeiro que dá várias ve-
zes ordem de fogo sobre nós. E os solda-
dos que estão lá dentro não disparam.
O Maia pede a rendição do comandan-
te. A nossa subida para o Quartel do
Carmo, no Largo do Carmo, onde Mar-
cello Caetano e outros membros do go-
verno estavam foi apoteótica. Centenas
de pessoas, que chegavam cedo para tra-
balhar, ficaram paradas olhando para
nós. Nós tentávamos fazer um cordão de
isolamento, mas era uma multidão.”
Salgueiro Maia tornou-se o rosto mais
visível e o símbolo da vitória militar do
25 de Abril. Em vez dos tradicionais ade-
reços de oficial de cavalaria – botas de
cano alto e boina preta –, ele vestia a mes-
ma farda que seus soldados, todos iguais
na missão de derrubar a ditadura. “A preo-
cupação dele desde o início era evitar
o confronto”, conta Ribeiro Telles. “Ele
próprio estava convencido na saída de que
o regime iria cair e que, portanto, a reação
à nossa coluna, os obstáculos que a coluna
iria ter não seriam significativos. Porque
no fim das contas ele pega duzentos e tal
recrutas que não tinham experiência para
fazer uma revolução. O Otelo Saraiva de
Carvalho confiava muito nele e o Movi-
mento das Forças Armadas tinham a
ido as lições do golpe frustrado nas
Caldas da Rainha, um mês e meio antes,
e se preparou para o dia 25 de abril de
forma diferente. Nós respeitávamos muito
o Maia, a sua integridade, a sua liderança.
Não sei se outro capitão no comando teria
tido tantos voluntários”, diz Ribeiro Telles.
Ojornalista Adelino Gomes nem pa-
rece ouvir os músicos brasileiros
que improvisam um forró para os
turistas que passam pelo Largo do Car-
mo. Aos 79 anos, percorre a praça e ges-
ticula como um jovem ao relembrar os
acontecimentos de cinquenta anos atrás.
Gomes também era um dos poucos civis
que sabiam que haveria um golpe. Na
época, estava proibido de exercer a pro-
fissão de jornalista, mas lembra que, ao
chegar ao Terreiro do Paço, teve a mesma
dúvida de milhares de portugueses: será
este um golpe da direita ou da esquerda?
Quando lhe disseram o nome do coman-
dante da operação, teve uma surpresa:
Salgueiro Maia tinha sido seu colega de
escola. Não se viam há mais de dez anos.
Gomes dirigiu-se diretamente a Maia:
– De que lado estás?
– Tu não tiveste um problema qual-
quer, que tiveste de ir para o estrangeiro
por causa do que dissestes na rádio? –
retrucou Maia, explicando em seguida:
– Estamos a fazer isso para que nin-
guém mais tenha de sair do país por
causa daquilo que diz ou faz.
Gomes tascou um abraço em Sal-
gueiro Maia em pleno Terreiro do Paço.
Assim como Salgueiro Maia foi o rosto
do que se passou no Terreiro do Paço e no
Largo do Carmo – o epicentro da Opera-
ção Fim-Regime –, Gomes foi a voz do
25 de Abril na rádio, o jornalista que co-
briu todos os detalhes da queda do regi-
me. “Foi o dia mais feliz da minha vida.
As pessoas olham para mim e pensam:
‘Este gajo não gosta da mulher, não gosta
dos filhos.’ Mas é que 25 de abril de 1974
foi o dia mais feliz da minha vida. Passa-
ram cinquenta anos e continuo a sentir o
mesmo. Há qualquer coisa que se passou
aqui, com uns gajos com umas armas,
vivências, vontades, aspirações. O 25 de
Abril não é só o Maia. O Salazar havia
morrido, o Marcello Caetano, que tinha
prometido mudanças, a chamada Pri-
mavera Marcelista, não avançou com as
promessas, eram treze anos de Guerra
Colonial em que jovens como o Salguei-
ro Maia perceberam que eram carne para
canhão. O que chocou o Maia tanto em
Moçambique como na Guiné foi sentir o
desdém com que os portugueses brancos
tratavam os militares [negros, mobilizados
nas próprias colônias]. Ele deixou de acre-
ditar naquela ideia do Portugal indivisível.”
Gomes continua: “Havia ainda essa
política de prender estudantes opositores
do regime e os enviar para servir na Áfri-
ca, eles doutrinaram os jovens militares.
O regime degenerou, estava fraturado
entre os ultradireitas e os que queriam
mudanças. Nesse quadro, surgem os mi-
litares jovens, que ouviam as fitas casse-
tes das canções dos músicos proibidos
em Portugal antes de irem para a batalha
matar. Foi um conjunto de fatores que se
encontrou no inconformismo dos milita-
res que sabiam que não podiam ganhar
a guerra, queriam uma saída, queriam o
fim do regime, mas não queriam ficar
no poder. E esta é a diferença em com-
paração a tantos outros golpes. O 25 de
Abril é este mar, esta torrente que se for-
ma e vai desaguar no Terreiro do Paço e
termina aqui.” Agora, Gomes está com
um olhar que parece fotografar cada mi-
límetro do Largo do Carmo e reviver
cada segundo daquele dia.
Há dez anos, nas comemorações dos
40 anos da Revolução dos Cravos, Gomes
e o fotógrafo Alfredo Cunha lançaram o
livro Os rapazes dos tanques. Os dois des-
cobriram o nome do cabo que estava no
tanque e se recusou a atirar em Salgueiro
Maia. “Reunimos dez soldados que esta-
vam dentro dos carros de combate M-47.
Cada um tinha uma memória diferente
até que perguntamos quem era o cabo e
todos apontaram para o José Alves Costa,
que, ao longo de décadas, nunca tinha
falado sobre o 25 de Abril.” Ao fechar a
tampa do M-47, o cabo Costa fez com
que o seu comandante desobedecesse às
ordens do brigadeiro para disparar. Para
Salgueiro Maia, que morreu aos 47 anos
em 1992, o cabo era o verdadeiro herói do
25 de Abril, a revolução que começou
com música e terminou sem sangue.
Para o jornalista que acompanhou
cada passo do comandante naquel
momento-chave aconteceu por volta
de meio-dia e meia, quando Salgueiro
Maia se dirigiu ao repórter:
– Temos todas as Forças Armadas do
Exército conosco – exagerou.
– Temos o povo – disse um alferes.
– Além do povo, de cujo apoio nun-
ca duvidamos, temos todas as viaturas
blindadas do Exército português nas
nossas mãos.
Naquela altura, Marcello Caetano
ainda não se rendera, mas milhares de
pessoas reunidas no Largo do Carmo já
gritavam “Viva a liberdade”, “Abaixo os
fascistas”, “Vitória, vitória”. Para Go-
mes, é nesse instante que Salgueiro
Maia entende que já não se trata mais
de um golpe militar, mas de uma revo-
lução. “Já não são mais só os militares de
um lado e o regime do outro, é o povo.
O golpe transforma-se em revolução.”
Nem Adelino Gomes nem Francis-
co Ribeiro Telles se lembram de
ter cruzado com Celeste Caeiro.
Mas um dos soldados, que viera com Ri-
beiro Telles de Santarém, pediu um ci-
garro à mulher que passava pela rua. Ela
só tinha flores. Deu um cravo ao rapaz,
que o colocou na ponta da espingarda.
E começou a distribuir cravos vermelhos
e brancos aos recrutas que ia encontran-
do pelo caminho. Eles repetiam o gesto do
primeiro soldado, colocando as flores
nas espingardas. As floristas do bairro
seguiram o exemplo da mulher e pas
a Revolução dos Cravos. Ribeiro Telles
só ouviria Grândola, vila morena, pela
primeira vez, no dia 25 de Abril.
Em Paris, o ex-padre Francisco Fa-
nhais soube do golpe pelo rádio. Assim
que ouviu que as fronteiras tinham sido
abertas, partiu de trem a caminho de Por-
tugal. Quando pararam em Vilar Formo-
so, a primeira vila em território português,
Fanhais abriu a janela para “respirar o ar
puro do país”. Um cabo marchava sozinho
na estação. “Um amigo dentro do vagão
perguntou ao cabo: ‘Cadê os Pides?’ O mi-
litar levantou a espingarda e disse: ‘Fala
alto porque isso agora é um país livre.’
Toda vez que conto essa história, eu cho-
ro”, diz Fanhais, enxugando as lágrimas.
“Todo o movimento anterior a 25 de
abril eu chamo canto da resistência”, diz
Nuno Pacheco, o crítico de música. “De-
pois do 25 de Abril, muitos dos músicos
no exílio voltam ao país, começam a tra-
balhar aqui, e aí é que começa aquilo que
eu chamo de canção de intervenção.” Ele
explica a que se refere: “Os músicos que
antigamente iam cantar num recanto, em
uma associação para estudantes, nas fa-
culdades, passam a cantar em fábricas
ocupadas, nos campos durante a reforma
agrária, para os camponeses que ocupa-
vam uma herdade ou campo abandona-
do, ou nos ‘saneamentos’ quando uma
comissão de trabalhadores tomava conta
da administração expulsando o proprietá-
rio que os maltratava ou que era ligad
go regime, ou à Pide.” Os músicos
não ganhavam nada, às vezes um prato
de comida ou alguma bebida. “Todos se
colocaram a serviço do que estava acon-
tecendo. Havia uma ocupação de um pré-
dio, lá iam eles cantar. Andaram nessa
loucura nos anos de 1974 e 1975 até que
há o 25 de novembro de 1975.”
“O Zeca e eu fomos para Bragança
numa campanha de dinamização do Mo-
vimento das Forças Armadas”, lembra
Fanhais. Passaram quinze dias conversan-
do e cantando em pequenas vilas. Em
uma delas, as habitantes contaram o caso
de um rapaz que fora preso pela Pide, de-
pois de ser denunciado pelo patrão. Zeca
Afonso ouviu todos os detalhes e começou
a escrever e fazer a música. “Dois ou três
dias depois, voltamos à vila para o Zeca
tocar e cantar. As pessoas ficaram radian-
tes ao ouvir a história que haviam conta-
do, que havia acontecido com eles. Era
um tempo de doação completa. A entrega
à revolução era sem reservas, onde nos
chamávamos nós íamos e cantávamos em
condições completamente anormais, às
vezes nem microfone havia”, diz Fanhais.
José Jorge Letria, que controlava a
“célula dos cantores” do Partido Comu-
nista, recorda: “Fiz muitas canções à tar-
de para cantar à noite. E fazia muito à
noite para cantar na hora do almoço.”
Viajavam por todo o país se apresentando
em sindicatos, escolas, associações de mora-
dores, fábricas. “Nós vivíamos em estado
de graça. Quem chegava com uma viola
na mão para cantar e compartilhar com
as pessoas os momentos de emoção e de
grande entusiasmo revolucionário deixa-
va de ser um cantor da revolução e passava
a ser um irmão deles, um filho, éramos
tratados como familiares, acarinhados
com emoção. Claro que isso era muito
mais forte no Alentejo por causa da refor-
ma agrária. Havia poucos microfones,
cantávamos em condições muito precá-
rias, mas eu aguentava tudo.”
Margarida Antunes da Silva tinha
23 anos em 25 de abril. Viveu a
euforia, essa vontade de mudar e
pensar que tudo era mesmo possível.
“Nunca houve um Primeiro de Maio
como aquele, milhares de pessoas sor-
rindo de orelha a orelha, a felicidade
estampada no rosto daquela gente toda,
crianças, novos, velhos. Fico arrepiada
quando me lembro. É algo irrepetível.
Nunca vivi algo semelhante.”
Margarida Antunes da Silva conheceu
José Mário Branco, que voltara de Paris, e
Fausto, dois dos grandes músicos que for-
mavam o Grupo de Acção Cultural (gac),
de orientação maoista. Onde quer que
fossem, cantavam-se os versos de A canti-
ga é uma arma, de José Mário Branco:
A cantiga é uma arma
E eu não sabia
Tudo depende da bala
E da pontaria.
A jovem Margarida Antunes, como é
conhecida, largou a faculdade e começou
a vender os discos do gac por onde iam.
Depois, ela própria começaria a cantar.
“Conviver com pessoas daquele calibre,
naquela idade. Eles nos tratavam como
iguais. A música entra na minha vida por
causa do 25 de Abril e nunca mais sai.
Viajávamos de Norte a Sul do país, canta-
mos em todos os quartéis do país, todos.
Descobri um país que não conhecia.”
mbra ainda hoje quando ouviu 2 mil
soldados perfilados cantando o hino da
Internacional Comunista com punho
erguido. “Imagina, nós sabíamos que o
Brasil estava em plena ditadura e solda-
dos eram sinônimo de fascismo e re-
pressão. E de repente eles estavam ali
lutando pelos mesmos ideais que nós.
Tive a noção de que era possível mudar
o mundo, o sonho de qualquer jovem.”
“Caí no meio do furacão”, admite
Sérgio Godinho, que veio de Vancouver,
no Canadá, e chegou nos primeiros dias
de maio. “Pela primeira vez, as pessoas
estavam cantando comigo as minhas
canções. Eu não tive o percurso normal
de um músico que lança um disco e vai
fazendo sucesso aos bocadinhos. Eu ti-
nha dois discos lançados aqui e todo
mundo cantava as minhas músicas. Du-
rante dias tive aquela sensação de que é
isso o que faz sentido. Este é o meu pú-
blico, e eu nunca estive com ele.” Godi-
nho ainda se lembra de ouvir as massas
cantando sua composição Maré alta:
Aprende a nadar, companheiro
Aprende a nadar, companheiro
Que a maré se vai levantar
Que a maré se vai levantar
Que a liberdade está a passar por aqui
Que a liberdade está a passar por aqui.
“Foi muito emocionante”, Godinho
recorda especialmente de um concerto
em que estavam vários músicos, e o mestre
da guitarra portuguesa, Carlos Paredes,
tocou Verdes anos. “Eu pensei: ‘Estamos
todos juntos nos meus verdes anos, num
Portugal que mudou.’ Eu rompi a chorar,
caíram-me as lágrimas, eu compreendi,
caiu-me a ficha, como vocês dizem no
Brasil. Foi um momento mágico; foi so-
bretudo voltar ao meu país, um país que
estava a mexer, a querer ser diferente.”
Mas nem tudo eram cravos. Luís Cília
chegou do exílio junto com José Má
ranco, um dos fundadores do gac, no
dia 30 de abril. Estavam a bordo do mes-
mo avião que trouxe Álvaro Cunhal, o
líder histórico do Partido Comunista Por-
tuguês (pcp). “O meu verdadeiro exílio
foram aqueles primeiros anos aqui. Em
Paris, ninguém me perguntava de que
partido eu era, íamos cantar e pronto.
Aqui, não, havia o clima do chega para
lá. Na minha primeira reunião com os
cantores do pcp fui logo posto de lado
quando disse que não era cantor do pcp,
mas sim militante e músico profissional.
O que ouvi foi: ‘Você veio aqui sacar
dinheiro da classe operária?’ Era um
ambiente e um clima de intolerância
horrível e tentaram encobrir meu nome.”
Cília, nos anos 1960, compusera Avan-
te camarada, que acabou se tornando o
hino do pcp. “Revolucionário não é
quem rima patrão com pão. Tudo aqui-
lo que nos transforma e nos melhora é
revolucionário. Eu sempre tentei lutar
contra este sectarismo. A maioria das
prefeituras era do pcp e nunca me con-
vidavam para cantar. Levou muito tem-
po para isso mudar. Nos primeiros dois
anos, eu não tinha trabalho, tinha de ir
à França trabalhar para sobreviver.”
As divisões entre os músicos era um
reflexo das divisões do Prec (Processo
Revolucionário em Curso). Os excessos
revolucionários levariam ao chamado
Verão Quente de 1975, um dos momen-
tos mais críticos do pós-25 de Abril,
quando Portugal estava dividido entre as
forças políticas que defendiam uma via
eleitoral e outra, o caminho revolucioná-
rio. Portugal esteve à beira de uma guer-
ra civil. Houve ataques às sedes do pcp e
de outros partidos de extrema esquerda.
“As coisas não podiam ser feitas à força.
Havia essa luta entre o Partido Comunis-
ta e o Partido Socialista, estávamos cami-
nhando para uma ditadura comunista.
O socialista Mário Soares foi mesmo um
líder e impediu que fôssemos por aí”, ex-
plica Sérgio Godinho. A tensão culmina-
ria em 25 de novembro de 1975, com
uma tentativa de golpe da esquerda mais
radical travada pelo general Ramalho
Eanes. É o fim do processo revolucioná-
rio. No ano seguinte, nas eleições parla-
mentares de abril, os socialistas ganham
a maioria e o líder do Partido Socialista,
Mário Soares, é eleito primeiro-ministro.
Em junho o general Ramalho Eanes é
eleito presidente da República.
“Há músicos que ficaram sempre taxa-
dos como cantores de intervenção quan-
do na prática eles eram cantores contra a
ditadura e viram-se envolvidos naquela
guerra que foi a revolução de 1974, 1975”,
diz o crítico Nuno Pacheco. “Depois do
25 de novembro, há uma pacificação da
sociedade, há uma normalização do dia a
dia, da vida democrática, já não há ocu-
pações, saneamentos. Os cantores vão
para o estúdio, e aí há uma série de discos
que vem nessa sequência do 25 de no-
vembro que são reflexo e crônica de 1974
e 1975. A música toma seu curso normal, é
gravada, vendida nas lojas, sem censura
e com a melhor qualidade poss
Assim como Zeca Afonso, Godinho
nunca se associou a qualquer partido.
Nem gosta de ser chamado de cantor de
intervenção. “Nunca nos vi como heróis.
Revoluções são impuras por essência, por
isso não me desiludo, é um momento.
Uma revolução é uma revolução, uma
mudança de vida, de regime, de tudo, de
estruturas. Houve aquele grande entusias-
mo e depois as coisas se extremaram, no
Verão Quente de 1975. Lembrei do Maio
de 68 quando um dia eu estava subindo a
Champs Élysées e, na direção contrária,
vinha a primeira manifestação da ‘maio-
ria silenciosa’, gaullista. Eu, num sentido
da história, eles, em outro. Nesse dia,
compreendi que a história se faz com pas-
sos para a frente e para trás. Cheguei em
casa e pensei: Isso não é assim tão fácil
nem como nós idealizamos. Então quan-
do comecei a ouvir falar de conquistas
irreversíveis do 25 de Abril, quando se
começou a nacionalizar tudo, eu olhei
sempre com um pé um bocadinho atrás,
do gênero ‘eu já vi isso’, percebe?”
G rândola, vila morena tem mais de
cem gravações em várias línguas,
entre elas uma da cantora brasileira
Nara Leão. Todos os anos, Francisco Fa-
nhais, hoje presidente da Associação José
Afonso, é chamado para cantar e contar o
25 de Abril para grupos de alemães que
visitam o Alentejo. Acabam todos cantando
“Grrandola, vila morrena”, conta Fanhais,
imitando o sotaque dos alemães.
“Antes dos carros de combate de Sal-
gueiro Maia, houve os carros de combate
da canção e a canção com os poemas das
baladas inconformadas”, conclui, emo-
cionado, o jornalista Adelino Gomes, ci-
tando as palavras do poeta Manuel
Alegre. “Os baladeiros foram os guardas
avançados do golpe que estava por vir, a
palavra precedeu o golpe, a palavra prece-
deu as armas, e as armas vieram de mãos
dadas com as palavras do Zeca Afonso.”
Mário Laginha reforça: “A influên-
cia deles na música portuguesa é imensa.
A música era muito boa, as letras também.
O Sérgio Godinho soube ver que as guer-
ras eram outras, são outras. Há certas coi-
sas que já estão conquistadas. Acho que o
Sérgio olha para a sociedade com uma
inteligência que é invulgar. O Zeca Afon-
so tem canções absolutamente magistrais.
Havia uma centelha. Os arranjos de José
Mário Branco são brilhantes, me influen-
ciaram muito. O Fausto tem álbuns icôni-
cos. Não é uma corrida porque todos eram
diferentes e tiveram, têm a sua importân-
cia. Ninguém escolhe o dia que nasceu.
Não escolhi nascer no dia 25 de abril, mas
se pudesse escolher era nesse dia que que-
ria mesmo ter nascido. Quem não gostaria
de nascer na data em que a liberdade foi
conquistada depois de uma ditadura, no
dia em que se fez a liberdade, em que a
liberdade voltou a ser possível?”*
* No dia 10 de março passado, pela primeira vez des-
de o fim da ditadura de Salazar e da Pide, e cinquenta
anos depois da Revolução dos Cravos, os eleitores
portugueses triplicaram os votos em favor do Chega,
o partido da extrema direita, que se tornou a terceira
PIAUI
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